A nova sistemática da pensão por morte ao cônjuge:

Violação à dignidade humana e retrocesso social

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4. A VIOLAÇÃO AOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL

A base da nova ordem constitucional de 1988, pautada pelo Estado Democrático brasileiro, possui características emanadas do bem-estar social, decorrente do Welfare State. Não por menos que um dos pilares fundamentais da nossa república federativa seja a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III da CRFB. A dignidade, por sua vez, trata-se de princípio constitucional de conteúdo abstrato, que serve de substrato para garantir ao cidadão que o Estado promova, por si e seus órgãos, a implementação dos direitos sociais previstos na Constituição. São direitos de status positivo, permitindo ao cidadão exigir que o Estado volte sua atuação de forma a lhe garantir melhores condições de vida pela implementação dos direitos previstos no art. 6º da Carta de Outubro (educação, saúde, alimentação, moradia, transporte, lazer, segurança e previdência social) (DIMOULIS, 2014, p. 52).

Como já nos manifestamos em outros escritos, o postulado da dignidade humana, em virtude da forte carga de abstração que encerra, não tem alcançado, quanto ao campo de sua atuação objetiva, unanimidade entre os autores, muito embora se deva, de logo, ressaltar que as múltiplas opiniões doutrinárias se apresentam harmônicas e complementares. Acredita-se que o conceito da dignidade da pessoa humana não pode ser tão somente analisada como uma densificação dos valores pessoais tradicionais, mas sim uma forma de garantir as bases da existência humana, no seu patamar mínimo de condição. Assim, não só os direitos e garantias individuais tem por fim fornecer a base mínima de existência do ser humano, mas também a ordem econômica (art. 170 da CF/88), a ordem social na realização de uma justiça social exteriorizada na busca do pleno emprego, e como não poderia deixar de ser, a busca de uma convivência em um bem ecologicamente equilibrado, nele incluído o do trabalho, visando uma melhor qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. (PANCOTTI:2008, p. 88).

Porém, a realidade é outra. Na prática, o que se denota é que o Estado por si não vem garantindo ao cidadão o acesso amplo e irrestrito aos direitos sociais previstos na Constituição, fazendo com que o próprio cidadão promova, de per si o acesso a mencionados direitos por meio de seus rendimentos. Tanto é verdade que a própria Constituição, ao tratar dos direitos dos trabalhadores (art. 7º, IV), estabelece a obrigação de ser garantido ao obreiro, salário mínimo, fixado em lei, capaz de atender suas necessidades vitais básicas e às de sua família; enfim, o acesso aos direitos elencados no art. 6º, dentre os quais, à própria previdência social.

Considerando a teoria do mínimo existencial, tem-se a concepção de que em cada direito fundamental existe um núcleo essencial que, em nenhuma hipótese, pode ser afetado.

Nesta senda, dada a importância dos direitos abrangidos, dentre os direitos sociais previstos na Constituição, compreende-se que a previdência social, por garantir de forma reflexa o acesso aos demais direitos sociais (a teor do art. 7º, IV da CRFB), trata-se de núcleo essencial que não poderia ser afetado.

Milita-se, assim, em prol da existência de uma teoria absoluta do conteúdo essencial. Alexy (1993, p. 288), citando julgado do Tribunal Constitucional Federal Alemão, deixa claro que

Ni siquiera intereses dominantes en la comunidad pueden justificar una intervención en el núcleo absolutamente protegido de la confi-guracion [sic] de la vida privada; no cabe una ponderación de acuerdo con el criterio del principio de proporcionalidad.

Vê-se que, de acordo com referenciado doutrinador, sequer interesses que se demonstrem dominantes a determinada sociedade, justificam a intervenção do Estado neste núcleo protegido.

Além disso, não se pode olvidar que a previdência é orientada pelo princípio da solidariedade, que alberga, principalmente, a Seguridade Social, uma vez que sua premissa básica é garantir ao cidadão, no momento de maior necessidade, o acesso aos direitos sociais básicos como saúde, previdência e assistência.

Com vistas a garantir o núcleo essencial da previdência, além dos princípios já mencionados, necessário citar o princípio da vedação ao retrocesso social, que lastreia a previdência em nosso ordenamento, impedindo a diminuição da proteção previdenciária existente, objetivando preservar o mínimo existencial dos segurados (AMADO, 2014, p. 206).

