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Evolução histórica do conceito de filiação

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16/02/2016 às 14:20

Resumo:


  • A família do século XX era patriarcal e a filiação era definida pela relação com o patrimônio e o casamento, com distinção entre filhos legítimos e ilegítimos baseada no estado civil dos pais.

  • Com o Código Civil de 1916, a paternidade era presumida para filhos de pais casados, enquanto filhos de relações extramatrimoniais eram classificados como naturais ou espúrios, com direitos limitados.

  • A Constituição Federal de 1988 e o novo Código Civil de 2002 promoveram mudanças significativas, garantindo igualdade de direitos entre todos os filhos e reconhecendo a filiação socioafetiva, independentemente do vínculo biológico ou matrimonial.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. Paternidade socioafetiva X Paternidade biológica

A paternidade biológica ocorre quando há um vínculo sanguíneo entre pai e filho, quando ambos têm o mesmo material genético. Já a paternidade socioafetiva os laços entre pai e filho não decorrem da origem genética, e sim do amor, do carinho, é uma relação calcada na afetividade e voluntariedade.

Para a paternidade socioafetiva, pai não é apenas aquele que possui vínculo genético com a criança, mas acima de tudo, é aquele que cria, educa, ampara, fornece amor, carinho, compreensão, dignidade, enfim, que exerce a função de pai em atendimento ao melhor interesse do menor. (CYSNE, 2008, P. 214)

Para que o filho seja considerado filho com todas as suas características é necessário muito mais que a semelhança genética com o pai, isso não é uma garantia de que ele seja verdadeiramente um pai, e sim simplesmente o seu genitor, assim os laços afetivos são muito mais importantes para a formação de uma pessoa do que os laços biológicos.

Quando diante de ações em que se precisa optar por uma das formas de paternidade, escolher qual das paternidades deve prevalecer, se a biológica ou socioafetiva, os Tribunais brasileiros não têm uma decisão pacífica sobre o tema. Mesmo nos casos em que se está diante da prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica, o filho tem direito a conhecer sua origem genética, a verdade biológica, porém ela não irá irradiar efeitos jurídicos nessa relação, uma vez que eles se darão em razão do pai socioafetivo.

O que vivemos hoje, no moderno Direito Civil, é o reconhecimento da importância da paternidade (ou maternidade) biológica, mas sem fazer prevalecer a verdade genética sobre a afetiva. Ou seja, situações há em que a filiação é, ao longo do tempo, construída com base na socioafetividade, independentemente do vínculo genético, prevalecendo em face da própria verdade biológica. (GAGLIANO e PAMPLONA, 2014, p. 639)

O entendimento da Terceira Turma de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina é no sentido de que diante da relação socioafetiva consolidada, e quando comprovado que não existe o vínculo biológico, deve prevalecer a paternidade socioafetiva.

APELAÇÃO CIVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DESCONSTITUIÇÃO DE FILIAÇÃO. NULIDADE DO ASSENTO DE NASCIMENTO. LAVRATURA DO REGISTRO POR CONVICÇÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA DO NEONATO. DÚVIDA SUPERVENIENTE. REALIZAÇÃO DE TESTE GENÉTICO POR ANÁLISE DE DNA. EXCLUSÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. VÍNCULO AFETIVO CONSOLIDADO POR MAIS DE UMA DÉCADA. IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. "Não se pode olvidar que o STJ sedimentou o entendimento de que em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva" (STJ, REsp n. 1115428/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. em 27-8-2013). (grifo nosso)

Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Civil 2014. 083145-3. Relator: Fernando Carioni. J. 03. fev. 2015. in Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Disponível em: <https://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/html.do?q=APELA%C7%C3O%20C%CDVEL.%20A%C7%C3O%20NEGAT%D3RIA%20DE%20PATERNIDADE.%20DESCONSTITUI%C7%C3O%20DE%20FILIA%C7%C3O.%20NULIDADE%20DO%20ASSENTO%20DE%20NASCIMENTO.%20LAVRATURA%20DO%20REGISTRO%20POR%20CONVIC%C7%C3O%20DA%20PATERNIDADE%20BIOL%D3GICA%20DO%20NEONATO.%20D%DAVIDA%20&only_ementa=&frase=&id=AAAbmQAACAALLhpAAV&categoria=acordao>. Acesso em: 10 maio 2015, 11:15.

O tema é de tamanha importância jurídica, econômica e social que foi reconhecida a repercussão geral sobre o assunto, da prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral em Plenário Virtual, proposto pelo ministro Luiz Fux, relator do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 692186.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.

Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário com Agravo 692186. Relator: Luiz Fux. J. 29. nov. 2012. in Supremo Tribunal de Federal/ Brasília. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=692186&classe=ARE&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em: 20/04/2015, 09:02.

No processo foi pedida a anulação do registro de nascimento, alegando o requerente que foi feito pelos avós paternos, como se eles fossem os pais, bem como o reconhecimento da paternidade biológica. Em primeira instância o processo foi julgado procedente, os herdeiros do pai biológico recorreram, porém o Tribunal de Justiça da Paraíba manteve a sentença de primeiro grau, sendo confirmada também pelo Superior Tribunal de Justiça.

Inconformados com a decisão, os herdeiros do pai biológico interpuseram recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, alegando que a decisão do Superior Tribunal de Justiça afronta o artigo 226, caput, da Constituição Federal. Porém tal questão ainda não foi julgada.

Diante de situações como essa, os juízes de primeira instância, os desembargadores, e ministros, têm de levar em consideração os princípios constitucionais do direito de família, e harmonizá-los a cada caso concreto, visando sempre o melhor interesse da criança e do adolescente.


CONCLUSÃO

Em uma análise histórica do conceito de filiação pode-se observar primeiramente que no Código Civil de 1916 a família era patriarcal, hierarquizada, patrimonial e matrimonializada. Os filhos eram distinguidos de acordo com o estado civil dos pais, eram divididos em legítimos, se os pais fossem casados, ou ilegítimos se os pais não tivessem uma relação conjugal. Do mesmo modo em que a classificação era discriminatória, os filhos ilegítimos também não tinham direitos e deveres resguardados na lei, de modo que nem a paternidade poderia ser reconhecida.

Diante das várias mudanças socias que começaram a acontecem nos últimos séculos, como a colocação da mulher em pé de igualdade com o homem dentro da família e no mercado de trabalho e frente a promulgação da Constituição Federal de 1988, que inclui novos valores para sociedade brasileira, e proteção as várias formas de entidades familiares, e contemplou um rol de princípios voltados para a família, os preconceitos caíram por terra, e diante do princípio da igualdade entre todos os filhos não é mais possível fazer a retrógrada distinção entre filhos legítimos e ilegítimos.

Nesse contexto a família brasileira passou a ser orientada pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, na qual o seu dever é buscar a realização de todos os seus membros, bem como pelo princípio constitucional da afetividade. Essas mudanças fizeram com que o conceito de filiação também fosse alterado, sendo protegidas também as relações fincadas apenas nos laços de amor. O critério jurídico e biológico deixaram de ser os únicos existentes no reconhecimento da paternidade, e a verdade biológica passou a ter pouca valia frente a relação afetiva.

É a verdade afetiva que é capaz de afirmar quem é verdadeiramente pai, pois nela não se leva em conta nenhum vínculo biológico ou jurídico, ela revela-se na voluntariedade, no querer ser pai, no amar, dar carinho, proteção, sem nenhuma imposição legal. Por isso ela deve prevalecer sobre o vínculo biológico ou jurídico.


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