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Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais

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6. Conclusão.

Mesmo atualmente, quando de há muito consolidada e conformada a “separação” subjetiva dos poderes, persiste o perigo – ao menos em democracias cujas instituições ainda não estejam sedimentadas com a prática e a experiência secular – de movimentos concentralistas, que invariavelmente descambam em abusos.

Esses abusos, por vezes, não estão mais tão representados num movimento concentralista tendente ao absolutismo. A isso, na maioria dos Estados, a divisão de poder e a pressão social interna e internacional parecem já ter dado resposta eficiente.

O “golpe” hoje está muito mais representado na figura do deficit de efetividade constitucional. Porém, dito receio provém, principalmente, semper et semper, a partir da atuação da pessoa do governante, do executivo.

Isso ocorre porque, dadas as múltiplas missões afetas ao Estado-gestor e dos muitos fins específicos que institucionalmente visa atingir, há de contar, portanto, a fim de desempenhá-los a contento, com certa liberdade de movimento e atuação, há de dispor de inúmeras competências, há de deter os mais variados meios e recursos materiais. Daí que, com tamanha dimensão e importância, poderá tender a relegar a plano inferior os fins genuinamente estatais consagrados na Constituição, no catálogo dos direitos fundamentais sociais.

Isso é facilmente observado em nosso país, a partir do exemplo de uma prática que vem sendo reiterada governo após governo e que consiste em minguar as políticas públicas durante a maior parte do mandato para “soltá-las” próximo do pleito eleitoral subsequente, com nítido objetivo de captação de votos.

Sendo assim, não se pode prescindir de mecanismos eficientes de controle, que igualmente somente podem advir da mesma matriz de poder, como são as estabelecidas funções legislativa e jurisdicional.

Vista a resistência ao controle popular dos atos administrativos, pela função jurisdicional, sob a perspectiva contemporânea da configuração triásica do Poder do Estado, supera-se a tradição paralisante, refratária e negativista, que vê nesse tipo de demanda judicial ofensa ao dogma da “separação dos poderes”. Ora, negar-se a tutela ao administrado-jurisdicionado, não porque seja este destituído do direito, mas em homenagem a uma suposta intangibilidade do “poder” ou auto-inidoneidade, significa sacrificar a Constituição, quando esta escrevinha a não exclusão da apreciação do Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito (amplo acesso à tutela jurisdicional) e estampa, já em seu artigo inaugural, que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. Desse modo, não se há negar, o Povo, administrado-jurisdiconado, está sim exercendo o poder que dele exsurge – e o faz de modo direito – quando deduz jurisdicionalmente a sua pretensão; pretensão esta que, uma vez ajustada ao arquétipo constitucional, não pode ser desprezada pelo Estado.

A técnica da distribuição do poder em funções independentes é secular. Dá-nos bem essa certeza Nelson Saldanha[33] ao assentar que “a idéia da separação de poderes, cara a todas as gerações liberais, vinha de longe: Aristóteles, Marsílio, Locke, Montesquieu. Aliás, Montesquieu é sempre, mas algo injustamente, acusado de haver posto em voga o termo séparation, que depois se considerou excessivo; na verdade ele pouco emprega o verbo ‘separar’, ao versar o assunto”.

Assim também registra Bonavides[34] que “o princípio da separação de poderes, de tanta influência sobre o moderno Estado de Direito, embora tenha tido sua sistematização na obra de Montesquieu, que o empregou claramente como técnica de salvaguarda da liberdade, conheceu, todavia, precursores, já na Antigüidade, já na Idade Média e tempos modernos”.

Pelo distanciamento temporal longínquo, desde o seu surgimento até os dias atuais, é intuitivo que o barro sócio-político, a partir do qual se materializou a desconcentração do poder, tenha sido substituído pela liga de aço, polida e aparelhada pelas sucessivas experiências transformadoras das gerações, de modo a atender, hoje, a uma funcionalidade mais complexa. Quer-se dizer: o ideário subjacente à sua origem impregnou a consciência que a elaborou para aplacar a ebulição social de então. Mas, decerto, as feições originárias não respondem satisfatoriamente à atual conjuntura, máxime no que concerne a Estados periféricos de acentuado e notório deficit fundamental-social.