Trata-se da irreversibilidade dos direitos fundamentais. Taveira (2013, p. 163-164), ao tratar sobre referenciado princípio, aponta que esta irreversibilidade dos direitos fundamentais determina que

[...] o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado por meio de medidas legislativas deve ser considerado constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas legislativas que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, o anulem ou o aniquilem. É certo que o legislador ordinário possui autonomia para editar atos que considere como convenientes para a sociedade, mas essa liberdade de conformação tem como limite o núcleo essencial do direito já realizado.

 Assim, a proibição do retrocesso impede que os direitos previdenciários já conquistados sejam restringidos ou extirpados do ordenamento, uma vez que passam a integrar o núcleo essencial de direitos do segurado.

Pois bem. Como visto anteriormente, o legislador ao editar a MPV nº 664, optou por estabelecer aquilo que se pode denominar como critério etário para duração do benefício de pensão por morte, limitando o percebimento das prestações por faixas etárias, chamando principalmente à atenção, a limitação realizada ao cônjuge que possuir 30 (trinta) anos de idade quando da morte do segurado.

Com efeito, de acordo com a Lei 13.135/15 observa-se que a pensão por morte, em razão da faixa etária do dependente, o benefício adquire uma característica de provisoriedade, precariedade, desprovido de sua característica vitalícia que possuía outrora.

Ocorre que, ao analisar a ratio legis (aqui compreendida pela justificativa da MPV), não foi possível localizar qualquer elemento lógico que justificasse a adoção de tal critério etário, principalmente se considerado o prazo de recebimento do benefício estabelecido após os 30 (trinta anos) de idade.

Buscando fundamentar mencionada medida, consignou-se na justificativa:

Submetemos, também, à apreciação de Vossa Excelência, que  [o] prazo de duração da pensão por morte varie em função da idade do dependente, sendo vitalícia somente para cônjuge, companheiro ou companheira que tenha expectativa de sobrevida de até 35 anos, sendo reduzida a duração do benefício quanto maior seja a expectativa de sobrevida, após esse limite Assim, Senhora Presidenta, a medida visa estimular que o dependente jovem busque seu ingresso no mercado de trabalho, evitando a geração de despesa a conta do RGPS para pessoas em plena capacidade produtiva, permitindo, ao mesmo tempo, o recebimento de renda por certo período para que crie as condições necessárias ao desenvolvimento de atividade produtiva. (E.M.I. 00023/2014 MPS MF MP)

Com o devido respeito, trata-se de argumento inconcebível o apresentado para justificar a criação deste critério etário para o recebimento do benefício em questão. Note-se que, justamente ao contrário do que prevê a justificativa, tal medida coloca o dependente à margem da sociedade, ao retirar-lhe, por muitas vezes, sua única fonte de subsistência, quando começa a alcançar uma idade em que, sequer colocação no mercado de trabalho, o mesmo conseguiria. Em suma: a proteção social reclamada e protegida pela Carta Constitucional apresenta-se totalmente maculada em razão da restrição da universalidade de cobertura e atendimento gerada pela lei em estudo.

Esta afirmação se dá na contextualização da seguinte situação hipotética, porém factível: “A”, casada com o segurado “B”, sempre cuidou dos afazeres domésticos, dedicando-se exclusivamente à manutenção da família durante todo o casamento. Casou-se muito nova com o segurado, com apenas 18 (dezoito) anos de idade, não tendo qualquer incursão no mercado de trabalho até então. Acometido por uma doença de qualquer natureza, “B” falece. “A”, com apenas 43 (quarenta e três) anos de idade, receberá a pensão em decorrência do falecimento de seu cônjuge por 20 (vinte) anos, ou seja, até os 63 (sessenta e três) anos de idade, sendo que a expectativa do brasileiro segundo o IBGE é de apenas 73 anos.

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Considerada a situação acima, como se pode, ao menos cogitar, que uma pessoa (de qualquer sexo), irá conseguir, considerando a atual conjuntura política, econômica e social do país, colocação no mercado de trabalho, aos 63 (sessenta e três) anos de idade? Será garantida a ela um singelo benefício assistencial ao idoso (LOAS)? E mais: caso o dependente ainda trabalhe e futuramente consiga se aposentar por idade, restará privado de um direito social que mais necessita neste momento de sua vida?

Inequivocamente, ocorre clara violação aos preceitos da dignidade da pessoa humana, solidariedade e proibição do retrocesso.

Assim sendo, a dependente do segurado será deixada à mercê de sua própria sorte, quando idosa (de acordo com o Estatuto do Idoso), sem qualquer possibilidade de recolocar-se no mercado de trabalho.

