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Os norte-americanos como violadores do direito internacional:

análise da condenação dos EUA pela Corte Internacional de Justiça

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01/03/2016 às 13:50
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4. Da condenação

Ao final, os EUA foram condenados de forma inapelável, de acordo com previsão do art. 60 do Estatuto da CIJ (REZEK, 1998):

Art. 60

A Sentença é definitiva e inapelável. Em caso de controvérsia quanto ao sentido e ao alcance da sentença, caberá à Corte interpretá-la a pedido de qualquer das partes.

No acórdão, foram estipuladas obrigações de dar quantia certa e obrigações de não fazer. Na estipulação do quantum debeatur, os EUA foram condenados ao pagamento de reparação pecuniária (inicialmente calculada em US$ 370.000.000,00). Ao lado disso, a CIJ determinou a suspensão de práticas interventivas e hostis contra a Nicarágua, reconhecendo a ilegalidade das ações rotuladas de legítima defesa coletiva pelos estadunidenses. Ambos os Estados foram incitados à participação construtiva no diálogo político de solução pacífica das controvérsias remanescentes na região, iniciativa diplomática consubstanciada no processo de Contadora (MOREIRA, QUINTEROS e SILVA, 2010), em conformidade com art. 33 da Carta da ONU[11].


5. Análise individual de alguns dos votos dos juízes

Por causa de sua discordância na maioria dos pontos votados, deve-se destacar, dentre os quinze membros da CIJ, a posição dos seguintes magistrados: Shigeru Oda (Japão), Robert Yewdall Jennings (Reino Unido) e Stephen M. Schwebel (EUA). Interessante observar, de antemão, que - provavelmente não por mera coincidência (SEITENFUS, 2000) - as opiniões favoráveis às teses norte-americanas foram defendidas apenas pelo próprio magistrado estadunidense e por dois juízes originários de países classificados como aliados perenes dos EUA.

Stephen M. Schwebel, em sua análise dos fatos, entendeu que a conduta dos EUA foi legal, uma vez que tinha por finalidade a proteção de El Salvador, país membro do sistema interamericano e, portanto, beneficiário da solidariedade continental e dos dispositivos de segurança coletiva previstos nos acordos regionais. A solidariedade continental, mesmo contra outro país americano, seria amparada pela Carta da OEA e admitida pelo art. 51 da Carta da ONU. O uso de meios armados, possibilidade inerente a quaisquer arranjos de segurança coletiva, não descaracterizaria a ocorrência de legítima defesa e, portanto, não tornaria ilícita a conduta dos EUA.

Robert Yewdall Jennings argumenta contrariamente ao exercício de jurisdição pela CIJ no caso. Segundo o magistrado britânico, a reserva Vandemberg teria alcance mais amplo do que aquele reconhecido pela maioria da Corte, pois, em uma interpretação teleológica, impossibilitaria a jurisdição da CIJ nas matérias em que as duas partes compartilhassem um tratado multilateral. Como a finalidade da reserva seria a exclusão de determinadas matérias da jurisdição contenciosa da CIJ, não seria igualmente admissível que a Corte, no litígio entre as duas partes, examinasse tais matérias com base em fonte consuetudinárias. Essa insistência da CIJ seria apenas um artifício para se escapar à reserva e, por consequência, para contrariar a vontade originária dos EUA ao assumirem o compromisso qualificado com a cláusula de jurisdição obrigatória.

Por fim, Shigeru Oda, assim como o juiz britânico, inicialmente problematiza a obrigatoriedade da jurisdição da CIJ para o caso. Para o magistrado japonês esse entendimento não poderia ser inferido do tratado de 1956, ainda que a atuação da CIJ fosse o único meio de solução pacífica de natureza jurisdicional mencionado no acordo. Oda, entretanto, reconhece as características jurídicas da disputa, ainda que, por vezes, eivada de aspectos políticos importantes. O magistrado, finalmente, discorda da forma como a maioria da CIJ se posicionou acerca da legítima defesa coletiva, fixando, de maneira inoportuna, um padrão de conduta que caracterizaria esse instituto mencionado no art. 51 da Carta da ONU.


