O §1° do artigo 489 do novo CPC e as falsas fundamentações

24/02/2016 às 18:35
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O novo CPC, ao revés do Código anterior, dispensou especial atenção à fundamentação das decisões, preocupando-se não apenas com sua existência formal, mas também, e principalmente, com sua dimensão substancial.

Reconhecendo a importância da efetiva fundamentação dos julgados, o Novo Código de Processo Civil brasileiro não se limitou a defini-la como elemento essencial da sentença (art. 489, II), à semelhança do CPC/1973. Preocupou-se, também, com o seu conteúdo, a fim de garantir a presença da motivação em sua dimensão substancial, e não apenas formal.

Nesse afã, o Novo Código listou, em rol exemplificativo, as hipóteses mais frequentes do que a doutrina chama de fundamentação inútil ou deficiente[1], equiparando-as à ausência de motivação que, consoante o artigo 93, inciso IX, da CRFB, nulifica odecisium.

Observe-se o sobredito rol, constante do § 1º do artigo 489 do Codex:

Art. 489. São elementos essenciais da sentença:

[Omissis]

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Perceba-se que estes ditames estão coordenados com o artigo 1.022, par. Ún., II, doNCPC, que considera omissa, para fins de interposição de embargos declaratórios, decisão que se enquadre nas hipóteses do § 1º do artigo 489. O § 1º do artigo 927, que trata dos precedentes vinculantes, também faz menção a essas normas: “os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo”.

Esta é mais uma das inovações do CPC/2015 que não colima, propriamente, modificar o regime jurídico processual anterior, mas apenas tornar explicitas, ou expressas, normas que já existiam no sistema, muitas delas produtos de filtragem constitucional das disposições do CPC/1973.

Sem dúvida, a vedação ao que chamo de “falsas fundamentações” poderia ser retirada do próprio dever de motivação, imposto pela Constituição Federal. Todavia, a previsão legal expressa de algumas pseudo motivações ajudará, e muito, a coibir as constantes violações a esse dever constitucional, dando aos jurisdicionados e às instâncias revisoras parâmetros mais objetivos de controle, o que gerará, por conseguinte, um efeito persuasivo nos magistrados, que se sentirão mais cobrados para prestarem contas de seus julgamentos, mostrando às partes e à sociedade que realizaram uma adequada e efetiva análise da questão decidida.

Ademais, o dispositivo sob exame constitui mostra de que o Novo Código não busca celeridade a todo custo, preocupando-se, também, em melhorar a qualidade da prestação jurisdicional.

Ainda antes de analisar, amiúde, os incisos do dispositivo em tela, deve-se atentar para o fato de que o § 1º do artigo 489 se refere a todo e qualquer ato judicial com conteúdo decisório, seja ele uma decisão interlocutória, sentença ou acórdão, que serão nulos caso se configure alguma das hipóteses de seus incisos.

Outro fato digno de nota é o caráter exemplificativo do rol legal, que decorre, como ressalta Fredie Didier, do próprio móbil da norma, que é concretizar um direito fundamental - o direito à motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF)[2]. Destarte, outras situações há em que a decisão, embora contenha motivação, em seu aspecto formal, será considerada não fundamentada.

Por fim, perceba-se que, se a decisão se pautar em mais de um fundamento auto-subsistente, e for verificado, em apenas um deles, algum dos vícios dos incisos do § 1º do artigo 489, não haverá por que anular a decisão, dada a manutenção do outro fundamento.

Incisos I e II:

Dito isso, observemos os incisos I e II, que tratam, respectivamente, das fundamentações em que o julgador se limita “[...]à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida” (inciso I), e daquelas nas quais o juiz emprega “[...]conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso” (inciso II).

Ora, por serem formas de expressão linguística, todos os textos legais, conceitos jurídicos e narrativas fáticas, em maior ou menor medida, precisam ser interpretados. Ademais, é preciso integrar a dimensão normativa, sempre hipotética, à dimensão fática, demonstrando-se a aplicabilidade ou não das normas à situação concretamente deduzida, bem como os efeitos dessa possível incidência normativa e a compatibilidade desses efeitos com a decisão tomada.

