A universalidade do acesso à justiça

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02/02/2016 às 00:41
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4. Limites ao acesso à justiça

Como qualquer outro direito, o acesso à justiça também possui limitações. Não se trata de um princípio absoluto, pois mesmo os direitos humanos podem ser objeto de restrições, à luz da proporcionalidade, quando em colisão com outros direitos também relevantes.

Como ressalta Francesco Francioni23, existem algumas circunstâncias que podem limitar ou até mesmo impedir o acesso dos indivíduos aos tribunais internacionais. Parte delas está relacionadas aos estados de emergência, às imunidades e à doutrina do forum non conveniens.

Os tratados de direitos humanos, de uma maneira geral, admitem que os Estados que os integram se escusem de determinadas obrigações assumidas no plano internacional em casos de emergência pública ou guerra. Por outro lado, as cláusulas de derrogação costumam prever uma lista de direitos que não podem ser afastados mesmo em períodos de guerra, a exemplo da proibição da tortura, da escravidão e privação arbitrária da vida24.

A título exemplificativo, observe-se o art. 15 da Convenção Europeia de Direitos Humanos:

Art. 15. Derrogação em caso de estado de necessidade

1. Em caso de guerra ou de outro perigo público que ameace a vida da nação, qualquer Alta Parte Contratante pode tomar providências que derroguem as obrigações previstas na presente Convenção, na estrita medida em que o exigir a situação, e em que tais providências não estejam em contradição com as outras obrigações decorrentes do direito internacional.

22. A disposição precedente não autoriza nenhuma derrogação ao artigo 2°, salvo quanto ao caso de morte resultante de actos lícitos de guerra, nem aos artigos 3°, 4° (parágrafo 1) e 7°.

3. Qualquer Alta Parte Contratante que exercer este direito de derrogação manterá completamente informado o Secretário Geral do Conselho da Europa das providências tomadas e dos motivos que as provocaram. Deverá igualmente informar o Secretário - Geral do Conselho da Europa da data em que essas disposições tiverem deixado de estar em vigor e da data em que as da Convenção voltarem a ter plena aplicação.25

No referido dispositivo, o direito de acesso à justiça não figura na lista de direitos cuja suspensão é vedada. Somente não podem ser suspensos o direito à vida (art. 2º), a proibição da tortura (art. 3º) e a proibição da escravatura (art. 4º).

Em sentido diverso, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu art. 27, apresenta uma lista mais extensa, que inclui o acesso à justiça, ao se referir às “garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos”:

Artigo 27 - Suspensão de garantias

1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergência que ameace a independência ou segurança do Estado-parte, este poderá adotar as disposições que, na medida e pelo tempo estritamente limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações contraídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Direito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.

2. A disposição precedente não autoriza a suspensão dos direitos determinados nos seguintes artigos: 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 6 (proibição da escravidão e da servidão), 9 (princípio da legalidade e da retroatividade), 12 (liberdade de consciência e religião), 17 (proteção da família), 18 (direito ao nome), 19 (direitos da criança), 20 (direito à nacionalidade) e 23 (direitos políticos), nem das garantias indispensáveis para a proteção de tais direitos.

3. Todo Estado-parte no presente Pacto que fizer uso do direito de suspensão deverá comunicar imediatamente aos outros Estados-partes na presente Convenção, por intermédio do Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos, as disposições cuja aplicação haja suspendido, os motivos determinantes da suspensão e a data em que haja dado por terminada tal suspensão.

Apesar dos dispositivos supracitados apresentarem conteúdos distintos, é possível concluir que o questionamento sobre a possibilidade de mitigação do acesso à justiça em situações de calamidade não pode ser respondido aprioristicamente. Em realidade, esta decisão depende das circunstâncias do caso concreto, ponderadas de acordo com critérios de razoabilidade e proporcionalidade entre a limitação do acesso à justiça e o interesse geral na proteção da segurança pública26.

No que concerne às imunidades, cuida-se certamente da exceção que gera maiores divergências. As imunidades costumam se basear na distinção estabelecida entre os chamados “atos de império” (acobertados pela imunidade) e “atos de gestão” (não sujeitos à imunidade de jurisdição). Tal restrição, se levada às últimas consequências pode conduzir a situações que violam a razoabilidade. Cite-se, a título exemplificativo, o caso Letelier v. Republic of Chile, julgado em 1980, pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Decidiu-se, na oportunidade, pelo afastamento da imunidade legal, entendendo-se que o homicídio praticado por agentes da embaixada Chilena deveria ser apreciado pelos órgãos jurisdicionais norte-americanos, por envolver a prática da tortura, sob pena de violação de preceitos básicos dos direitos humanos27.

