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A coerção penal no âmbito da Lei dos Crimes Hediondos

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30/12/2003 às 00:00
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CAPÍTULO III: DA EXECUÇÃO DA PENA

01 – O REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA

1.1 – Considerações Iniciais

Sem dúvida alguma, a questão mais polêmica acerca da Lei n. 8.072/90 é a que se refere à proibição de progressão de regime prisional aos condenados por crime hediondos ou assemelhados.

Tanto no Código Penal Brasileiro como na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84), adotou-se o sistema progressivo de cumprimento de pena privativa de liberdade. O Código Penal regula a execução da pena privativa de liberdade segundo três regimes: fechado, semi-aberto e aberto, sendo que a pena de reclusão deverá ser cumprida nos regime fechado, semi-aberto e aberto e a de detenção nos regimes semi-aberto e aberto (artigo 33, caput). Além disso, determina o § 2º, do artigo 33, do CP que a execução da pena deve dar-se de modo progressivo, segundo o mérito do condenado. Já o § 3º determina que o regime inicial de cumprimento da pena será estabelecido com observâncias às circunstâncias determinadas pelo artigo 59 do Código Penal.

Também a Lei de Execução Penal estabelece em seu artigo 112 que "a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso", visando assim a gradual integração social do condenado quando este demonstra estar preparado para tal. Júlio Fabbrini Mirabete [26], quanto a isso, bem ensina:

Tendo em vista a finalidade da pena, de integração ou reinserção social, o processo de execução deve ser dinâmico, sujeito a mutações ditadas pela resposta do condenado ao tratamento penitenciário. Assim, ao dirigir a execução da pena para a "forma progressiva", estabelece o artigo 112 a progressão, ou seja, a transferência do condenado de regime mais rigoroso a outro menos rigoroso quando demonstra condições de adaptação ao mais suave. De outro lado, determina a transferência de regime menos rigoroso para outro mais rigoroso quando o condenado demonstrar inadaptação ao menos severo, pela regressão, que ocorre nas hipóteses do artigo 118 da Lei de Execução Penal.

O sistema progressivo visa a ressocialização do condenado para sua reinserção social, onde as penas devem ser executadas progressivamente, conforme o preenchimento de requisitos objetivos e subjetivos.

Todavia, em 1990 foi promulgada a Lei dos Crimes Hediondos trazendo, no artigo 2º, § 1º, a seguinte determinação:

§ 1º - A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.

Ora, que se viu foi que, na ferocidade de dificultar a vida dos criminosos, o legislador acabou-se por embaraçar, editando dispositivo que colide com o sistema progressivo de cumprimento de pena adotado pelo Código Penal Brasileiro e pela Lei de Execução Penal, já que os autores de crimes hediondos e assemelhados devem cumprir integralmente a penas no regime fechado, independentemente da quantidade da pena aplicada e da reincidência ou não dos condenados.

Na mesma linha de raciocínio de Alberto Silva Franco [27], nota-se que o dispositivo em comento além de ser um desestímulo a ressocialização do condenado, ainda proporciona a diminuição de rotatividade de presos recolhidos em estabelecimentos penitenciários que já demonstram estar espantosamente saturados. Além disso, a mantença num presídio de condenado por largo espaço de tempo causa a desesperança no sentido de se obter um tratamento mais favorável e, até mesmo, a liberdade, surgindo daí o inconformismo e o que se vê diariamente: rebeliões. E tudo isso, infelizmente, demonstra, ao final, a inutilidade do sistema penal.

1.2 – Princípios Constitucionais da Humanidade e da Individualização da Pena

Preliminarmente vale aqui estabelecer a finalidade da pena. Três teorias procuram justificar a aplicação da pena:

a)pela teoria absoluta, ou retributiva, a pena funciona apenas como uma retribuição, recompensado o mal com outro mal, aliás, a pena não tem finalidade, tendo como fim ela própria;

b)pela teoria relativa, ou preventiva, a pena visa prevenir a prática de novos delitos, podendo a prevenção ser de caráter geral (com relação a todos) ou especial (com relação ao condenado);

c)pela teoria mista, ou intermediária, a pena tem caráter retributivo e, ao mesmo tempo, preventivo. É preventiva porque visa prevenir a prática de novos crimes, e é retributiva porque a qualidade e a quantidade da pena deve ser de acordo com a gravidade do delito e o grau de culpabilidade do agente.

