Da contraposição amigo-inimigo no decisionismo político de Carl Schmitt

07/02/2016 às 21:25
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O presente artigo estuda a contraposição amigo e inimigo sob a perspectiva paradigmática de Carl Schmitt, funcionalizando seus corolários jurídico-políticos na conjuntura da evolução do Direito de Guerra com suas mais prementes implicações territoriais.

“’Tu, que no val feliz, aonde as graças

E as palmas Cipião colheu da glória,

Quando Aníbal vexavam só desgraças,

‘Mil leões apressaste por memória;

Que, aos irmãos se ajudaras na alta guerra,

Se crê triunfo registrasse a história

‘Dos fortes filhos da fecunda. Terra!”

- Dante Alighieri (Incipit Commedia. Dantis Alogherii Florentini Natione, Non Moribus)  

Um ensaio razoavelmente aceitável envolvendo qualquer problemática levantada por aquele que é considerado o maior expoente da ciência jurídica do século XX traz, como pressuposto de admissibilidade teórico-prático, certo rigor sistemático, e, mais ainda, a capacidade de mobilizar ou funcionalizar conceitos estáticos no marco de uma constitucionalidade paradigmaticamente delimitada. Isso porque obras como Der Hüter der Verfassung (O Guardião da Constituição), Der Begriff des Politischen (O Conceito do Político), Politische Theologie (Teologia Política) e Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Jus Publicum Europaeum (O Nomos da Terra no Direito das Gentes dojus publicum europaeum) consagraram Carl Schmitt como um divisor de águas da literatura jurídico-científica tanto intra-estatal como inter-estatal. Em suma, é possível não gostar de Carl Schmitt, mas é impossível, ou, pelo menos, altamente não-recomendável, se abster de conhecê-lo.

No presente estudo, abordaremos a contraposição amigo-inimigo, que perpassa transversalmente todo o pensamento do autor como fundamento existencial de legitimidade para toda e qualquer questão regida normativamente pelo jus bellum na seara do Direito Internacional Público, cujo sujeito imediato é o conjunto de unidades territoriais soberanamente instituídas, ou, noutros termos, os Estados soberanos, detentores do jus ad bellum, é dizer, do direito de declarar guerra a terceiros toda vez que algum aspecto inerente à soberania titularizada pelo Chefe de Estado for posta em xeque. Questões como guerra civil e disputas político-partidárias não serão tratadas aqui por pertencerem à alçada do direito intra-estatal, pelo que nos limitaremos a abstrair da clássica formulação geral do decisionismo schmitteano (“soberano é quem decide sobre o estado de exceção”) alguns macetes que muito nos servirão ao propósito da elaboração de uma desconstrução sistemática do paradigma do Estado neutral de cariz liberal, que parece voltar a emergir na atual conjuntura estrutural, sobretudo em seara política e geopolítica.  

Em Der Begriff des Politischen, publicado em 1932, Carl Schmitt, como de costume, começa expondo as razões que o motivaram a pensar a política como uma pré-ordenação universal relativamente a categorias aparentemente desencadeadoras de toda sorte de antagonismos, como, v.g. a moral (bom e mal), o direito (justo e injusto) e a economia (lucrativo e não-lucrativo). Para tanto, esboça um conceito de Estado que pretende superar a dicotomia tipologicamente liberal entre Estado e sociedade civil, postulando que “o conceito de Estado pressupõe o conceito do político. Estado é, segundo o uso da linguagem hodierna, o status político de um povo organizado numa unidade territorial” (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, p. 41)