Não bastasse, entende-se que o legislador ordinário violou, ainda, o preceito da igualdade, previsto na CRFB, ao estabelecer critérios diferenciados à faixa etária compreendida entre os 41 (quarenta e um) e 43 (quarenta e três) anos, limitando o percebimento de pensão a estes pelo prazo de 20 (vinte) anos, concedendo, porém, o pensionamento vitalício àquele que possui 44 (quarenta e quatro) anos de idade.

Deixa, o legislador, de apresentar qualquer critério lógico para tal diferenciação, uma vez que aquele que possui 41 (quarenta e um) anos, gozando por 20 (vinte) das prestações, estará com 61 (sessenta e um) quando deixar de receber o benefício.

Dessa forma, como conseguirá garantir o acesso aos direitos sociais que a Constituição prevê; mas que o Estado não garante? Até então era o salário (ou benefício) do segurado que garantia mencionado acesso. E após o termo ad quem para recebimento da pensão?

Padece, portanto, a reforma realizada, de patente inconstitucionalidade, por violação ao disposto nos arts. 1º, III, 3º, I, 5º, caput, 6º, 194 e 201, todos da Constituição; eis que:

(a) Viola o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que sendo o benefício encerrado quando a pessoa completar, vg. 63 (sessenta e três) anos de idade, estará privada (se não possuir outra fonte de renda) do mínimo necessário para sua existência – como alimentação, vestuário, moradia etc. – já que, nesta idade, dificilmente conseguirá recolocação no mercado de trabalho formal; possivelmente, também em razão da idade, será acometida por patologias irreversíveis e incapacitantes e, certamente, não contará com instrução suficiente para adequar-se ao concorrido mercado de trabalho que atualmente vivenciamos.

(b) Viola o princípio da solidariedade, já que no âmbito da previdência, acaba por retirar de uma pessoa, certamente incapacitada de trabalhar, sua única fonte de renda; deixando-a à mercê da própria sorte, a depender de programas assistenciais governamentais.

(c) Viola o princípio da igualdade, principalmente se consideradas as duas últimas faixas etária; pois, sem qualquer critério lógico ou fundamentação adequada, diferencia pessoas que, juridicamente, estão no mesmo patamar, principalmente aos olhos do Estatuto do Idoso. Outrossim, não aponta qualquer critério para justificar a concessão do benefício pelo prazo de vinte anos para o cônjuge possuidor da idade de quarenta e três anos, e de forma vitalícia para aquele que contar com quarenta e quatro anos.

(d) Viola o preceito insculpido no art. 194 da CRFB, pois em que pese ser de competência do poder público organizar a seguridade social, está a mesma prevista no capítulo que trata da ordem social, cujo maior objetivo contempla o bem-estar e a justiça social. Ademais, não se pode olvidar que se trata a seguridade de direito social e, assim sendo, viola o princípio da proibição do retrocesso; eis que, até a MPV nº 664, o benefício em questão era concedido de forma vitalícia ao cônjuge, promovendo mencionada medida legislativa uma redução em um direito social previdenciário, atingindo, portanto, o núcleo essencial da pensão por morte que é a garantia da subsistência digna do dependente, até sua morte.

(e) Por fim, viola o preceito do art. 201 da CRFB, eis que mencionado dispositivo garante o adimplemento de prestações a título de pensão por morte ao dependente do segurado, não materializando o dispositivo qualquer termo para cessação desse benefício, por se tratar a garantia da mantença da condição de vida do dependente, o núcleo do benefício pensão por morte, que não pode ser violado.

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Sobre os autores
Luiz Pancotti

Advogado em Araçatuba (SP). Consultor jurídico. Professor de Direito das Relações Sociais da UNIMEP. Especialista em Direito Processual – PUC/SP. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos – UNIMES/SANTOS. Doutorando em Direito Previdenciário na PUC/SP.

Thiago Medeiros Caron

Pós-graduando (latu sensu) em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Univem, pós-graduado (latu sensu) em Obrigações, Contratos e Mecanismos Processuais pelo Instituto Municipal de Ensino Superior de Assis – IMESA, Unidade de Ensino Fundação Educacional do Município de Assis – FEMA, em parceria com a Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho – UNESP, Campus de Franca-SP, pós-graduado (latu sensu) em penal e processo penal pela UEL – Londrina/PR, graduado em Direito pela UNIP – Campus Assis/SP, Conselheiro de Direitos e Prerrogativas da 11º Região da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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