Inegavelmente, a pena tem caráter retributivo, vez que funciona como verdadeira expiação. Contudo, a pena também tem a finalidade de prevenir a prática de novos delitos, seja pelo próprio condenado, seja pela sociedade em geral. Portanto a pena é isto, um misto de retribuição e prevenção, correção e educação. Deve corresponder à idéia de humanizar, além de punir. E deve ser assim, pois a pena cuja única finalidade é a retribuição nada se distingue da vingança.

Feitas estas considerações, resta-se agora analisar a disposição da Lei n. 8.072/90 que determina, para condenado por crime hediondo e assemelhado, o cumprimento da pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado. Defende-se, com sérios fundamentos, a inconstitucionalidade do dispositivo baseando-se nos princípios constitucionais da humanidade e da individualização da pena.

O princípio da humanidade da pena limita o exercício do jus puniendi do Estado, em respeito à vida e à dignidade da pessoa humana e decorre de diversos dispositivos constitucionais, dentre os quais o inc. III, do artigo 5º, que dispõe: "Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" ou o inc. XLVII que dispõe "Não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis".

Hans-Hainrich Jescheck, citado por Luís Flávio Gomes [28], leciona:

O princípio da humanidade das penas impõe que todas as relações humanas que o Direito Penal faz surgir no mais amplo sentido se regulem sobre a base de uma vinculação recíproca, de uma responsabilidade social frente ao delinqüente, de uma livre disposição à ajuda e assistência sociais e de uma decidida vontade de recuperação do condenado... dentro dessas fronteiras, impostas pela natureza de sua missão, todas as relações humanas reguladas pelo Direito Penal devem estar presididas pelo princípio da humanidade.

Isto posto, pergunta-se: há alguma humanidade ou tentativa de ressocialização em estabelecer-se regime integralmente fechado a um apenado? Evidentemente não. A ideologia que norteou a feitura deste absurdo jurídico-penal é a baseada no sistema punitivo-expiatório, onde a pena tem por finalidade pagar um mal causado com um mal, apenas uma retribuição, quando não até vingança.

Ignorou o legislador, inclusive, que mais efetiva que a pena elevada é a pena certa; mais intimidante que a sanção rigorosa é a sanção eficaz. A pena somente quando é justa e quando é aplicada de modo infalível e rapidamente é que pode gerar algum efeito preventivo.

Conclui-se com lição de Alberto Silva Franco [29]:

Pena executada, com um único e uniforme regime prisional, significa pena desumana, porque inviabiliza um tratamento penitenciário racional e progressivo; deixa o recluso sem esperança alguma de obter a liberdade antes do termo final do tempo de sua condenação e, portanto, não exerce nenhuma influência psicológica positiva no sentido de seu reinserimento social; e, por fim, desampara a própria sociedade na medida em que devolve o preso à vida societária após submetê-lo a um processo de reinserção às avessas, ou seja, a uma dessocialização.

A exclusão do sistema progressivo pela Lei dos Crimes Hediondos também conflita com o princípio da individualização da pena.

Para melhor entendimento, parta-se da interpretação da garantia constitucional inserta no artigo 5º, inc. XLVI, da CF que determina: "a lei regulará a individualização da pena[..]". Veja-se que o legislador constituinte determinou que a individualização da pena deve ser observada quando da elaboração de norma penal e, dessa forma, a lei que generaliza a aplicação da pena, desconsiderando a individualidade do agente, será inconstitucional.

Além do que, a não-progressividade de regime determinada por lei destitui o juiz do poder de particularizar a pena. A Lei de Execução Penal contém a regulamentação adequada para a individualização da pena, em nível de execução. Se o legislador ordinário considerava branda demais a Lei n. 7.210/84, que estabelecesse novas regras para a individualização, não que a impedisse. Se queria dar tratamento rigoroso a essa "etiqueta" de delinqüentes, que o fizesse, mas usufruindo de seus meios, e não invadindo a competência do Judiciário. Agravar a execução é uma coisa; destituir o juiz do poder de particularizar o regime é outra.