Com isso, começamos a entender que a política antecede as questões de Estado, na medida em que estas últimas só aparecem como possibilidades reais ou concretas de uma ordenação politicamente estabelecida. Nesse sentido, a pretensão de neutralidade política, jurídica, econômica ou religiosa típica de uma Weltanschauung demo-liberal é reduzida a um artifício retórico destituído de qualquer consistência argumentativa, posto que, em última instância, todos os conflitos estão radicados na política, e a política não é neutra, em absoluto, conquanto dependa de resultados favoráveis a um lado ou outro para ser efetivamente implementada. É, inclusive, ancorado em tal raciocínio que Schmitt declarará, mais adiante, o constitucionalismo liberal como uma concepção jurídica essencialmente despolitizada, alheia a discussões políticas, lacuna que, segundo o autor, incumbiria ao paradigma do Estado total, “que não conhece nada que seja absolutamente apolítico”, colmatar, arrastando a política para setores estatalmente disfuncionais, o que não significa, no entanto, que todos os setores devem ser politizados, mas que a política funciona como garante dos direitos mais elementares até mesmo em esferas em que não lhe compete intervir diretamente.

Para Schmitt, a contraposição amigo-inimigo só pode ser corretamente assimilada a partir da política concebida como conceito autônomo, topograficamente localizado nointerregnum entre as categorias moral, jurídica, econômica, etc. e a ficção da neutralidade, o que não significa que ela não se encontra imbricada com questões éticas, eclesiásticas ou sócio-ideológicas. A tese central do autor é que o político, enquanto ubiquidade, não deriva de fatores remotamente estabelecidos a partir de um encadeamento causal-naturalístico, como querem os jusnaturalistas, tampouco pode ser deduzido de critérios de estrita legalidade balizadores do pensamento juspositivista. A política sequer é uma esfera específica do Estado, a teor do que proclamam equivocadamente os administrativistas. O político se erige em condição legítima de possibilidade da caracterização de um inimigo público, na medida em que “o inimigo não é, portanto, o concorrente ou o opositor em geral. O inimigo também não é o opositor privado que se odeia com sentimentos de antipatia. O inimigo é, apenas, uma totalidade de homens pelo menos eventualmente combatente, isto é, combatente segundo uma possibilidade real, a qual se contrapõe a uma totalidade semelhante. O inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo aquilo que tem relação com uma tal totalidade de homens, em particular, com todo um povo, se torna por isso público. O inimigo é hostis, nãoinimicus em sentido mais amplo”, (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 55 e 56)   

Em Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Jus Publicum Europaeum, nos deparamos com uma investigação extremamente pormenorizada acerca do conflito entre terra firme e mar livre no contexto de diferentes ordenações espaciais, dentre as quais se destaca o Direito das Gentes inter-estatal europeu pela abolição do instituto medieval da iusta causa belli, que considerava “justos” e, portanto, legítimos a desbravar e titularizar oficialmente as terras colonizadas somente os membros da Ordo cristã medieval em detrimento dos não-cristãos, que, por sua vez, não eram contemplados pela aquisição originária do solo. Para Francisco de Vitória, criador do conceito de Guerra Justa, o “inimigo” era sinônimo de criminoso, e tão somente membros da Igreja possuíam legitimidade ativa para declarar guerra. Citando Hugo Grotius, Carl Schmitt aduz que “desde Grotius que é em geral reconhecido que a justiça não pertence ao conceito da guerra. As construções que exigem uma guerra justa servem habitualmente, elas mesmas, um fim político. Requerer de um povo politicamente uno que só faça guerra a partir de um fundamento justo ou é algo inteiramente óbvio, se isso quiser dizer que só se deve fazer guerra contra um inimigo real; ou esconde-se atrás disso o propósito político de depositar em outras mãos a disposição sobre o jus belli e de encontrar normas de justiça sobre cujo conteúdo e aplicação no caso singular não é o próprio Estado que decide, mas um qualquer outro terceiro que, desta maneira, determina quem é o inimigo”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 90 e 91)

