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Sustentação oral

06/01/2004 às 00:00
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            "(...) ser legalista, positivista, formalista, napoleônico, asséptico (um eunuco ético) ou, de outro lado, ser constitucionalista, garantista, crítico e eticamente engajado. Essas são as alternativas: faça a sua escolha! Dados e elementos para isso, creio, já foram oferecidos. Você já está em condições certamente de decidir. Mudança ou manuntenção do status quo? Lógica da subsunção ou o método da ponderação? Sujeição absoluta à lei ou proporcionalidade?

            LUIZ FLÁVIO GOMES, Princípio da ofensividade no direito Penal: não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico (nullum crimen sine iniuria), funções político-criminal e dogmático-interpretativa, o princípio da ofensividade como limite do ius puniendi, o princípio da ofensividade como limite do ius poenali. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, pg. 114.


            A maioria dos Advogados já sentiu a dor causada pela absurda situação de ver, finalizada uma sustentação oral, ser o réu acusado depois de realizada a defesa. Pese pareça inverossímil, isto ainda acontece nos tribunais brasileiros.

            Ora, o processo penal moderno deve ter por norte a Constituição Federal e não mais a letra fria do CPP, que é de 1941, de cunho fascista (1). Assim sendo, a leitura a ser feita do diploma em questão, como de resto de toda a legislação brasileira vigente, é sob o prisma da adequação de suas previsões à matriz constitucional. Disto, por óbvio, não se escusam nem mesmo os regimentos internos dos tribunais. (2)

            Na instância superior, como se sabe, antes do processo ser enviado a julgamento, é produzido um "parecer" pelo Procurador de Justiça (art. 610. do CPP), o qual, durante a sessão, depois de falar o patrono do réu, tem novamente a oportunidade de se pronunciar, agora de forma oral. Isto acontece mesmo tratando-se de recursos interpostos pela imputado, os quais já vêm do juízo "a quo" contra-arrazoados pelos órgãos ministeriais atuantes nas Varas. Ou seja, além de falar depois da defesa no tribunal, pronuncia-se o MP, por escrito, em pelo menos duas ocasiões – uma antes e outra depois daquela. É evidente tal situação não se conformar com os princípios constitucionais do contraditório, do devido processo legal, da ampla defesa e da isonomia, consagrados na CF. (3) Tal inversão na ordem processual justificar-se-ia porque o MP de segundo grau opinaria como fiscal da lei. Ora, neste caso, em que condição atuaria o Promotor de Justiça, o qual fala sempre depois do defensor? (4)

            Embora em ambos os casos atue o órgão ministerial também como "custos legis", tal fato não lhe retira a condição de parte. Nos dois momentos traz o MP, dentre os seus misteres, o de fiscalizar a correta subsunção dos procedimentos à forma legal. Evidentemente não tem interesse em condenações injustas, mas o fato de ser ou não alguém merecedor de pena é juízo definitivo adstrito ao Poder Judiciário. Dito de outra maneira: a acusação pode, como se sabe, pedir a absolvição e vir o réu a ser condenado; postular a condenação e aquele ser absolvido. Assim sendo, existe, obviamente, a possibilidade de que requeira a penalização de um inocente, mas que a seu juízo seja culpado. Cumpre, então, que o órgão estatal realmente eqüidistante - o Judiciário - diga o Direito. O "Parquet" é sim, como se vê, parte processual, logo não pode ser imparcial, porque estes dois conceitos (parte/imparcialidade) são antagônicos. A parte será, pela própria etimologia da palavra (5), por excelência parcial.

            Neste sentido, Noronha (6): "(...) No processo penal é "parte", como senhor que é da ação: propõe-na, enumera e fornece provas, luta e porfia para o triunfo final da pretensão punitiva, que será proclamado pelo Juiz contra o acusado".

            Também Aury Celso L. Lopes Jr. reconhece ser a suposta imparcialidade do MP no processo penal fruto de uma construção artificial, citando Carnelutti (7): " No es como reducir um círculo a um cuadrado, construir uma parte imparcial? El ministerio público es um juez que se hace parte. Por eso, en vez de ser uma parte que sube, es um juez que baja". Depois, o autor gaúcho antes referido refere Goldschmidt (8), para quem: "o problema de exigir imparcialidade de uma parte acusadora significa cair ‘em el mismo error psicológico que há desacreditado al processo inquisitivo’, qual seja o de crer que uma mesma pessoa possa exercitar funções tão antagônicas como acusar, julgar e defender".

            Ademais, sendo o MP o "dominus litis", é de se esperar tenha o Procurador de Justiça estreito vínculo com a acusação, cuja posição ocupou durante quase toda a carreira. De regra tomará o partido daquela.