Alberto Silva Franco [30] manifesta-se a respeito:

Embora a Carta Magna afirme que "a lei regulará a individualização da pena", força é convir que a lei poderá dar parâmetros para a atuação judicial, mas não poderá, de modo algum, obstar que se realize a individualização punitiva. Destarte, lei ordinária que estabeleça pena fixamente determinada na sua quantidade, ou que impeça a discricionariedade vinculada do juiz na sua aplicação ou não permita a atividade judicial concretizadora na sua execução, é lei inaceitável, do ponto de vista constitucional.

Portanto, lamentavelmente, esta não é opinião isolada acerca da constitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei n. 8.072/90. Veja-se entendimento de Julio Fabbrini Mirabete [31]:

Não ofende o referido dispositivo o princípio constitucional da individualização da pena, estabelecido no artigo 5º, XLVI, da Carta Magna, já que a lei considerou tão graves tais delitos que seus autores devem ser considerados como de periculosidade ímpar, a merecer a segregação mais severa.

Infelizmente, com esse entendimento de que nada há de inconstitucional na fixação de regime integral fechado, vêm decidindo reiteradamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

O § 1º, do artigo 2º é norma constitucional, reconhecida como tal pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (HC n. 69.657 e n. 70.939). Há, no Superior Tribunal de Justiça, vários precedentes no mesmo sentido. Segundo os acórdãos dos tribunais mencionados, o trabalho de individualização da sanção não se esgota com a fixação do regime de cumprimento da pena. Não se vislumbra, portanto, ofensa ao princípio da individualização da pena.

1.3 – Fixação do Regime na Sentença

Como anteriormente demonstrado, a Lei de Crimes Hediondos determina que o condenado por crime nela etiquetado deve cumprir a pena privativa de liberdade em regime integralmente fechado. Portanto, pacífico é o entendimento de ser possível a progressão quando fixado apenas regime inicial fechado para o cumprimento das penas aos autores de crimes hediondos e assemelhados, quando a decisão houver transitado em julgado para a acusação.

Apesar de expressamente disposto na Lei dos Crimes Hediondos, para a aplicação de pena integral em regime fechado necessário se faz que o juiz mencione tal circunstância na sentença. Se na sentença for dito apenas que o regime inicial será o fechado e o Ministério Público não recorrer, o condenado terá direito à progressão. De outra forma, se houver recurso interposto apenas pelo réu em sentença que determina o cumprimento da pena em regime inicialmente fechado, o tribunal não está autorizado a reformar tal decisão para pior (regime integralmente fechado), caso contrário, incidiria em reformatio in pejus.

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Outra questão surge quando o juiz omite na sentença o regime prisional. Entende o STF, como tantos outros tribunais pelo País, que quando condenado por crime hediondo ou assemelhados e há na sentença omissão quanto ao modo de cumprimento da pena, deve o cumprimento da pena se dar em regime "integralmente fechado", por força da disposição legal contida na Lei n. 8.072/90.

1.4 – A Possibilidade Do Regime Progressivo em Face da Lei de Tortura

A Lei n. 9.455, de 07.04.1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências, no § 7º, do artigo 1º, esclarece: "o condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado". Vale dizer, já não exige que, no crime de tortura, a pena seja cumprida integralmente em regime fechado, mas apenas no início.

Em função desta determinação, parte da doutrina e jurisprudência quis estender essa regra para os crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, sob o argumento de que a Constituição Federal determinou a estes delitos tratamento paritário. Essa argumentação, portanto, não logrou êxito, já que a Lei n. 9.455/97 é específica para os crimes de tortura, não incidindo sobre qualquer dos outros crimes dispostos na Lei n. 8.072/90. Dessa forma, a obrigatoriedade de cumprir pena em regime fechado continua a existir nos crimes hediondos, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afim e terrorismo e, somente para os crimes de tortura admite-se a progressão de regime.

Veja-se o claro ensinamento de Julio Fabbrini Mirabete [32]:

Por incoerência do legislador, ao definir o crime de tortura, equiparado a crime hediondo por força do artigo 1º da Lei n. 8.072/90, a Lei n. 9.455/97, prevê para o condenado o regime inicial fechado (§ 7º), não proibindo assim a progressão caso ele venha a preencher os requisitos legais. Tratando-se, porém de regra especial para o crime de tortura, a possibilidade de progressão não se estender aos demais crimes hediondos ou equiparados, vigendo para estes ainda a regra do artigo 2º, §2º, da Lei n. 8.072/90, que determina para o agente o cumprimento integral em regime fechado.