Derradeiramente, também a doutrina do forum non conveniens pode ser considerada uma limitação ao acesso à justiça. Como explica Fredie Didier Jr., existem situações em que vários foros são, em princípio, competentes para o conhecimento e julgamento de uma demanda. Em tais casos, o autor exercita o chamado forum shopping, elegendo o local que supõe ser mais favorável aos seus interesses.

Ocorre que tal faculdade deve ser conciliada com a proteção da boa-fé, sob pena de restar configurado o abuso do direito28. Assim, em determinados casos concretos envolvendo foros concorrentes, observadas as circunstâncias envolvidas, será possível negar à parte autora a escolha realizada, quando esta trouxer ao réu um ônus desproporcional, dificultando a sua defesa.


5. As três Ondas Renovatórias de Mauro Cappelletti e Bryant Garth: a Defensoria Pública como uma resposta à crise de acesso à justiça

Tratando de soluções práticas para os problemas de acesso à justiça, Mauro Cappelletti e Bryant Garth apresentam três posições básicas, denominadas ondas renovatórias, que atingiram, pelo menos, os países do mundo Ocidental. Tendo início em 1965, estes posicionamentos emergiram em uma seqüência mais ou menos cronológica. São eles: a assistência judiciária aos pobres, a representação jurídica para os interesses “difusos” – especialmente nas áreas de proteção ambiental e do consumidor – e a terceira onda, mais recente, denominada de “enfoque de acesso à justiça”, que inclui os posicionamentos anteriores, representando uma tentativa de atacar as barreiras de acesso de modo mais articulado e compreensivo29.

É possível observar uma conexão direta entre as três ondas renovatórias citadas e a legitimidade coletiva da Defensoria Pública, o que se pretende demonstrar nas linhas seguintes.

A primeira onda renovatória tratada por Cappelletti e Garth consiste na assistência judiciaria aos pobres. Inicialmente, convém registrar a impropriedade do termo “judiciária”, que merece ser substituído por “jurídica”, palavra dotada de maior amplitude. A assistência “judiciária” é aquela que se exerce em razão da existência de um processo judicial, ou seja, perante o Poder Judiciário. Por sua vez, a assistência “jurídica” é mais ampla, envolvendo não só a atuação a judiciária, mas também outras formas de assistência externas ao processo judicial. A título exemplificativo, uma defesa administrativa patrocinada pela Defensoria Pública não consiste em hipótese de assistência judiciária, mas sim jurídica.

Com efeito, “os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países ocidentais concentraram-se, muito adequadamente, em proporcionar os serviços jurídicos para os pobres”30.

Infelizmente, até não muito tempo atrás, os projetos de assistência jurídica da grande maioria dos países ocidentais eram totalmente inadequados, recaindo quase que exclusivamente sobre serviços de advogados particulares, atuando sem contraprestação. O problemas que derivaram dos precários modelos de assistência conduziram países como a Alemanha e a Inglaterra, no inicio do século XX, a reformaram significativamente a legislação correlata. A Lei Germânica de 1919, v. g., passou a prever um sistema de remuneração pelo Estado dos advogados responsáveis pela prestação da assistência jurídica, que era universal. Na Inglaterra, o Legal Aid and Advice Scheme foi criado com o estatuto de 1949, sendo confiado à associação nacional de advogados, através de atividades de aconselhamento jurídico e assistência judiciaria.

A partir da década de 60, a assistência jurídica aos pobres foi alçada como um dos principais pontos da agenda das reformas judiciarias, em atenção às problemáticas advindas da falta de acesso à justiça. As reformas se iniciaram em 1965, nos Estados Unidos, com a criação do Office of Economic Opportunity, alastrando-se por todo o mundo a partir da década de 7031. Diversos países seguiram o caminho da reforma nesta década: França, Suécia, Alemanha, Áustria, Holanda, Itália, Austrália, Província Canadense do Quebeque, dentre outros.

Assim, é possível concluir que a preocupação com a adoção de soluções para a melhoria da qualidade de vida das pessoas menos favorecidas resultou num aperfeiçoamento em escala do sistemas jurídicos modernos, implicando, em alguns países, no surgimento de um órgão estatal especializado, a Defensoria Pública.

