O paradigma jurídico-processual da comparticipação: uma análise do art. 10 do Novo CPC

11/02/2016 às 09:32
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Analisa o art. 10 do CPC de 2015 à luz do conceito de comparticipação, enfatizando a apreciação do mérito no novo diploma processual e o contraditório dinâmico.

Considerações iniciais

A presente investigação analisa o art. 10 da Lei 13.105 de 16 de março de 2015, que institui o novo Código de Processo Civil, consistente na reestruturação do paradigma jurídico-processual à luz de modernas concepções doutrinárias. Quer-se, com isto, demonstrar, mediante um retrospecto aniquilatório de módulos processuais ultrapassados, a instituição de um sistema comparticipativo/cooperativo vocacionado para a superação do protagonismo judicial, elegendo como prioridade o deslinde do mérito desde uma perspectiva policêntrica, a partir da qual as partes passam efetivamente a intervir, junto ao magistrado, na construção do provimento.

Para este desiderado, será feito, de introito, uma breve exposição acerca das principais teorias do processo (concepções instumentalista, estruturalista e procedural) para que seja possível, em um segundo estágio, evidenciar, com rigor sistemático, a transição para o modelo processual cooperativo do CPC de 2015.

Como ficará assente em momento oportuno, esta reviravolta repercute diretamente no próprio conceito de Estado Democrático de Direito, e nos induz a repensar criticamente o trinômio contraditório -ampla defesa- isonomia, de modo a inserir todos os sujeitos processuais naquilo que parcela da doutrina contemporânea denomina uma “comunidade de trabalho”.

A já há muito superada proposta instrumentalista que compreende o processo como relação jurídica entre autor, juiz e réu, atribuindo ao magistrado a faculdade discricionária de julgar o caso concreto com base em escopos meta-jurídicos sobeja inadmissível em um Estado de Direito pretensamente Democrático. O mesmo se aplica, embora em menor medida, ao estruturalismo fazzalariano, que define o processo como um procedimento em contraditório entre as partes.

1.       A teoria do processo como relação jurídica entre autor, juiz e réu

Desenvolvida por Oskar von Bülow na segunda metade do século XIX, a teoria do processo como relação jurídica entre as partes vingou em uma época em que não havia um pensamento crítico-reflexivo em torno dos institutos processuais do contraditório, ampla defesa e isonomia, de maneira que alguns autores , dentre eles Andréia Alves de Almeida, qualificam tal corrente instrumentalista de “positivismo híbrido” (ALMEIDA, Andreia Alves de: 2005, p. 100) para designar o pragmatismo estratégico dos litigantes a partir do ordenamento jurídico positivo.

Tal concepção, que, segundo Almeida, continuou, lamentavelmente orientando a conduta dos magistrados durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973, é definida pelo neoinstitucionalista Rosemiro Pereira Leal, como:

“(...) o marco da autonomia do Processo ante o conteúdo do direito material. É que Bülow trabalhou pressupostos de existência e desenvolvimento do processo pela relação juiz, autor e réu em que, para validade e legítima constituição do processo, seriam necessários requisitos que o juiz, autor e réu, deveriam cumprir conforme disposto em lei processual, enquanto o direito disputado e alegado pelas partes se situava em plano posterior à formação do processo, distinguindo-se pela regulação em norma de direito material, criadora do bem da vida que define a matéria de mérito”. (LEAL, Rosemiro Pereira: 2012, p. 83)      

Um dos grandes representantes desta vertente no âmbito do direito processual civil brasileiro fora Enrico Tullio Liebman, discípulo de Bülow. Pode-se dizer que a estrutura normativa do CPC de 1973 foi quase que totalmente baseada na concepção instrumentalista do processo, conferindo plenos poderes discricionários ao juiz, que, localizado no topo da hierarquia piramidal, podia evocar razões de natureza meta-jurídica (v.g., critérios de conveniência e oportunidade) na elaboração do provimento jurisdicional. O papel das partes ficara, portanto, mitigado, relegado ao segundo plano em prol da discricionariedade solipsista do julgador.