Nesse ponto, o legislador ordinário resolveu ser mais condescendente, já que não é o cumprimento da pena em regime integralmente fechado que diminui a incidência dos crimes etiquetados na Lei de Crimes Hediondos.

1.5 – A Aplicação Temporal do Regime Fechado

Em análise ao parágrafo único do artigo 2º, do Código Penal, extrai-se que, tratando-se de norma penal mais benéfica, a regra a ser aplicada é a da retroatividade da lei mais favorável. A irretroatividade aplica-se, tão só, à lei penal mais severa.

Pois bem, muito se discute acerca da aplicabilidade, ou não, da regra do § 1º, artigo 2º, da Lei n. 8.072/90 (cumprimento da pena em regime integralmente fechado) aos condenados por fatos ocorridos antes de sua vigência. Para Antônio Lopes Monteiro [33], a aplicação deste dispositivo, mesmo que mais severo, aos crimes hediondos e assemelhados é imediata, mesmo para os crimes cometidos antes da vigência desta lei.

Nesse mesmo sentido é a opinião de Julio Fabbrini Mirabete [34], que acrescenta ainda que, por tratar de matéria exclusivamente processual (de execução penal), não vigora a regra de retroatividade da lei mais benéfica. Aplica-se assim, segundo o doutrinador, a regra geral tempus regit actum (artigo 2º do Código de Processo Penal).

Contudo, os defensores desta tese sustentam ainda que, aos condenados que já estejam cumprindo a pena em regime semi-aberto ou aberto, beneficiados que foram desde a sentença condenatória ou com a progressão, não lhes são aplicável a disposição da nova lei, retroagindo ao regime fechado, caso contrário haveria afronta à coisa julgada.

Mas, contrário à aplicação imediata do dispositivo, é o acertado entendimento de Alberto Silva Franco [35]:

Implica, ainda, [o princípio da legalidade] na não-retroatividade de normas legais, que versem sobre a fase executória da pena, e que se mostrem idôneas a agravá-la, ou na retroatividade dessas mesmas normas, no caso de minorá-la. Porque "a maior ou menor severidade do regime prisional liga-se, em primeira e última análise, com a própria qualidade da resposta penal", não podendo ele (o regime prisional) "ser objeto da modificação por lei posterior ao crime, que seja mais gravosa. Do contrário, haverá viva ofensa à garantia constitucional da irretroatividade da lei mais draconiana (artigo 5º, inc. XL)". A acolhida do princípio da legalidade, na execução penal, é, portanto, inconciliável com a aplicação imediata do novo dispositivo legal que incida negativamente sobre a situação prisional do executado.

Felizmente, a grande maioria dos tribunais brasileiros, inclusive o STF, vem decidindo que proibida é a retroatividade da lei mais severa, admitindo, assim, a progressão no caso de crime praticado antes da vigência da Lei dos Crimes Hediondos.

02 – A APLICABILIDADE DAS PENAS ALTERNATIVAS A CRIMES HEDIONDOS

O Código Penal, no seu artigo 32, vale lembrar, dividiu as penas em privativas de liberdade, restritivas de direito e de multa, tratando-se de reprimendas distintas, possuindo, cada uma, características próprias e diferenciadas entre si.

Pois bem, ao que interessa neste tópico, a Lei n. 9.714/98, que altera dispositivos do Código Penal (artigos 43, 44, 45, 46, 47, 55 e 77), fixa, no artigo 44, requisitos objetivos e subjetivos para a substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito (doutrinariamente alcunhadas de "penas alternativas"). Os requisitos objetivos que deverão ser cumpridos são: a) a pena inferior ou igual a 04 (quatro) anos, se o crime for doloso; b) crime praticado sem violência ou grave ameaça a pessoa; c) réu não reincidente em crime doloso. Quanto aos requisitos subjetivos, necessário se faz a análise dos seguintes elementos: a) culpabilidade; b) antecedentes; c) conduta social e a personalidade do condenado; d) motivos e circunstâncias do crime.

