O inciso III, do § 2º, do art. 155 da CF prescreve que o ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”.
Cumpre esclarecer, de início, que não se trata de imposto seletivo, pois o imposto recai sobre todas as mercadorias e sobre os três tipos de serviços cabentes ao Estado, especificados no inciso II, do art. 155 da CF. Trata-se, pois, de um imposto de alíquotas seletivas.
Alguns estudiosos enxergam no citado inciso III, do § 2º, do art. 155 da CF uma norma de estrutura e não de conduta, pelo que entendem que a seletividade do ICMS integraria o próprio processo legislativo, de sorte de tornar obrigatória a fixação, pelo legislador ordinário, de alíquotas seletivas.
A lapidar clareza do texto constitucional – poderá ser seletivo – não deixa margem de dúvida quanto a faculdade de o legislador ordinário estabelecer alíquotas seletivas em função da essencialidade das mercadorias e serviços.
O preceito do inciso III sob análise configura uma norma de natureza programática. Sobre norma de natureza programática afirmamos o seguinte:
“Se, de um lado, o preceito programático não gera direito subjetivo para o contribuinte que não poderá bater às portas do Judiciário pleiteando que determinado imposto ajuste-se ao seu perfil econômico, de outro, esse preceito produz efeito pelo seu aspecto negativo, à medida que confere ao contribuinte a faculdade de exigir que o poder tributante não pratique atos que o contravenha”[1].
Segue-se que o legislador ordinário está proibido pela Constituição Federal de instituir alíquotas mais elevadas do ICMS em relação a mercadorias e serviços essenciais. Mas, os Estados resolveram tributar o fornecimento de energia elétrica com uma alíquota exacerbada por ser uma tributação rendosa de fácil arrecadação.
É verdade que não há definição legal do que sejam mercadorias e serviços essenciais, mas é verdade, também, que a Constituição não conferiu ao legislador ordinário margem de liberdade para adoção de critério político destoante do conceito de essencial, de necessário e de indispensável em termos de realidade social vivenciada em nosso país. Basta imaginar um black-out por apenas 24:00 horas para que possamos ter a idéia de quão essencial é a energia elétrica para a moderna sociedade em que vivemos. A melhor forma de descobrir a violação do princípio da seletividade é examinando a legislação e confrontando mercadorias e serviços com as respectivas alíquotas.
No que se refere à venda de energia elétrica a legislação do Estado de São Paulo prevê as seguintes alíquotas: a) 12% em relação ao consumo residencial de até 200 kwh por mês; b) 25% em relação ao consumo residencial acima de 200 kwh por mês; c) 12% em relação à energia utilizada no transporte público; e d) 12% em relação à energia utilizada em propriedade rural onde haja exploração agrícola ou pastoril e inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS.
Salta aos olhos que a alíquota de 25%, prevista na letra b retro, desatende à faculdade prevista no preceito constitucional sob análise, porque a presumível capacidade contributiva do consumidor de energia elétrica domiciliar é irrelevante para implementação da alíquota seletiva. O que importa é apenas a sua seletividade em função da essencialidade da mercadoria e do serviço. Como é possível sustentar que a energia elétrica é essencial para quem apresenta baixo consumo e não o é para quem apresenta um elevado consumo?
No estágio atual da civilização, a energia elétrica é sempre um bem essencial. Sua ausência acarretaria a paralisação do processo produtivo e nem haveria circulação de riquezas. A energia elétrica é a força motriz que gera o desenvolvimento econômico-social.
A energia elétrica não comporta gravame maior em relação a outros bens tributados pelo ICMS que são mercadorias e serviços conforme mandamento constitucional, e não mercadorias ou serviços. Logo, impõe-se o confronto do conjunto de mercadorias e serviços para eleger o critério da seletividade em função da essencialidade desses bens.
Não pode o Estado em nome de uma política tributária assentada no critério da arrecadação mais rendosa e a custo zero, insusceptível de sonegação, sobrecarregar o consumo de energia elétrica e o serviço de comunicação igualmente atingido pela esdrúxula carga tributária, invertendo e pervertendo o princípio da seletividade do imposto em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços.
Cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir em definitivo quanto a inconstitucionalidade lapidar dessa esdrúxula tributação que atenta contra o princípio da razoabilidade, um limite imposto à ação do próprio legislador. A Corte Suprema reconheceu a repercussão geral sobre o tema constitucional em questão conforme ementa abaixo:
“EMENTA.
IMPOSTO SOBRE A CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – ENERGIA ELÉTRICA – SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÃO – SELETIVIDADE – ALÍQUOTA VARIÁVEL – ARTIGOS 150, INCISO II, E 155, § 2º, INCISO III, DA CARTA FEDERAL – ALCANCE – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a controvérsia relativa à constitucionalidade de norma estadual mediante a qual foi prevista a alíquota de 25% alusiva ao Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços incidente no fornecimento de energia elétrica e nos serviços de telecomunicação, em patamar superior ao estabelecido para as operações em geral – 17%. (RE 714139 RG, Relator(a): Min. Marco Aurélio, DJe de 26-09-2014 ).
Enquanto a Alta Corte não decide o tema sob repercussão geral, os consumidores continuam arcando com o repasse do encargo financeiro do imposto pago pelas distribuidoras.
Nota
[1] Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 24 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p.