Precisamos falar sobre a impunidade

19/02/2016 às 11:58
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É indispensável repensarmos o sistema processual-penal brasileiro, a partir de uma visão equilibrada e racional, destituída de paixões, sejam elas excessivamente liberais ou excessivamente punitivas, para que possamos finalmente respirar novos ares.

Introdução

Não se vê nenhuma autoridade em âmbito nacional falar a respeito do assunto segurança pública de forma racional e equilibrada. Só se fala em aumento de penas, como se isso fosse realmente contribuir para a redução da criminalidade. 

Enquanto isso, a criminalidade cresce, organiza-se e produz imensa sensação (e, infelizmente, cada vez mais real) de insegurança.

A despeito de fatores sócio-culturais envolvidos, a sensação de impunidade é uma das principais molas propulsoras do crime. 

Do outro lado, a crescente onda de linchamentos – que implicam triste retrocesso civilizatório, com o retorno da vingança privada –, cada vez mais aceitos por parcela da sociedade, são a demonstração final de que precisávamos para concluir que o Estado deve retomar seu papel nesse processo, com urgência.

A sociedade não suporta mais estar diariamente exposta, sem proteção, à criminalidade.

Não há, no Brasil, quem seja incapaz de citar pelo menos três amigos ou familiares vítimas de crime no último mês. 

Nos dias atuais, talvez a (in) segurança pública seja, se não o maior, o mais urgente dos problemas do país.    

Feitas tais breves considerações, abordo alguns aspectos sobre o que tenho pensado a respeito, sem a pretensão de escrever um artigo jurídico, mas com o objetivo de passar algumas impressões sobre o sistema processual-penal brasileiro, com reflexões, sujeitas a críticas e melhoramentos, que me parecem interessantes para reverter, pelo menos em parte, o quadro negativo atualmente desenhado no Brasil. 

1. Revisão na forma de cumprimento e na extensão das penas

Embora a noção popular seja diversa, as penas poderiam ser até menores em tempo, mas “mais bem cumpridas”.

Ressalvadas exceções pontuais, como a penas excessivamente baixas para quem comete um homicídio doloso simples (pena mínima de 06 anos), por exemplo, o problema não está no tamanho das penas, mas na forma de cumprimento.

É imperioso rever, de uma vez por todas, os regimes semi-aberto e aberto. O sistema de progressão de pena vigente, embora pensado com a melhor das intenções, não funcionou no Brasil. 

As penas longas, com cumprimento excessivamente flexível - veja-se que alguém condenado a 09 anos de reclusão poderá vir a progredir cumprindo 1,5 anos em regime fechado - tornam o sistema falho para os dois lados envolvidos: Estado e condenado. 

Se é necessário condenar uma pessoa a 09 anos de prisão, como é possível admitir que ela saia cumprindo 1/6 da pena? Por outro lado, se ela sai do regime fechado cumprindo parcela tão reduzida da pena, por que o Estado precisa mantê-la sob sua tutela por tanto tempo? 

Ou a pena está demasiada ou o seu cumprimento flexível demais. E assim ocorre com quase todos os tipos do Código Penal.

Se, após a progressão do regime fechado, o condenado não voltar a delinquir, ficará, ainda assim, sob a custódia penal do Estado por anos e anos, prejudicando eventual tentativa de (re) socialização. 

Quem lê a legislação de cumprimento de pena brasileira, pensa que vivemos na Suécia; quem vai aos presídios, pensa que vivemos na era medieval

2. Privatização e humanização dos presídios

Está mais do que na hora de o Estado finalmente assumir os presídios, privatizando-os.

Não, não há contradição. Atualmente, os presídios, quase todos, são dos presos.

Veja-se o exemplo do Central, em Porto Alegre, onde os presos comandam as galerias e, de dentro delas, definem seus próprios direitos. 

Quem não tem poder ou dinheiro dentro do presídio, assume "compromissos criminais" fora dali, retroalimentando o sistema viciado de cumprimento de pena.