Bem por isso, não basta indicar, reproduzir ou parafrasear o texto legal, afirmando – sem argumentação que considere os fatos - que tal ou qual dispositivo ou conceito jurídico se aplica ao caso.

Assim sendo, é possível traçar um roteiro básico, que deve ser seguido pelos julgadores na generalidade dos casos:

1) enunciar sua interpretação quanto aos relatos fáticos da causa de pedir e da causa excipiendi do réu, e/ou, se for o caso, a sua interpretação quanto ao fato jurídico processual sobre o qual decide, deixando claro os parâmetros fáticos de sua decisão;

2) declinar, de maneira racional e objetiva, as razões para a formação de seu convencimento sobre as provas que tenham sido apresentadas (no caso de a decisão versar sobre fatos controvertidos), explicitando, também, em que medida cada uma das partes se desincumbiu de seus ônus probatórios;

3) enunciar sua interpretação sobre as normas relacionadas às teses jurídicas empregadas na decisão, e também sobre as normas jurídicas que precisem ser discutidas para justificar o não acolhimento da causa de pedir ou da causa excipiendida parte derrotada (vide inciso IV);

4) expor as razões da incidência, ou não, dessas normas aos fatos considerados;

5) apresentar as consequências jurídicas oriundas da eventual incidência dessas normas, explicando como e por que tais consequências, ou a ausência delas (no caso de a norma não gerar os efeitos alegados pela parte) determinaram a decisão tomada pelo juiz.

Naturalmente, haverá causas em que a simplicidade dos fatos e a pouca abertura semântica das normas aplicáveis resultará em uma fundamentação bem menos trabalhosa. Porém, haverá situações em que se observará justamente o inverso, como ocorre, por exemplo, com a aplicação dos princípios, ou de normas que contenham conceitos jurídicos indeterminados, cuja baixa densidade normativa exigirá do julgador um trabalho maior de construção ou concretização do sentido dessas normas, devendo o magistrado, porque exerce função pública, prestar contas desse trabalho.

Inciso III:

Ao vedar fundamentações “ [...]que se prestariam a justificar qualquer outra decisão ” o legislador claramente intenciona acabar com as decisões-padrão, aquelas que, por serem pré-concebidas, não são produto de uma análise particularizada do caso.

Veja-se que, por uma interpretação puramente literal, e até maliciosa, poder-se-ia sugerir que a simples existência de um caso cuja decisão não pudesse se arvorar naquela ratio decidendi seria suficiente para afastar a incidência desse ditame, eis que tal fato demonstraria a inaptidão daquele fundamento para motivar toda e qualquer decisão judicial.

À evidência, trata-se de interpretação absurda, que somente poderia ser sustentada por quem tenta se desviar da verdadeira regra enunciada neste dispositivo.

Resta claro, pois, que a intenção da lei é fazer com que o magistrado dedique ao menos um trecho da fundamentação à análise jurídica dos fatos pertinentes à questão a ser decidida, de modo a demonstrar que criou a norma jurídica individual com vistas à situação concreta deduzida.

Vejamos os comentários de Marinoni, Arenhart e Mitidiero acerca do texto legal em epígrafe:

Se determinada decisão apresenta fundamentação que serve para justificar qualquer decisão, é porque essa decisão não particulariza o caso concreto. A existência de respostas padronizadas que servem indistintamente para qualquer caso justamente pela ausência de referências às particularidades do casodemonstra a inexistência de consideração judicial pela demanda proposta pela parte. Com fundamentação padrão, desligada de qualquer aspecto da causa, a parte não é ouvida, porque o seu caso não é considerado[3].

Assim sendo, a partir de agora, existe mandamento legal expresso a proteger o jurisdicionado contra aquelas decisões, tão aviltantes quanto costumeiras, que se limitam a dizer: “inexistentes os pressupostos legais, indefiro o pedido”, ou “ausentes os pressupostos processuais, extingo o feito sem resolução de mérito”, ou ainda “considerando a ausência do fumus boni iuris e do periculum in mora, indefiro a antecipação de tutela pleiteada”.