Nota-se que os requisitos a serem obedecido para haver a substituição da pena privativa de liberdade pelas restritivas de direito são somente estes acima enumerados, nenhum mais. E mais, sabido é que normas fixadas em lei geral (no caso o Código Penal) são aplicáveis em fatos incriminados em leis especiais, se estas não dispuserem de forma diversa (conforme artigo 12 do Código Penal).

Assim, nessa linha de raciocínio, a Lei n. 8.072/90, que é especial, definiu os crimes hediondos e os assemelhados, e disciplinou diversas normas de direito penal, processo penal e execução aplicáveis aos crimes ali definidos, mas nada dispôs acerca da impossibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito, que deixa acreditar que é plenamente possível a aplicação das penas alternativas aos crimes hediondos e assemelhados (claro que excluídos aqueles cujas penas aplicadas excedam 4 anos e os praticados com violência e grave ameaça à pessoa).

Essa conclusão se dá com base no princípio da legalidade, também conhecido como da reserva legal ou da anterioridade da lei, consagrado no artigo 1º, do Código Penal, e constitucionalizado no artigo 5º, incisos XXXIX e XL, da CF/88. Ora, se nem o Código Penal e nem a Lei n. 8.072/90 proibiu a aplicação de penas alternativas aos crimes hediondos e equiparados, não cabe ao interprete fazê-lo por conta própria, em face ao principio da legalidade.

Outra questão se refere a previsão da Lei n. 8.072/90 que estabelece o regime integralmente fechado para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Seria então incompatível a substituição da pena em face desta determinação? Sábios doutrinadores crêem que não. Luiz Flávio Gomes [36] entende que:

o regime fechado determinado pela lei dos crimes hediondos somente é válido para a fase de execução da pena de prisão. Se o juiz entende que a prisão imposta deve ser substituída por outra sanção alternativa, não se chega a execução da pena de prisão (isto é, não se chega a sua fase executiva). Logo, não é o caso de se aplica o "regime fechado". Só se pode falar em "regime" na fase de execução da pena de prisão.

Assim, quando da aplicação da pena privativa de liberdade, o juiz deve fixar o regime inicial de seu cumprimento para, posteriormente examinar obrigatoriamente, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, a substituição por outra espécie de pena, se cabível. Mas a substituição se dá sempre antes da fase de execução da pena.

Feitas estas considerações, conclui-se que, na prática, as penas alternativas definidas no artigo 43 do Código Penal, poderão ser aplicadas (desde de que preenchidos os requisitos) no crime hediondo definido no artigo 273, § 2º, do CP (falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais na modalidade culposa), já que a conduta não é realizada com violência ou grave ameaça, e sim mediante fraude, e a pena, no caso de tentativa, pode ser inferior a 4 (quatro) anos.

Quanto à aplicabilidade das penas alternativas aos crimes equiparados aos hediondos, ao que se refere ao terrorismo, inaplicável a substituição, já que é este não ainda tipificado. Da mesma forma, inadmissível a substituição em caso de tortura, que, para sua configuração, necessário se faz o emprego de violência e grave ameaça e para a substituição, por sua vez, pressupõe-se que o crime não seja praticado em tais circunstâncias. Já quanto ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, admite-se a imposição de penas alternativas, tendo em vista que as penas mínimas previstas nos artigos 12, 13 e 14 da Lei n. 6.368/76 é de 03 (três) anos de reclusão.

Mas nunca se deve esquecer, que o tratamento mais leve, no caso a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito (ou alternativa), está sempre condicionado as circunstâncias subjetivas e objetivas definidas no artigo 44 do Código Penal.

03 – LIVRAMENTO CONDICIONAL E REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA

A Lei n. 8.072/90, através de seu artigo 5º, acrescentou o inciso V ao artigo 83 do Código Penal que dispõe sobre os requisitos para a concessão do livramento condicional. O novo dispositivo determina que o condenado por crime hediondo ou assemelhado obterá a concessão do livramento condicional se, além de preencher os requisitos já determinados pelo Código Penal (pena fixada na sentença igual ou superior a dois anos, bom comportamento carcerário, ausência de periculosidade etc), preencher mais dois novos requisitos, quais sejam: 1º) o cumprimento de mais de dois terço da pena; e 2º) não ser ele reincidente específico. Veja-se a determinação legal:

Art. 5º - Ao artigo 83 do Código Penal é acrescido o seguinte inciso:

Art. 83 -...