A superação dos direitos eclesiástico e estamental realizada nos séculos XVI e XVII por juristas humanistas como Alberico Gentili, um dos precursores do Direito Internacional Moderno, foi o marco da institucionalização do Direito de Guerra, cuja compreensão viria a culminar no jus publicum europaeum, de acordo com o qual todo e qualquer Estado soberano não só detém a faculdade do jus ad bellum como deve ser considerado como um igual perante os demais Estados soberanos que em face dele disputam determinado território ou causa de que a guerra é objeto, figurando como portador legítimo do status de justus hostis. O inimigo deixa de ser juridicamente recriminado em prol da exigibilidade de uma postura inter-estatal equitativa ou igualitária, e a própria guerra civil cede espaço à guerra estatal. “A guerra se converte, pois, em ‘uma guerra em forma’ pelo mero fato de que se transforma em guerra entre Estados europeus claramente delimitados enquanto ao espaço, em uma disputa entre as entidades espaciais imaginadas como personae publicae que compõem sobre o solo europeu comum a ‘família’ europeia, e que têm assim a possibilidade de considerarem-se reciprocamente como iuste hostes” – tradução livre do espanhol. (SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra En el Derecho de Gentes del “Jus publicum europaeum", p. 135) Em Gentili, o Direito das Gentes é desteologizado, e, no lugar da Igreja Cristã, o Estado secular reivindica para si o monopólio da determinação paradigmática de amigo-inimigo, o que se expressa com clareza meridiana no famigerado brocardo: Silete theologi in munere alieno.  É nesse sentido que Schmitt obtempera que o inimigo deve ser compreendido, em essência, como hostis, e jamais como inimicus, haja vista que, para os escopos do jus gentium, a figura do inimigo há de coincidir necessariamente com a figura do estrangeiro ou representante político de um grupamento territorial político-paradigmaticamente estruturado.

Interessante analogia, realizada por Carl Schmitt em Politische Theologie, serve ao escopo de elucidar a transição da Idade Média cristã de matriz teológico-metafísica para o paradigma do Estado de Direito Moderno. Tal consiste em identificar o instituto do milagre característico da cristandade medieval com o estado de exceção. É precisamente aqui que, segundo Schmitt, reside a chave para a compreensão da evolução do pensamento político-filosófico, nos seguintes termos: “todos os conceitos centrais da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados. Isso é certo não só em razão de sua evolução histórica, enquanto foram transferidos da teologia à teoria do Estado, convertendo-se, por exemplo, o Deus onipotente no legislador todo-poderoso, mas também em razão de sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é imprescindível para a consideração sociológica desses conceitos. O estado de exceção tem na jurisprudência significação análoga ao milagre da teologia. Só tendo consciência dessa analogia é possível conhecer a evolução das ideias filosófico-políticas nos últimos séculos. Porque a ideia do moderno Estado de Direito a par do deísmo, com uma teologia e uma metafísica que baniram do mundo o milagre e não admitem a violação com caráter excepcional das leis naturais implícita no conceito do milagre é produzido por intervenção direta do soberano no ordenamento jurídico vigente. O racionalismo da época do Iluminismo não admite o caso excepcional em nenhuma de suas formas. Por isso a convicção teísta dos escritores conservadores da contrarrevolução puderam fazer o ensaio de fortalecer ideologicamente a soberania pessoal do monarca com analogias retiradas da teologia teísta” –tradução livre do espanhol (SCHMITT, Carl. Teología Política, vol. 2, p. 37)          

Dessarte, em Schmitt, é ao titular do poder soberano, e não mais à Igreja Medieval, que compete decidir em última instância a respeito do estado de exceção, é dizer, acerca da suspensão da vigência das instituições jurídicas durante o período de guerra. Também é ele, como representante popular por excelência, o Guardião da Constituição, ao contrário do que assinala o normativismo kelseneano, que, a seu turno, atribui à Corte Constitucional, órgão de cúpula da República de Weimar, legitimidade para realizar o controle de constitucionalidade concentrado, um dos principais corolários da tese sufragada em Jurisdição Constitucional.