Inciso IV:

Está assim redigido o texto legal: “ Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: [...] não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador ”.

Este é, seguramente, o ditame mais emblemático dentre os ora analisados, pois tem o escopo de corrigir um desvio de perspectiva muito comum entre os magistrados: o de acreditar que o cerne da motivação reside em justificar o acolhimento dos fundamentos da parte vencedora, relegando a um segundo plano a explicação dos porquês da rejeição dos fundamentos da parte vencida.

ratio da norma é a de que, se existe mais de uma causa de pedir apresentada pela parte beneficiária da decisão, não há necessidade de o magistrado tratar sobre todas elas, haja vista que essa omissão não importará prejuízo à parte que a aventou. Porém, se há vários argumentos autônomos levantados contra a decisão prolatada, é dever do juiz se pronunciar sobre todos eles, explicando os motivos pelos quais cada um foi rejeitado.

De fato, se é a parte vencida que tem interesse recursal para se insurgir contra a decisão desfavorável, e se é a sua esfera jurídica a prejudicada pelo ato jurisdicional, é também a ela a quem o Judiciário deve maiores explicações, e não à parte que teve sua pretensão acolhida.

Sem embargo, sob a égide do CPC/1973, a necessidade de enfrentar todos os argumentos da parte derrotada era negada pela quase totalidade dos juízes, posto não haver disposição legal expressa que os impusesse essa conduta, alegando os magistrados que ela não poderia ser depreendida do dever genérico de fundamentar, ao revés do que já defendia parte da doutrina.

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Criticando duramente essa postura renitente dos juízes, Didier Jr., Oliveira e Braga asseveram:

A questão é que esse entendimento jurisprudencial – que já virou um jargão no âmbito dos tribunais – vem sendo utilizado para justificar a desnecessidade de análise das alegações da parte mesmo nos casos em que a sua tese foi rejeitada. Esse mau costume constitui não apenas um erro técnico como também uma forma de aniquilar o direito de ação e as garantias do contraditório e da ampla defesa. Sim, porque embora a Constituição diga que a parte tem o direito de provocar a atividade jurisdicional (art. 5º, XXXV), e embora a Constituição garanta à parte amplas possibilidades de defesa e de influência (art. 5º, LV), o Judiciário diz que não tem a obrigação de emitir um juízo de valor sobre todos os seus argumentos[4].

A irresignação dos magistrados com essa nova exigência legal foi tal, que levou algumas associações nacionais de magistrados - Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) – a encaminhar à presidência da república pedido de veto a alguns artigos do Novo Código, a saber: artigos 12, 153, 942 e § 1º do artigo 927, além, é claro, dos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 489[5], pedidos esses que não foram acolhidos.

Em suma, os juízes sustentavam que mudanças gerariam "impactos severos, de forma negativa, na gestão do acervo de processos, na independência pessoal e funcional dos juízes e na própria produção de decisões judiciais em todas as esferas do país, com repercussão deletéria na razoável duração dos feitos”.

De fato, aqueles julgadores que costumavam fundamentar suas decisões de modo perfunctório e insuficiente, agora terão de fazê-lo de forma completa e efetiva, o que, sem dúvidas, aumentará o seu trabalho e de seus assessores e, por consequência, pressionará ainda mais a já subdimensionada máquina judiciária. Isso é um fato.

Porém, apesar de reconhecer que o Novo Código foi discreto em relação a medidas de celeridade – tais como o rearranjo do sistema recursal – entendo que fechar os olhos para o desrespeito a garantias constitucionais como a do contraditório (substancial) e a da fundamentação das decisões (art. 93, IX, CRFB) seja um preço alto demais a se pagar para obter maior celeridade. De fato, a celeridade e a efetividade do processo não podem ser perseguidas a qualquer custo, afinal, o processo tem escopos a atingir, e esses escopos estão relacionados não apenas aofazer (concessão da tutela jurisdicional), mas também ao como fazer (imposição de regras procedimentais alinhadas às garantias constitucionais).

A outro giro, importa destacar que, ao se referir a “argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, a lei está se referindo a todas as causas de pedir apresentadas pelo demandante derrotado, ou à totalidade das causas excipiendi levantadas pelo demandado vencido, haja vista a possibilidade de serem cumuladas.