6. Considerações finais

O caso analisado é interessante exemplo do funcionamento do principal órgão judiciário internacional. Na exposição evidenciaram-se os problemas e as virtudes da CIJ, bem como a inseparabilidade entre direito e política nas relações internacionais. Se as dificuldades na execução das sentenças internacionais, principalmente contra grandes potências, são aspectos mais destacados por cientistas políticos (principalmente os de orientação realista), os juristas preferem ressaltar a função construtiva da jurisprudência internacional, que atua consolidando conceitos e fortalecendo o DI, cuja função nas relações internacionais, como instrumento de contenção da violência, torna-se progressivamente mais relevante.


Referências

AMARAL JR, Alberto do. Introdução ao direito internacional público. São Paulo : Atlas, 2008.

AYERBE, Luis Fernando. Estados Unidos e América Latina: a construção da hegemonia. São Paulo: UNESP, 2002.

LOHBAUER, Christian. História das relações internacionais II : O século XX : do declínio europeu à Era Global. Petrópolis : Vozes, 2005.

MOREIRA, Luiz Felipe Viel ; QUINTEROS, Marcela Cristina ; e SILVA, André Luiz Reis. As relações internacionais na América Latina. Petrópolis : Editora Vozes, 2010.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos. Porto Alegre: UFRS Editora, 2005.

REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. São Paulo: Saraiva, 1998.

SEITENFUS, Ricardo. Manual das organizações internacionais. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2000.

SHAW, Malcom. International Law. New York: Cambridge Press, 2008.

SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2004.


Notas

[1] CIJ, Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of America, 1986). Decisão proferida em jurisdição contenciosa. Disponível no sítio <http://www.icjcij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3&k=66&case=70&code=nus&p3=5>. Consultada em 05 de janeiro de 2016.

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[2] Política de contenção ao comunismo.

[3] O art. 24 do tratado bilateral assim dipunha:

Article XXIV. 2. Any dispute between the Parties as to the interpretation or application of the present Treaty, not satisfactorily adjusted by diplomacy, shall be submitted to the International Court of Justice, unless the Parties agree to settlement by some other pacific means.

[4] No entendimento da CIJ, entretanto, os temas relativos à jurisdição que se originem de reservas não têm natureza exclusivamente preliminar.

[5] Convenção de Havana sobre Tratados (1928).

[6] Convenção de Montevideu sobre os Direitos e Deveres do Estado (1933).

[7] Embora o caso tenha sido decidido com base no costume e nos princípios gerais do direito, essas matérias também constam do art. 2.º da Carta da ONU: “Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: 1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros. (...) 3. Todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais. 4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

[8] O jus cogens foi reconhecido nos art. 53 e 64 da  Convenção de Viena de Direito dos Tratados (1969).

[9] Na versão em inglês do tratado bilateral, o mencionado dispositivo continha o seguinte texto :

Article XIX

I. Between the territories of the two Parties there shall be freedom of commerce and navigation. 2. Vessels under the flag of either Party, and carrying the papers required by its law in proof of nationality, shall be deemed to be vessels of that Party both on the high seas and within the ports, places and waters of the other Party. 3. Vessels of either Party shall have liberty, on equal terms with vessels of the other Party and on equal terms with vessels of any third country, to come with their cargoes to all ports, places and waters of such other Party open to foreign commerce and navigation. Such vessels and cargoes shall in all respects be accorded national treatment and most-favored-nation treatment within the ports, places and waters of such other Party; but each Party may reserve exclusive rights and privileges to its own vessels with respect to the coasting trade, inland navigation and national fisheries.

[10] No texto autêntico em espanhol, lê-se:

Articulo XXI 1. El presente Tratado no impediri la aplicaci6n de medidas que: (c) regulen la producci6n o el trifico de armas, municiones o instrumentos de guerra, o el trifico de otros materiales destinados directa o indirectamente a abastecer un establecimiento militar; (d) fueren necesarios para dar cumplimiento a las obligaciones de cualquiera de las Partes para mantener o restaurar la paz y seguridad internacionales, o necesarias para proteger sus intereses esenciales y seguridad;

[11] Carta da ONU: Art. 33. 1. As partes em uma controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha.

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Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Os norte-americanos como violadores do direito internacional:: análise da condenação dos EUA pela Corte Internacional de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4626, 1 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46870. Acesso em: 19 abr. 2024.

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