V - cumprido mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza.

Ao que se refere o primeiro requisito (o tempo de cumprimento de pena para concessão do livramento condicional), à primeira vista parece haver um choque com o artigo 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos, que determina o cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Ora, se condenado por crime hediondo ou assemelhado deve cumprir a integridade da pena em regime fechado, como, então, aceitar que após o cumprimento de dois terços da pena imposta (e não a integridade desta) tenha ele a concessão do livramento condicional?

Na verdade, a contradição existente entre o artigo 83, inciso V, do Código Penal e o artigo 2º, § 1º, da Lei dos Crimes Hediondos é apenas aparente. A doutrina, quase que na sua totalidade, defende ser as duas disposições conciliáveis. Veja-se que, presentes os pressupostos autorizadores da concessão do livramento condicional, é inquestionavelmente permitida a concessão do benefício, ficando o condenado em regime exclusivamente fechado até a concessão de sua liberdade condicional. Em outras palavras, enquanto não puder se beneficiar com o livramento condicional, o condenado por crime hediondo ou assemelhado deverá cumprir a pena integralmente no regime fechado, sem poder obter progressão para regime mais leve.

O segundo requisito a ser obedecido para a concessão do livramento condicional ao condenado por crime hediondo ou assemelhado é que não seja ele "reincidente específico em crimes dessa natureza". Então, sendo o condenado reincidente específico, inadmissível é a concessão do livramento condicional para este.

Mas, o que vem a ser a "reincidência específica"? A Lei dos Crimes Hediondos ressuscitou, e não definiu, esta figura que há tempos fora sepultada pelo ordenamento penal, e que na doutrina e jurisprudência vem sendo objeto de controvérsia.

Damásio Evangelista de Jesus [37] sobre o assunto informa:

Há a reincidência específica, para efeito da disposição, quando o sujeito, já tenha sido condenado por qualquer dos delitos elencados por sentença transitado em julgado, vem novamente a cometer um deles. Exs. crime hediondo anterior e tráfico de entorpecentes; estupro e tráfico de entorpecentes; latrocínio e tortura etc.

Parecer diverso, mas talvez não tão acertado, tem Alberto Silva Franco [38]:

A reincidência que deve ser levada em conta, tem características próprias, exclusivas: tem sua especificidade. E tal especificidade reside, exatamente na comunicabilidade dos dados de composição típica dos dois delitos. Qual a sintonia que pode existir entre o delito de atentado violento ao pudor, simples ou qualificado, e o tráfico ilícito de entorpecentes? [...] Evidentemente nada.

Ora, se bem analisada a intenção da lei ao fazer uso da expressão "reincidente específico em crimes dessa natureza", vê-se que não se refere esta a crimes da mesma espécie, como querem alguns, refere-se a todos os crimes descritos na Lei n. 8.072/90.

Feitas estas considerações, acredita-se ser a posição mais acertada a que se refere ao reincidente específico como sendo aquele que, condenado com sentença transitada em julgado por crime descrito na Lei n. 8.072/90, venha a praticar outro crime previsto na mesma lei, independentemente da natureza do primeiro ou do segundo.

04 – DA INSUSCETIBILIDADE DE ANISTIA, GRAÇA E INDULTO

A anistia, a graça e o indulto são formas de extinção da punibilidade previstas no artigo 107, II, do CP. Através destes institutos o Estado renuncia o jus puniendi.

Vale aqui fazer a distinção básica entre estes três tipos de clemência soberana. Enquanto a anistia se aplica ao fato, a graça e o indulto se aplicam às pessoas. Enquanto a graça (que alguns doutrinadores a reconhece como indulto individual) é concedida individualmente quando solicitada, o indulto é concedido coletivamente, sem necessidade de solicitação.

Para o estudo destes institutos na Lei dos Crimes Hediondos, deve-se voltar à análise do artigo 5º, XLIII, da Constituição, que considera os crimes hediondos insuscetíveis de "graça ou anistia". Já a Lei dos Crimes Hediondos traz em seu bojo que os crimes hediondos são insuscetível de "anistia, graça e indulto". Note-se, então, que no inciso proibitivo, o constituinte não inseriu o indulto, enquanto o legislador ordinário o fez na Lei dos Crimes Hediondos.