O processo é convertido, assim, em um mero instrumento de efetivação do direito material alegado pelas partes, distinguindo-se deste último em três aspectos, que são listados por Cintra, Grinover e Dinamarco nos seguintes termos: “a) pelos seus sujeitos (autor, réu e Estado-juiz); b) pelo seu objeto (a prestação jurisdicional); c) pelos seus pressupostos (os pressupostos processuais)”. (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel: 2003, p. 280)   

Não é despiciendo acrescentar que a concepção instrumentalista do processo como uma relação jurídica entre autor, juiz e réu termina por cercear o direito ao contraditório, porque as partes passam a dispor de um espaço microscópico de argumentação e debate; à isonomia, devido à exponencialização do papel do magistrado em todo o iter procedimental; e à ampla-defesa, na medida em que tal perspectiva concede ao juiz uma espécie de carta de alforria voluntarista para decidir em caráter extra petita, ultra petita ou citra petita, conforme suas convicções e juízos de valor subjetivos, em detrimento dos limites do objeto da demanda levada à sua apreciação, razões pelas quais essa concepção não preenche os pré-requisitos de admissibilidade de um Estado de Direito pretensamente Democrático. Nesse sentido, Dierle José Coelho Nunes pontifica, acertadamente que:

“(...) não há como se creditar papéis salvacionistas e paternalistas a terceiros, uma vez que cada cidadão assume a responsabilidade pelos princípios elementares de sua vida em comum na sociedade, não podendo mais recorrer a uma autoridade transcendente que o alivie de suas decisões (GÜNTHER, 2002, p. 109). Ao contrário, o Estado constitucional, democrático assegura, mediante balizas processuais, constitucionais (princípios constitucionais), uma participação constante e efetiva dos sujeitos de direito, que a estes permite uma colaboração na formação dos provimentos (leis, decisões judiciais, atos administrativos) dos quais sofrerão os efeitos”. (NUNES, Dierle José Coelho: 2012, pgs. 196 e 197)

Demais disso, pode-se contrapor à corrente instrumentalista, o argumento de Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Pedron, extraídos de obra dedicada exclusivamente à sistemática do Novo CPC, sobre o art. 10 do referido diploma legal, ao qual voltaremos a nos referir detidamente em tópico posterior. Por ora, cumpre assinalar que:

“Uma das bases da perspectiva democrática, trazida no Novo CPC, reside na manutenção da tensão entre perspectivas liberais e sociais, impondo que a comunidade de trabalho deva ser revista em perspectiva policêntrica e comparticipativa, afastando qualquer protagonismo e se estruturando a partir do modelo constitucional de processo, induzindo a convivência de poderes diretivos e gerenciais do juiz com uma renovada autonomia privada das partes e dos advogados (como, v.g., na cláusula de negociação processual – art. 189), mediante as balizas do contraditório como garantia de influência (art. 10) e na fundamentação estruturada (art. 486) que fomentarão o melhor debate de formação decisória, que permitirá a diminuição das taxas de recursos e, ainda, imporá a diminuição do retrabalho processual na medida em que todos deverão exercer na primeira vez sua atividade com alta responsabilidade”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud: 2015, p. 56)          

2.       A teoria estruturalista do processo

Um dos grandes críticos do entendimento anteriormente analisado de que o processo constitui uma relação jurídica trilateral entre as partes foi o italiano Elio Fazzalari, criador da denominada teoria estruturalista do processo. Para Fazzalari, o que caracteriza o processo é o fato de este ser um procedimento estruturado em contraditório entre as partes, à maneira de uma sucessão de atos dirigida à consecução de um provimento final que encerrará o módulo processual cognitivo. Nesse diapasão, Cintra, Grinover e Dinamarco aduzem que:

“Em tempos mais recentes, na Itália surgiu o novo pensamento de Elio Fazzalari, repudiando a inserção da relação jurídica processual no conceito de processo. Fala do ‘módulo processual’ representado pelo procedimento realizado em contraditório e propõe que ,no lugar daquela, se passe a considerar como elemento do processo essa abertura à participação, que é constitucionalmente garantida”. (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel: 2003, p. 285)

Não se pode negar que a concepção fazzalariana constitui um avanço para a ciência processual relativamente à teoria de Bülow, na medida em que, além de reformular todo o arcabouço jurídico-processual que até então se lograra construir, acabou contribuindo para a ampliação do espaço de discursividade, trazendo as partes (autor e réu) para mais perto do magistrado, cuja decisão estava, doravante, inextrincavelmente vinculada ao princípio do contraditório, que passou a adquirir status de dispositivo constitucional, como aduz Cintia Garabini Lages na seguinte passagem:

“Nesse sentido, à luz da Constituição Federal de 1988, a distinção entre Direito Processual Constitucional e Direito Constitucional Processual perde totalmente o sentido, ao mesmo tempo que ganha destaque a teoria do processo como procedimento realizado em contraditório entre as partes, vez que o contraditório, enquanto garantidor da lógica argumentativa expendida no processo, legitima o provimento enquanto decisão participada”. (LAGES, Cintia Garabini: 2004, p. 474)