A lei, portanto, exige pronunciamento sobre cada causa petendi ou causa excipiendi, sendo elas entendidas como conjunto de fundamentos fático-jurídicos apresentados pelas partes (demandante ou demandado) como sendo capazes de justificar, de per si, a sua pretensão ofensiva ou defensiva. Assim, nem sempre será preciso que o juiz examine todos os fundamentos fáticos e jurídicos trazidos pela parte derrotada, bastando que exponha os motivos para não ter acolhido cada conjunto de fundamentos autossuficientes deduzidos por ela.

A título de exemplo, imagine-se uma demanda indenizatória hipotética, na qual o autor afirma que o aparelho de ar-condicionado adquirido da empresa ré veio com vício oculto que ocasionou um vazamento de gás, o qual, por sua vez, gerou uma explosão causadora de graves danos físicos ao autor, e que em virtude desses danos físicos, o autor veio a passar por uma série de transtornos de ordem psicológica.

Em tal caso, vindo o magistrado a concluir, através das provas, que o aparelho não fora adquirido junto à ré, ou que não havia qualquer vício no aparelho em foco, caberá ao juiz, na fundamentação, posicionar-se apenas sobre esse ponto específico, devendo explicar, de modo racional, por que toda a causa de pedir ficou prejudicada pela improcedência desse fundamento fático, restando, assim, justificada a improcedência de todos os pedidos a ela relacionados.

Por último, ressalte-se que há certos casos nos quais não se aplica o inciso IV do artigo 489, § 1º. Um desses casos é o julgamento de recursos repetitivos ou incidente de resolução de demandas repetitivas, que segue regra diversa: o órgão julgador terá de se pronunciar sobre todos os fundamentos da tese jurídica discutida, contrários ou favoráveis à decisão (art. 1.038, § 3º e art. 984, § 2º). Demais disso, havendo sido observado este inciso IV na formação do precedente obrigatório, não é necessária sua observância quando da aplicação do mesmo, hipótese em que deverão ser seguidas apenas as regras dos incisos V e VI do artigo 489, § 1º, analisadas abaixo.

Incisos V e VI:

A técnica de interpretação de um precedente judicial é diferente daquela aplicável à interpretação de um texto legal. Isso porque, para se compreender a norma jurídica individual enunciada em uma decisão é necessário investigar os seus parâmetros fáticos, comparando-os com os fatos que compõem a questão a ser solucionada, a fim de averiguar se há correlação bastante entre os casos para autorizar a aplicação do precedente - é o que se chama de distinguishing.

Assim, se o juiz ou tribunal, ao fundamentar sua decisão, invoca o precedente (seja ele obrigatório ou persuasivo) apenas citando a ementa do julgado, ou transcrevendo o enunciado da súmula, esse fundamento é tido como inexistente, a teor do inciso V do artigo 489, § 1º: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial [...] que: se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.

De tal arte, se a decisão tem como único fundamento o precedente, seja ele obrigatório ou apenas persuasivo, e não realiza o necessário distinguishing, a decisão será nula por falta de fundamentação.

De mais a mais, quando se trata de precedente obrigatório, faz-se necessária a observância do inciso VI do dispositivo em comento, que considera não fundamentada a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.

De fato, se o precedente é vinculante, para que o julgador possa deixar de aplicá-lo, é necessário que especifique quais diferenças entre os casos tornam inadequada essa aplicação (distinguishing), ou, em sendo competente para tal, que indique a superação do entendimento anterior (overruling), ou a limitação de sua abrangência (overriding).


[1] DIDIER JUNIOR, Fredie. Et al. Curso de direito processual civil. 10 ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. V2. P. 326

[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. Et al. op. Cit. p. 327

[3] MARINONI, Luiz Guilherme. AREHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. São Paulo: Editora RT, 2015. V2. P. 444-455

[4] DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de; BRAGA, Paula Sarno. In Comentários ao Novo Código de Processo Civil (Coordenação - Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer). Rio de Janeiro: Forense, 2015. P. 715

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