Embora historicamente o normativismo tenha logrado maior êxito do que o decisionismo em matéria fática, a contribuição decisionista se revela mais defensável, sobretudo internacionalmente, por dar maior ênfase à soberania estatal em tempos em que esta última se torna alvo de um processo de relativização inclinado ao atendimento de interesses globalistas presididos hegemonicamente por superpotências transnacionais. De qualquer sorte, importa aqui perceber que, diferentemente do direito medieval, o direito moderno confere ao inimigo um caráter heurístico, eliminando a possibilidade de este ser reconhecido privadamente. Isto porque um inimigo é obrigatoriamente um inimigo do todo de um grupamento territorial, e não de um indivíduo atomizado, destacado do tecido da realidade jurídico-política de uma comunidade espacialmente delimitada.

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Distintamente de Hans Kelsen, por um lado, cujo intento de construir uma ciência do direito que pudesse ser considerada neutra talqualmente a matemática e a biologia, obliterando quaisquer resíduos moral, político e religioso, é dizer, rompendo com o “sincretismo metodológico” e, de conseguinte, com a possibilidade de se deduzir o ser do dever ser – ver A Teoria Pura do Direito -, e Jürgen Habermas, por outro, que atribui ao procedimento de tomada de decisões coletivas, ou, mais especificamente, ao princípio da maioria, um caráter neutro, supostamente hábil a garantir, a um só tempo, o exercício das autonomias pública e privada pelos co-legisladores (cidadãos detentores do status de membros de uma comunidade jurídica simultaneamente autores e destinatários das normas que eles se dão a si mesmos) de modo que o direito das minorias não seja violado – ver Direito e Democracia: Entre Faticidade e Validade e A Inclusão do Outro -, Carl Schmitt não se deixa iludir pela quimera da neutralidade. A Kelsen podemos objetar, com lastro no decisionismo schmitteano, que é a política enquanto possibilidade concreta de desencadeamento de litigiosidades, e não uma “norma hipotética fundamental” (Grundnorm) imaginária,  que justifica e mobiliza, atual e potencialmente, um ordenamento jurídico. Qualquer questão é, primariamente, uma questão política, e apenas secundariamente uma questão jurídica, social ou religiosa. Da mesma monta, a guerra só pode ser adequadamente compreendida como possibilidade de determinação do inimigo real, motivo pelo qual há de ser deflagrada por razões de natureza política que só mais tarde passará a submeter as potências beligerantes ao crivo do jus belli e eventualmente encerradas mediante Tratado de Paz. Podemos extrair do seguinte escólio uma clara demonstração de como o político passa não só a habitar o centro magnético de questões morais, religiosas, econômicas, etc., como também a determinar em caráter decisivo todas as questões envolvendo qualquer uma dessas categorias:

“Cada contraposição religiosa, moral, económica, étnica ou outra transforma-se numa contraposição política quando é suficientemente forte para agrupar efectivamente os homens segundo amigo e inimigo. O político não está no combate ele mesmo, o qual, por seu lado, tem as suas próprias leis técnicas, psicológicas e militares, mas, como se disse, numa relação determinada por esta possibilidade real, no claro reconhecimento da situação própria, determinada por ela, e na tarefa de diferenciar correctamente amigo e inimigo. Uma comunidade religiosa que, enquanto tal, faz guerras, seja contra os membros de outras comunidades religiosas, seja outro tipo de guerras, é, para além de comunidade religiosa, uma unidade política (...) O mesmo vale para uma associação de homens que repouse numa base económica, por exemplo, para um grupo industrial ou para um sindicato. Também uma ‘classe’, no sentido marxista do termo, deixa de ser algo puramente económico e se torna numa grandeza política quando alcança este ponto decisivo, isto é, quando leva a sério a ‘luta’ de classes, quando trata o opositor de classe como inimigo real e o combate, seja como Estado contra Estado, seja numa guerra civil no interior de um Estado. O combate real já não se joga então, de um modo necessário, de acordo com leis económicas, mas tem – juntamente com os métodos de combate em sentido mais estrito – as suas necessidades políticas, e orientações, coligações, compromissos, etc. Se, no interior de um estado, o proletariado se apoderar do poder político, então terá surgido precisamente um Estado proletário que não é menos uma formação política do que um Estado nacional, um Estado sacerdotal, um Estado comercial ou um Estado de soldados, um Estado de funcionários ou qualquer outra categoria de unidade política. Se toda a humanidade chegar a agrupar-se como amigo e inimigo em Estados proletários e capitalistas, segundo a contraposição entre proletários e burgueses, e se nisso desaparecerem todos os outros agrupamentos amigo-inimigo, mostra-se então toda a realidade do político mantida por estes conceitos que, à partida, aparentam ser ‘puramente’ económicos. Se a força política de uma classe ou de outros grupos dentro de um povo for apenas até ao ponto de poder impedir qualquer guerra que seja feita em relação ao exterior, sem ela mesma ter a capacidade ou a vontade de assumir o poder estatal de diferenciar, a partir de si, amigo e inimigo e de, caso seja preciso, fazer guerra, então a unidade política está destruída”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 69 á 71)

Impossível deixar de notar que na concepção schmitteana, os conceitos de “guerra”, “soberania” e “amigo-inimigo” são entremeados e coordenados pelo conceito do político, que, dotado de um caráter universal, articula a partir do vértice todas as mobilizações internas e externas à unidade política, dentro da qual se revela como eventualidade real. Daí a plausibilidade da tese que confere ao Chefe de Estado, titular da soberania política, determinar, em nome da coletividade por ele representada, quem é o inimigo a ser combatido, de modo que qualquer tentativa no sentido de dissociar a política da moralidade, religiosidade ou qualquer outra categoria da vida ativa, sobeja paradigmaticamente desnaturada. Especificamente no final da passagem retro-transcrita, percebemos que uma determinada unidade política só estará sepultada em definitivo quando a guerra e, de conseguinte, a possibilidade de contrapôr amigo e inimigo já não for mais factível no marco de uma inter-estatalidade utópica que supere em peso a mera pretensão de uma humanização do Direito Internacional Público. Isso porque “um povo politicamente existente não pode, portanto, renunciar a diferenciar amigo e inimigo, num caso dado, através de uma determinação própria e por sua própria conta e risco” (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, p. 92)      

Não obstante o esforço despendido por Immanuel Kant no sentido de postular, no século XVIII, antes mesmo da criação da praticamente natimorta Liga das Nações, uma concepção filosófica da Paz Perpétua na qual pudesse basear a expectativa de criação de uma federação de Estados soberanamente instituídos (foedus pacificum) atados por um liame de moralidade – é dizer, independentemente de quaisquer instituições jurídicas capazes de fazerem valer as consequências do ilícito internacional -, enfrentamos hoje, com a Organização das Nações Unidas, problemas nucleares que transformam o ato de pensar um mundo sem guerra em fruto de especulações pouco aproveitáveis desde uma perspectiva teórico-prática. Consoante sentencia acertadamente Carl Schmitt, Kant era filósofo, e não jurista. Seu idealismo possui valor contemplativo, mas nada comparável ao realismo schmitteano em matéria de solução de conflitos. Juridicamente, a Paz Perpétua kantinana merece tanta credibilidade quanto a Utopia de Thomas Morus, na medida em que acredita poder subsumir a totalidade das questões políticas à formulação geral do imperativo categórico, que, transplantada para o âmbito do Direito Internacional Público, significa que a máxima orientadora da conduta de um Estado determinado deve ser compatível com as máximas norteadoras das condutas da universalidade dos demais Estados soberanos, ou, nas palavras do autor, “age de tal modo que possas querer que a tua máxima se torne uma lei universal (seja qual for o fim que ele queira)” (KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico, p. 41), tentativa inócua de justificar moralmente e não politicamente as relações inter-estatais. A inexequibilidade de tal postulado reveste-se daquele tipo de auto-evidência que dispensa maiores comentários.     