Todavia, a construção fazzalariana ainda não atinge um grau satisfatório de abertura à participação de todos os afetados pelo provimento jurisdicional, haja vista que, a despeito de ter formulado uma distinção entre processo e procedimento mediante baliza institucional do contraditório, ainda não há qualquer garantida de efetivação de que este direito será respeitado pelo magistrado no caso singular. Destarte, a teoria estruturalista do processo é refutada pela concepção neoinstitucionalista de Rosemiro Pereira Leal, a teor do que se colhe no seguinte excerto:

“O que seria de anotar na teoria fazzalariana do Processo, ponto fulgurante, neste século, do estudo do Direito Processual, é que Fazzalari, ao distinguir Processo e procedimento pelo atributo do contraditório, conferindo, portanto, ao procedimento realizado pela oportunidade do contraditório a qualidade de Processo, não fê-lo originariamente pela reflexão constitucional de direito-garantia ou de instituição constitucionalizada regente dos procedimentos como preconiza minha teoria neoinstitucionalista do processo. Sabe-se que hoje, em face do discurso jurídico-constitucional das democracias, o contraditório é instituto do Direito Constitucional e não mais uma qualidade que devesse ser incorporada por parâmetros doutrinais ou fenomênicos ao procedimento pela atividade jurisdicional. É o contraditório conquista teórica juridicamente constitucionalizada em direito-garantia que se impõe como instituto legitimador da atividade jurisdicional no Processo”. (LEAL, Rosemiro Pereira: 2012, pgs. 87 e 88)

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Na esteira deste raciocínio, Andréa Alves de Almeia assinala que:

“(...) a teoria do processo como procedimento realizado em contraditório de Fazzalari, embora tenha contribuído para a democratização do discurso processual, não conceituou o processo como instituição constitucionalizada regente de toda estrutura procedimental, deixando que o princípio de contraditório adquira força pela coercitividade autopoiética legalista, manipulada estrategicamente pelos instrumentalistas do Estado burguês de direito”. (ALMEIDA, Andréa Alves: 2005, p. 73)

Em que pese o conteúdo da querela doutrinária ora descrita, impende constatar que, pelo fato de não ter enxergado o princípio do contraditório como um direito-garantia a ser constitucionalmente assegurado em todas as fases de desenvolvimento endoprocessual no espaço-tempo procedimental e, de conseguinte, deixado brecha para o já mencionado solipsismo jurisdicional, o estruturalismo fazzalariano acabou ultrapassado pela compreensão procedural do processo, que passaremos a analisar no próximo tópico, antes de adentrar a questão da comparticipação/ cooperação no Código de Processo Civil de 2015.  

3.       A concepção procedural do processo

A compreensão procedural se insere, no âmbito da ciência processual, como uma tentativa de reconciliar as concepções liberal e republicana clássica de democracia desde uma perspectiva linguístico-discursiva capaz de equacionar argumentativamente os pronunciamentos das partes litigantes, que deixam de ser meras destinatárias do provimento que modificará sua esfera de interesses para se tornarem cidadãos portadores do status de membros de uma comunidade jurídica que passarão a intervir ativamente na construção da decisão participada.  

Isso se dá, naturalmente, através de pressupostos linguísticos de participação e comunicação, que passarão a normatizar todo o procedimento deliberativo de formação racional da vontade. Para Habermas:

“Nos ‘discursos’, os participantes, à medida que procuram convencer uns aos outros com argumentos, querem atingir visões comuns, enquanto nas ‘negociações’ [Verhandlungen] visam equacionar os seus interesses diferentes (...) Se, então, tais discussões (e negociações) constituem o local em que uma vontade política racional pode se formar, a suposição de resultados legítimos, que deve fundamentar o procedimento democrático, tem de se apoiar, em última instância, em um arranjo comunicativo: as formas de comunicação necessárias para uma formação racional da vontade – e, portanto, garantidora de legitimidade – do legislador político devem ser, por sua vez, institucionalizadas juridicamente”. (HABERMAS, Jürgen: 2001, pgs. 147 e 148)   

Além de preconizar o entendimento de que o procedimento de formação racional da vontade deve se movimentar num espaço de isonomia participativa, também é mérito de Habermas a ideia de interpenetração das autonomias pública e privada como corolários dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Nesse diapasão, Lúcio Antônio Chamon Júnior preleciona:

“Em uma compreensão procedimental do Estado Democrático de Direito não há que se falar na prevalência do público ou do privado, mas antes numa co-dependência que não pode ser cortada senão sob o perigo de não se considerar a construção legítima das decisões políticas e da produção do Direito. Neste sentido, portanto, se a autonomia privada se refere a uma seara em que indivíduos reconhecem reciprocamente, e a todos, determinados direitos a fim de possibilitar a construção de um projeto de vida rumo à sua própria, e individual (privada), auto-realização ética – inclusive reconhecendo âmbitos para o agir estratégico -, a autonomia pública, por sua vez, é referente a um campo aberto às discussões, enfim, a um espaço discursivo aberto em que, também aqui, reconhecem-se, a todos, direitos de igual inserção nos debates. Assim é que fica estabelecida uma co-dependência entre a autonomia privada e pública”. (CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio: 2007, p. 166)

A concepção procedural habermasiana exerceu influência decisiva na elaboração dos dispositivos do Novo CPC, sobretudo no art. 10, que, combinado com os arts. 6º e 7º do mesmo diploma legal, significa que a sistemática do novo Código passou a priorizar o julgamento do mérito de maneira eficiente, observando a razoável duração do processo de modo que as partes passem a intervir ativamente na construção da decisão. Nesse diapasão, “pressupõe-se, pois, que a legitimidade procedimental dos resultados de qualquer discurso depende, não somente da legitimidade das regras segundo as quais foi estatuído, como também de pontos de vista temporais, sociais e objetivos”. (HABERMAS, Jürgen: 2003, p. 164)

O que diferencia o Novo CPC do CPC de 1973 neste aspecto é o fato de que a nova legislação civil-processual traz expressamente essas considerações, que, no velho CPC, só podiam ser extraídas mediante interpretação, o que muito obstaculizava em termos de efetividade a garantia ao contraditório e à participação ativa dos sujeitos processuais na elaboração do provimento final.

Conforme já assinalado, o CPC de 1973 se estribava na vetusta sistemática bülowiana que, ao fixar pressupostos processuais, acabou relegando a apreciação do direito material para segundo plano. Doravante, e a contrario sensu, a apreciação do mérito passa a ser prioridade máxima do julgador, mas somente na medida em que determinados pressupostos sejam observados, como se verificará adiante.

4.       Uma interpretação do art. 10 do Código de Processo Civil de 2015 à luz do paradigma cooperativo/comparticipativo do processo

Antes de prosseguir com nossa investigação, vejamos o que dispõe, in verbis, a intelecção do art. 10 da Lei 13.105 de 16 de março de 2015, que institui o novo Código de Processo Civil:

“Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

Tal dispositivo se insere na órbita daquilo que Theodoro Júnior, Nunes, Bahia e Pedron mui convenientemente denominaram “contraditório dinâmico”, que se diferencia do contraditório estático pertencente à sistemática do CPC de 1973 pelo fato de ir além do “(...) mero direito à bilateralidade de audiência – mero direito de dizer e contradizer”. O contraditório dinâmico passa a ser, então, compreendido, no novo sistema jurídico-processual instituído pelo CPC de 2015 como um “direito de participação na construção do provimento, sob a forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud: 2015, p. 62)

A repercussão prática do novo modelo implica na atribuição de responsabilidade das partes no tocante à apresentação clara e inequívoca de sua argumentação logo na inicial ou na contestação. Isso, a longo prazo, pode contribuir tanto para a mitigação do retrabalho judicial, consoante verificado alhures, como para o estreitamento da discricionariedade do Estado-juiz, na medida em que a este último competirá tão-somente julgar a lide nos limites do pedido. Nada disso, por mais óbvio que se afigure em sede doutrinária, vinha expresso no bojo do inquisitorial CPC de 1973, que, a seu turno, dava azo a toda sorte de protagosnismo judicial.

Hoje, ao contrário, é imperativo que o juiz, ao decidir o caso sub judice, fundamente juridicamente sua decisão. Desta feita, Dierle Nunes e Alexandre Melo Franco Bahia, em artigo intitulado “Precedentes do CPC-2015: por uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil”, asseveram que:

“(...) para que a decisão seja considerada fundamentada (art. 489, § 1º), da mesma forma que não basta apenas citação de lei, não basta a mera invocação de precedente ou súmula. O magistrado tem de mostrar de que forma estes se moldam ao caso, o que significa aquele exercício hermenêutico de que tratamos, a saber, seja no caso de precedente, seja no de Súmula, há de haver o confronto entre questões de fato e de direito entre o paradigma e o caso sub judice”. (NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco: 2015, p. 33)  