A privatização pode ser uma solução ou, pelo menos, representa uma ótima alternativa: presos vivendo em celas mais dignas, sem superlotação, com acesso aos serviços básicos, sem se vincular a "favores escusos" para cumprir a pena com dignidade, com trabalho e estudo preparatórios para o retorno à vida em sociedade.

E como isso seria atrativo para a iniciativa privada?

Além da óbvia possibilidade de o Estado pagar por preso, gastando possivelmente menos (ou, pelo menos, melhor) do que gasta atualmente, há inúmeras outras alternativas.

Ora, os presos podem trabalhar. Por certo, grandes empresas teriam interesse na mão-de-obra mais barata, e talvez até mesmo mais comprometida para determinadas atividades, de quem está cumprindo pena.

E se não der certo? Bem, do jeito que está claro que não vai funcionar.

Além do mais, o Estado não deixaria de ter - ou melhor, diante da realidade atual, passaria a ter - o poder de polícia sobre os presos.

2.1. Uma medida urgente consiste: bloquear o sinal de celular nos presídios e (melhor) monitorar os presos.

É tecnicamente possível (alguém duvida disso?) e imprescindível para a redução imediatada criminalidade evitar que os presos se comuniquem, sem controle algum, com o mundo exterior por meio de telefone e internet.

O problema que o uso da tecnologia de bloqueio eventualmente pode causar nas regiões próximas - prejuízo de sinal para os vizinhos -, revés normalmente alegado pelas autoridades como desculpa para não implementar a medida, pode, se realmente não se obtiver sucesso no bloqueio preciso, ser equacionado com medidas reparatórias, como o acesso facilitado e subsidiado, se preciso, a serviços de internet por cabo e telefone fixo.

Em tempo, deve-se discutir, para "ontem", a utilização de sistemas eficazes de gravações por áudio e vídeo, com monitoramento, a fim de evitar a combinação de crimes de dentro da cadeia. 

3. Revisão de aspectos processuais

Alguns aspectos processuais precisam ser revistos.

O Supremo Tribunal Federal, ao admitir o cumprimento da pena após decisão de segunda instância, deu o primeiro passo.

3.1. Nulidades: limitação temporal para o reconhecimento e maior aproveitamento de atos.

O processo não é um fim em si mesmo.

É absurda a forma como parte da jurisprudência vem tratando do tema das nulidades. Qualquer vício, ainda que não comprometa o processo, parece suficiente para colocar abaixo todo o trabalho até então realizado.

Estamos falando de tempo e dinheiro público jogados fora.

Subestima-se, também, o papel do advogado, ao reconhecer nulidades a qualquer tempo, independentemente de provocação, muitas vezes, e sem aplicação de qualquer critério de preclusão.

Precisamos pensar em um novo sistema de nulidades, com limitação de momentos para alegação (maior espaço para a preclusão), impossibilidade de conhecimento de ofício a qualquer tempo e maior aproveitamento dos atos processuais.

Há espaço, também, para se pensar na aplicação da proporcionalidade em relação a (algumas, pelo menos) provas ilícitas, aproveitando-se, em certos casos, o que se descobriu; com a punição, sempre que necessária, do agente responsável pelo excesso.

3.2. Excesso de instâncias

Não é possível admitir, em um sistema racional, que uma decisão de primeiro grau, de um juiz concursado (único, aliás, a ter contato direto com a prova, por meio de audiência com as testemunhas, vítima e acusado) possa ser revista em outras três instâncias.

É a própria Constituição Federal que assegura que o exame de matéria de fato é prerrogativa do primeiro e segundo graus de jurisdição.

A racionalização do processo penal brasileiro passa pela reflexão acerca do (verdadeiro) papel das instâncias superiores - STJ e STF – no processo penal (raciocínio que se aplica também ao processo civil).

Essa "revisão" de função inclui, sem dúvida, a necessidade urgente de se acabar com a banalização – que acaba por fragilizar tão sagrado instituto – do habeas corpus nos Tribunais Superiores.