O segundo ponto de pauta das reformas em prol do acesso à justiça consistiu no desenvolvimento do processo coletivo, responsável pela tutela de interesses de grupos humanos, organizados ou não.

Este segundo grande movimento foi mais intenso nos Estados Unidos, cujo sistema jurídico é aclamado como um dos mais avançados no assunto. Segundo explicam Mauro Cappelletti e Bryant Garth, “a concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos”32, por não permitir uma tutela jurisdicional adequada dos direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um seguimento do público.

Desta forma, do surgimento de novos direitos (estes de natureza difusa) e da massificação de direitos individuais da ordem do dia surgiu uma nova demanda reformista, objetivando imprimir maior celeridade, economia processual e efetividade à tutela jurisdicional.

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O surgimento da legitimidade coletiva da Defensoria Pública, como será possível observar, derivou da união das duas ondas renovatórias supracitadas: assistência jurídica aos necessitados e o desenvolvimento da tutela coletiva. A defesa de uma maior amplitude de atuação coletiva do órgão, por sua vez, encontra respaldo na terceira onda: a defesa de uma concepção mais ampla de acesso à justiça.

O novo enfoque do acesso à justiça deposita suas atenções “no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas”33. Cuida-se, portanto, de um movimento que objetiva trazer maior efetividade e dinâmica aos sistemas jurídicos, construindo e adequando seus institutos para a concretização do direito material.

Nesse contexto se insere não apenas a preocupação com a tutela dos direitos e interesses das pessoas economicamente necessitadas, mas das pessoas como um todo, em especial aquelas que apresentam algum tipo de vulnerabilidade ou hipossuficiência social: usuários de serviços públicos, idosos, deficientes físicos, eleitores, consumidores, os ausentes, dentre outros, independentemente de sua situação econômica.

A título exemplificativo, justificam-se, a partir de tais preocupações, as reformas trazidas pela LC n. 132/2009 à LC n. 80/1994, prevendo, dentre as funções institucionais da Defensoria Pública, o exercício da curadoria especial, nas hipóteses legais (art. 4º, inciso XVI).

Dentre as hipóteses que ensejam o exercício da curadoria especial, destacam-se os casos de citação ficta, seguida de revelia (art. 9º, inciso II, do CPC). Tais situações são extremamente comuns, sobretudo no âmbito das varas de execuções fiscais federais, em razão do grande volume de processos, aliado ao grande número de sociedades empresárias em situação irregular.

O patrocínio da Defensoria Pública, em situações assim, se justifica pela presunção de vulnerabilidade técnica, já que, sobretudo nos casos de citação por edital, dificilmente o réu conhece da ação que é movida contra a sua pessoa.


6. Conclusões

Diante da pesquisa elaborada e dos argumentos trazidos à tela, pode-se concluir que:

  1. o conceito de acesso à justiça não pode ser examinado sob o enfoque meramente literal, significando também o direito ao devido processo, compreendendo o direito às garantias processuais, julgamento equitativo (justo), em tempo razoável e eficaz;

  2. ao mesmo tempo em que se revela como um direito fundamental de exercício da ação (enquanto direito de instaurar uma demanda) e a uma tutela adequada, o acesso à justiça ostenta caráter instrumental, como uma garantia máxima, na medida em que possibilita a tutela de todos os demais direitos fundamentais e os direitos em geral. Todos eles dependem do acesso à justiça;

  3. no direito internacional, o acesso à justiça pode ser extraído de diversos documentos de direitos humanos, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948;

  4. o acesso à justiça exige das instituições internacionais de proteção dos direitos humanos a adoção de providências de modo a maximizar a participação das pessoas e a efetiva tutela de seus direitos sob a égide do devido processo legal;

  5. como qualquer outro direito, o acesso à justiça também possui limitações. Não se trata de um princípio absoluto, pois mesmo os direitos humanos podem ser objeto de restrições, à luz da proporcionalidade, quando em colisão com outros direitos também relevantes;

  6. a preocupação com a adoção de soluções para a melhoria da qualidade de vida das pessoas menos favorecidas resultou num aperfeiçoamento em escala do sistemas jurídicos modernos, implicando, em alguns países, no surgimento de um órgão estatal especializado, a Defensoria Pública.

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Sobre o autor
João Paulo Lordelo

Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor em diversos cursos de graduação, pós-graduação e preparatórios para carreiras jurídicas. Procurador da República (1ª colocação). Ex-Defensor Público Federal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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