Outra distinção importante para a delimitação conceitual de uma unidade político-paradigmática cujo representante soberano titulariza o direito de declaração de hostis, seja pela inobservância do conteúdo de um tratado internacional, seja pela violação escancarada de sua soberania política por terceiros, concerne a uma confusão introduzida pelo pluralismo anglo-saxônico no âmbito da Teoria do Estado, de acordo com o qual o que enseja o agrupamento de indivíduos em um corpo social unificado não é um único, mas vários fatores confluentes: política, religião, moral, sociedade (entendida aqui em acepção estritamente liberal-individualista), cultura, etc. Tal concepção descentralizante obstaculiza a apreensão existencial-paradigmática do conceito do político na medida em que deposita a ratio essendi do agrupamento em uma pretensa “associação” (governamental association) de indivíduos livres, e não em uma unidade política no sentido forte, paradigmático. Schmitt contrapõe a essa assertiva a tese de que, não por acaso, ela tende a degradar naquela espécie de federalismo societário que vê na máquina estatal um mero instrumento a serviço da satisfação de necessidades individuais. Para Schmitt, “(...) não há nenhuma ‘sociedade’ ou ‘associação’ política, há apenas uma unidade política, uma ‘comunidade’ política. A possibilidade real do agrupamento de amigo e inimigo é suficiente para criar, para além daquilo que é meramente associativo-societal, uma unidade paradigmática, a qual é algo especificamente diferente e algo decisivo em relação às restantes associações. Se esta unidade, mesmo numa eventualidade, faltar, falta também o próprio político”. (SCHMITT, Carl. O Conceito do Político, pgs. 82 e 83) 

Releva acrescentar, a título de conclusão, que, embora academicamente vilipendiado e sub-valorizado, o decisionismo de Carl Schmitt permanece mais atual do que jamais logrou ser numa época em que a política é vista, não como ubiquidade fundante a penetrar o cerne de questões publicamente debatidas, mas como um conceito puramente pragmático de justificabilidade do individualismo liberal, no seio do qual manobras abstratas prevalecem sobre a possibilidade real de contraposição de amigo e inimigo a partir de critérios estritamente político-paradigmáticos. Não obstante a insistência por parte de setores específicos da sociedade civil em camuflar a necessidade de uma definição de amigo e inimigo, é imprescindível admiti-la, ainda que para fins de ressoberanização de Estados que vêm perdendo sua influência decisória na comunidade internacional hodierna. Tal contraposição só pode ser efetuada se se considera os grupamentos sociais como unidades políticas soberanas territorialmente delimitadas que não podem nem devem se furtar de defender seus interesses através das armas, hipótese em que serão consideradas reciprocamente como justus hostis pelo Direito de Guerra inter-estatal.  Sobeja, outrossim, infundado pretender separar as categorias moral, jurídica, cultural, religiosa, etc. de seu substrato político, haja vista que, conforme examinado alhures, onde há combate de qualquer natureza, há política, e somente a política pode servir, em última instância, como garante dos direitos fundamentais, ao contrário do que sustentam Kelsen e Habermas, por um lado, enfatizando a neutralidade, e Kant por outro, enfatizando a moralidade.   

REFERÊNCIAS:

SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Edições 70: Lisboa, 2015.

SCHMITT, Carl. El Nomos de la Tierra En el Derecho de Gentes del “Jus publicum europaeum”. Editorial Struhart y Cía: Buenos Aires.

SCHMITT, Carl. Teología Política, vol. 2. Editorial Trotta: Madrid, 2009.

KANT, Immanuel. A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico. Lusofia: Covilhã, 2008.

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