4. Priorização no combate a crimes violentos: prender menos, mas prender melhor

Não se pode mais admitir que a Polícia prenda em fragrante um autor de um crime violento, colhendo elementos bastantes da autoria do fato, e o juiz solte-o imediatamente, como se tem visto todos os dias na prática forense.

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A prisão é uma violência. Mas crimes violentos exigem prisão.

Como vivemos em um período de imensa insegurança - devido à onda de roubos e homicídios que assola o país -, os crimes praticados com violência deveriam gozar de tratamento ainda mais especial pela legislação e pelo Poder Judiciário.

Para além da necessária revisão de postura por parte de alguns magistrados, que, por vezes, garantem o réu além do devido, ignorando que a sociedade e a vítima também precisam de garantia, é possível pensar-se em alternativas legislativas que modernizem a persecução penal.

Pode-se definir, a partir de um rol restrito (em desdobramento do princípio seletividade da lei penal), que determinados crimes violentos (como roubo, homicídio, estupro e sequestro) sejam considerados, por lei (por que não poderia o legislador fazê-lo?), violadores da ordem pública, o que permitiria que o juiz, na forma do art. 312 do CPP, determinasse a prisão mediante apuração, apenas, da prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria. 

Não haveria, por certo, vedação em abstrato à liberdade provisória – proibição que já foi considerada inconstitucional pelo STF –, mas maior objetividade na decretação de prisões preventivas e, quem sabe, uma mudança positiva na imagem do Poder Judiciário. 

Se assim fosse, quem pretendesse sair de casa armado para roubar alguém pensaria duas vezes antes de fazê-lo, sabendo que, se preso fosse, não seria solto imediatamente. 

4.1. Prisão imediata após veredicto do júri popular

É inadmissível que um júri composto por sete pessoas do povo condene alguém por homicídio, em decisão de mérito soberana, e saiam do plenário o acusado e os familiares da vítima pela mesma porta, em nome de uma presunção de inocência que se sustenta, agora, após a condenação, apenas em um fio de nylon. 

A decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da execução provisória da pena deve, em se tratando de júri, ser aplicada imediatamente no primeiro grau de jurisdição, pois o Tribunal não irá reexaminar, ressalvadas hipóteses teratológicas, o mérito da decisão e, ainda que o faça, não substituirá os jurados no exame da prova, mas determinará outro julgamento (hipótese em que poderá soltar imediatamente o acusado).

Conclusões 

Todos os poderes têm sua parcela de responsabilidade: o Poder Legislativo, por certas leis que parecem não conversar entre si, implicando problemas sistêmicos diversos; o Poder Judiciário, por interpretações por vezes dissociadas da realidade  e aparentemente descompromissadas com a proteção social e da vítima; o Poder Executivo, por fim, pela falta de atitudes enérgicas e eficazes em relação à situação prisional e (ponto não que não foi objeto deste breve texto) pelo descaso em geral com a situação das polícias.

Não obstante, as últimas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, nas quais declarou “o estado de coisas inconstitucional” do sistema prisional brasileiro (STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015) – exigindo um sistema de cumprimento de penas mais humano – e, por outro lado, reconheceu a possibilidade de execução provisória da pena (STF. Plenário. HC 126292, julgado em 17/02/2016) – determinando um processo penal mais efetivo –, representam, a meu ver, um sinal de novos tempos. 

Nem tudo está perdido, pois.

É indispensável, contudo, repensarmos o sistema processual-penal brasileiro, a partir de uma visão equilibrada e racional, destituída de paixões, sejam elas excessivamente liberais ou excessivamente punitivas, para que possamos finalmente respirar novos ares, com mais segurança e menos impunidade, sem que precisemos abandonar, com isso, a ideia de termos um processo penal garantidor e, sobretudo, um cumprimento de penas mais humano e, ao mesmo tempo, mais efetivo. 

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Sobre o autor
Fábio Soares Pereira

Juiz Federal Substituto (TRF-4). Mestre em Direitos Fundamentais (PUCRS).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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