Outra inovação trazida pelo novel diploma civil-processual refere-se a já mencionada exigência de instauração de um paradigma processual comparticipativo/cooperativo, mediante o qual as partes passam a intervir junto ao magistrado na elaboração da decisão. Tal consiste, basicamente, na construção de uma “comunidade de trabalho” que já havia logrado êxito na experiência alemã, conforme se verifica no seguinte escólio:

“A denominada ‘comunidade de trabalho’ (Arbeitsgemeinschaft) entre juiz e partes (e seus advogados), idealizada pela doutrina tedesca e que, levada a sério, permitiu na Alemanha uma formação unitária dos futuros magistrados e advogados, impediu que a relação entre estes se transformasse em conflito de categorias, além de delinear na doutrina processual a idealização do policentrismo processual, que afasta qualquer concepção de protagonismo”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud: 2015, p. 55)

Dessarte, torna-se nítido o quão distante tal concepção dinâmica balizadora do instituto processual do contraditório se encontra relativamente à pretensão instrumentalista a um liame jurídico entre juiz, autor e réu, por um lado, e o quão próximo está do ideal habermasiano de garantia constitucional simultânea das autonomias pública e privada por outro, pelo que a ampliação do espaço de deliberação intersubjetiva na construção do provimento jurisdicional há de ser considerada, no marco de uma procedimentalidade democrática, pressuposto de legitimidade da decisão prolatada:  

“Tal premissa otimiza o funcionamento processual na medida em que, de um lado, cria ferramentas de fiscalidade para o comportamento de todos os sujeitos, e, de outro, induz que o processo oferte  máximo de aproveitamento de sua atividade (com a prevalência do julgamento do mérito) com idas e vindas decorrentes, por exemplo, da esperteza dos advogados ou da negligência do juiz ao analisar argumentos essenciais para o deslinde correto do caso”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud: 2015, p. 52)

Considerações finais

De todo o acima exposto, conclui-se que o policentrismo processual, instituído pelo paradigma da comparticipação/cooperação no âmbito da ciência do processo, erige-se em um rompimento com as velhas e mofadas teorias processuais que influenciaram a estruturação do CPC de 1973, conferindo primazia à apreciação do mérito de modo a assegurar, em todo o iter procedimental, a garantia ao instituto do contraditório, que, frise-se a exaustão, deixa de ser compreendido em acepção estática de uma mera bilateralidade da audiência e passa a se inserir na constelação de uma sistemática vocacionada para o estreitamento do protagonismo judicial mediante a exigência da instauração de uma comunidade de trabalho, no seio da qual todos os sujeitos processuais possam interferir ativamente na construção do provimento jurisdicional.  

Nada disso vinha expresso no texto do Código de Processo Civil de 1973, de modo que o grande mérito do CPC de 2015 foi viabilizar uma leitura dos institutos processuais, eliminando quaisquer dúvidas ou impropérios referentes ao papel das partes na estruturação do procedimento democrático que afetará sua condição de partícipe de uma dada relação jurídico-processual.

Todas as considerações aqui expendidas só podem ser adequadamente compreendidas desde a perspectiva de um normativismo democrático lastreado na viabilização concomitante das autonomias pública e privada, em flagrante contraste com o solipsismo judicial de matriz instrumentalista, que, em vez de ampliar o espaço de discursividade à participação processual dos litigantes juntamente ao Estado-juiz, acaba fomentando a ideia de que o magistrado encontra-se livre para julgar o caso concreto com base em escopos meta-jurídicos, é dizer: fora dos limites do pedido, concepção que não se coaduna com o paradigma de um Estado Democrático de Direito. Tudo isso pode ser abstraído de uma interpretação sistêmica do conteúdo do art. 10 da Lei 13.105 de 16 de março de 2015.   


  REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Andréa Alves de. Processualidade Jurídica e Legitimidade Normativa. Editora Fórum: Belo Horizonte, 2005.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeiros estudos. Forense: Rio de Janeiro, 2012.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. Malheiros: São Paulo, 2003.

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático. Juruá: Curitiba, 2012.

NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre de Melo Franco. Coletânea Novo CPC: Doutrina Selecionada. Juspodivm: Salvador, 2015.

THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC: fundamentos e sistematização. Forense: Rio de Janeiro, 2015.

LAGES, Cintia Garabini. Jurisdição e Hermenêutica Constitucional. Mandamentos: Belo Horizonte, 2004.

HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. Littera Mundi: São Paulo, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 2003.

CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Filosofia do Direito na Alta Modernidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007. 

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