Ora, teria aí o legislador ordinário extrapolado os limites que lhe foi conferido por ocasião do preceito constitucional?

Há duas posições doutrinárias acerca do tema. Alberto Silva Franco [39] manifesta-se pela inconstitucionalidade do dispositivo da lei ordinária, citando o Ministro Assis Toledo:

... o Min. Assis Toledo deu à questão uma interpretação diversa, considerando inaceitável a proibição do indulto, por meio de lei ordinária. ‘No artigo 84, XII, a Constituição prevê expressamente o indulto e o atribui à competência discricionária do Presidente da República. Ora, esse poder discricionário do Chefe do Executivo encontra seus limites no próprio texto constitucional, não podendo sofrer restrições pelo legislador ordinário. E a Constituição, quando quis fazer restrições, mencionou a anistia e a graça, deixando de fora o indulto, por ela previsto expressamente no citado artigo 84, XII. Assim é, porque parece ilógico tomar, no artigo 84, XII, a palavra indulto como abrangente da graça e, logo adiante, no mesmo texto constitucional (inc. XLIII do artigo 5º), inverter o raciocínio para entender a graça é que abrange o indulto’.

Noutro sentido é a posição de Antônio Lopes Monteiro [40]:

A Lei n. 8.072/90, ao vedar a aplicação destes benefícios [..] apenas repetiu o texto constitucional citado (artigo 5º, XLIII). Note-se que, numa interpretação legal, o dispositivo incluiu o termo "indulto" para não dar margem a dúvidas. [...] o texto constitucional no preceito concessivo utiliza o termo "indulto"; já no de proibição, o termo "graça". Ora, se não fossem utilizados, com as devidas diferenças técnicas apontadas, como equivalentes, não seria lógico que no artigo 5º, XLIII, a Constituição proibisse alguma coisa que no artigo 84, XII, não estivesse prevista. Queremos com isso dizer que a concessão do indulto coletivo, assim como do indulto individual (graça), já estava proibida no texto da Carta Magna. Nem o dispositivo da Lei dos Crimes Hediondos é inconstitucional ao acrescentar o indulto, nem o dispositivo constitucional, omitindo-o, teria sido omisso.

Esta segunda posição talvez seja a mais lúcida, já que se bem analisado o artigo 5º, XLIII, percebe-se que a finalidade deste é a exclusão de todas as formas de clemência soberana aos autores de crimes hediondos e assemelhados e não haveria o porquê da exclusão de apenas parte destas.

05 – PRESÍDIOS FEDERAIS

A doutrina pouco diz acerca do assunto "presídios federais", estabelecido pela Lei de Crimes Hediondos. Mesmo assim, vale o estudo do tema.

Determina o artigo 3º da Lei n. 8.072/90:

Art. 3º - A União manterá estabelecimentos penais, de segurança máxima, destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou incolumidade pública.

Nota-se que a norma do artigo 3º é uma norma programática. Diz-se programática porque o legislador ordinário impôs um programa, qual seja, a construção de presídios federais, de segurança máxima. Só que, como para a concretização deste programa necessário se faz verbas, esta norma é letra morta.

O legislador ordinário demonstrou boas intenções neste ponto, criando importante medida em face da periculosidade daqueles que praticam crimes etiquetados como hediondos. A colocação desses criminosos em presídios de segurança máxima dificilmente permitiria que eles comandassem a criminalidade de dentro das prisões, como não raramente acontece nos dias atuais.

Mas, para o Estado, a questão prisional é relegada a uma posição secundária. Valdir Sznick [41] acertadamente opina:

Aí está a norma. Resta agora a vontade política de construir presídios. Cumpre assinalar que presídios e sua construção, assim o entendemos, não dão voto. Mas se não dão votos diretamente, dão-nos indiretamente, através da tranqüilidade e segurança que passam a fornecer aos cidadãos.

Lamentável é que os governos não atentem para este dispositivo, de imensa relevância no combate à criminalidade [42]. [43]

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Sobre a autora
Simone Moraes dos Santos

advogada em Jataí (GO)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Simone Moraes. A coerção penal no âmbito da Lei dos Crimes Hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 177, 30 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4690. Acesso em: 24 abr. 2024.

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