            Tal anomalia, fere de morte o princípio do devido processo legal, o qual exige regular contraditório. Referindo-se a este postulado, diz Tourinho Filho (9): "Deve haver uma luta leal entre acusador e acusado. Ambos devem ficar no mesmo plano, embora em pólos opostos, com os mesmos direitos, as mesmas faculdades, os mesmos encargos, os mesmos ônus. Não se deve esperar justiça de uma sentença, se uma das partes gozar de mais vantagens que outra". Mais adiante: "Mas, se as partes se situam no mesmo plano e devem ser tratadas igualmente, quem deve falar por último? Claro que o que defende." E conclui: "(...) Assim, se cabe ao Promotor, como órgão do Estado, promover e fiscalizar a execução da lei, que razão teria Estado para, na fase recursal, em que o Promotor teve oportunidade de se manifestar com aquele zelo, com aquela imparcialidade própria de um "custos legis", procurar ouvir, novamente, o mesmo órgão que deve fiscalizar a execução da lei? (10)

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            Como corolário dos postulados antes referidos, erige-se o princípio da isonomia, consagrado no art. 5º, "caput" da CF, talqualmente malferido pela vicissitude em comento. Neste particular, leciona Alexandre de Moraes (11): "A igualdade configura-se como uma eficácia transcendente, de modo que toda situação de desigualdade persistente à entrada em vigor na norma constitucional deve ser considerada não recepcionada, se não demonstrar compatibilidade com os valores que a Constituição, como norma suprema, proclama".

            Na mesma senda - e igualmente tisnada pela esdruxularia sobre a qual se testilha - figura a garantia constitucional da ampla defesa, assentada no art.5º, "LV" da Carta Política, segundo a qual "o acusado goza do direito de defesa sem restrições, num processo em que deve estar assegurada a igualdade das partes" (12).

            No sentir de José Afonso da Silva (13):"(...)O fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da Constituição resulta o da "compatibilidade vertical" das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a Constituição".

            Em Kelsen (14), a validade de uma norma está tão-somente em harmonizar-se ela de modo formal a outra anteriormente existente e de hierarquia superior. A moderna democracia constitucional (15), entretanto, demanda mais: para ser válida, deve a norma, para além de apenas enquadrar-se formalmente a outra mais elevada (CF), trazer em seu bojo aspectos materiais a justificarem-na, os quais são direitos fundamentais. Ensina Ferrajoli (16): "O Estado Constitucional de Direito não é mais que esta dupla sujeição do direito ao direito, gerada por esta dissociação entre vigência e validade, entre forma e substância, entre legitimação formal e legitimação substancial ou, se quiser, entre as weberianas ‘racionalidade formal’ e ‘racionalidade material’." Evidentemente, no caso em tela, os comandos - do CPP ou dos Regimentos Internos dos Tribunais - que não guardem congruência formal e material com a Lei Maior - não têm validade.

            Por fim, vale lembrar as palavras do ínclito Professor Alberto Zacharias Toron (17), ao referir-se à desarrazoada possibilidade em apreço, no 5º Painel para a reforma do Código de Processo Penal, em São Paulo (OAB/SP, 25/05/2001):

            " - É o espancamento da lei processual penal!"


Notas

            01. MOREIRA, Rômulo de Andrade. Direito ao devido processo legal. Disponível na internet: http://ibccrim. org.br, 10/12/2002.

            02. O Regulamento Interno do Tribunal de Justiça do RS, por exemplo, prevê fale o MP depois da defesa. Se houver assistente de acusação, este falará depois daquele (art. Art. 177, § 7º).

            03. MOREIRA, Rômulo de Andrade. O parecer do Ministério Público na superior instância. Disponível na internet: http://ibccrim.org.br, 11/03/2002.

            04. Questão proposta no artigo citado.

            05. Segundo HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque, Novo dicionário da língua portuguesa. 2º ed. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986, pg. 1273: "Parte: (...)8. Cada uma das pessoas que se opõem num litígio; (...) 10. Partido, causa, facção."

            06. NORONHA, E. Magalhães. Curso de direito processual penal. 2ª ed. São Paulo. Saraiva, 1966, pg. 180.

            07. Apud LOPES JR. Aury Celso L. O fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade garantista. Disponível na internet, fazendo citação à obra do mestre italiano: Poner em su posto al Ministério Publico.In: Cuestiones sobre el processo penal, p. 211 e ss.

            08. Problemas jurídicos e políticos del processo penal, pg. 29, referido no artigo citado.

            09. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 17ª ed. São Paulo. Saraiva, 1995, pg. 417.

            10. Ob. cit. pg. 418.

            11. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Ed. Atlas S.A., 2002, pg. 181.

            12. MIRABETE, Julio Fabrini. Processo Penal. 14º ed. São Paulo, Editora Atlas S.A., 2003, pg. 43.

            13. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. Malheiros Editores. São Paulo, 1999, pg. 49.

            14. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo. Martins Fontes, 1985, p.p 205 e ss.

            15. Por todos, FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón - Teoria del garantismo penal. Editorial Trotta, Madrid, 2001.

            16. FERRAJOLI, Luigi. O estado constitucional de direito hoje: o modelo e a sua discrepância com a realidade. Publicado na Revista do Ministério Público, n. 61, p. 29.

            17. Citado por DÓRO, Tereza Nascimento Rocha/GRECCO, Leonardo. O parecer acusatório do procurador de justiça nos autos da apelação criminal (Da notória desigualdade de armas entre o promotor de justiça e o advogado) Disponível na internet: http://ibccrim.org.br, 05.10.2001.

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Sobre o autor
César Peres

Advogado criminalista em Porto Alegre (RS). Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal na ULBRA de Gravataí (RS). Especialista e Mestre em Direito. Presidente da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul (Acriergs).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, César. Sustentação oral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 184, 6 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4697. Acesso em: 23 abr. 2024.

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