Entretanto, a noção do arcabouço fático que circunvolveu o nascedouro da tecnologia da compartição do poder político é obviamente determinante para a compreensão desse instituto juspolítico.

Nesse sentido é a advertência de Bonavides[35] ao dizer que “o princípio da separação de poderes, tanto quanto o da soberania, demanda do cientista político o indispensável exame da ambiência histórica em que se gerou, fora da qual se faz de todo incompreensível, quer na idade em que se elevou à altura de dogma constitucional – o século XIX – quer nos dias presentes, que testemunham já o declínio da influência auferida nas passadas quadras do liberalismo”.

Nesse estágio, reitere-se, a desconcentração do poder foi considerada pelos idealizadores e estudiosos como um modo seguro de suplantar o absolutismo e, de conseguinte, garantir e proteger as liberdades individuais.

Inobstante esse apelo institucional, força é reconhecer que, a par da contenção do poder absoluto do rei, o projeto liberal da separação de poderes atenderia a outro interesse da burguesia ascendente e dominante, traduzido na imobilização “da progressiva democratização do poder, sua inevitável e total transferência para o braço popular”.

O pendor para o abuso de quem detenha e reúna todo o poder político, identificado por Montesquieu, ainda persiste, em tempos modernos, mesmo após a desconcentração que propusera e se implantara no mundo ocidental, destacadamente em países periféricos, a exemplo do Brasil.

Georg Jellinek, já no início do século passado, observando realisticamente a decantada capacidade injuntiva da Constituição, vaticinava o descompromisso e a indiferença da classe economicamente dominante, pois que “as proposições jurídicas são impotentes para controlar a repartição estatal de poderes e que as forças políticas reais se movem segundo suas próprias leis, que atuam independentemente de todas as formas jurídicas”. [36]/[37]

Diante de um quadro de subversão da Lei Maior, especialmente no que concerne à efetividade dos direitos fundamentais sociais, é que se faz indispensável que sejam reafirmadas a supremacia e a força normativa da Constituição.

Não se pode perder de vista, ou fazer tábula rasa, de que o Brasil constitui-se numa república sob o modelo do Estado Constitucional Social Democrático de Direito (e de Direito Democrático), assentado debaixo da soberania popular.

Sendo assim, é a essa vontade geral delineada na Constituição que devem submeter-se todos e quaisquer agentes do Estado, de modo que a configuração tripartite do poder político, emanado do povo, não pode jamais ser concebido em desfavor deste, a exemplo do que ocorre quando a função jurisdicional, uma vez devidamente provocada pela sociedade, dá de costas aos notórios desmandos operados pela função governativa.

As idéias de soberania popular, distribuição das funções de poder e supremacia da Constituição, a partir das ponderações de Rousseau, Montesquieu e Sieyès, segundo Nelson Saldanha[38], assentaram o fato de “os poderes outros serem constituídos os colocava abaixo da constituição; somente o poder constituinte estaria acima da constituição, não só como origem sua, mas também como seu fundamento”.

W. B. Gwuin[39] narra que “na Inglaterra, em 1649, no seu Rights of the Kingdom, Jonh Sadler havia escrito que ‘se a execução é consoante com o julgamento, e este com a lei (entenda-se aqui: Lei Maior), então haverá uma doce harmonia; uma espécie de unidade sacra, em uma trindade’”. O raciocínio inverso impõe-se: se a execução é dissonante com a Constituição, então haverá desarmonia e estará dissolvida a unidade e quebrada a trindade, a não ser que a função jurisdicional do poder deseje harmonizar-se no propósito de malbaratar a Constituição.

Esse perigo, já o anuncia Paulo Bonavides[40], ao analisar a crise da função jurisdicional do Poder, apontando que “a falta de ‘patriotismo constitucional’ do Supremo (e aqui se emprega adrede expressão predileta dos constitucionalistas alemães) levanta, em maneira atroz e grave, o problema da independência dos Poderes. E o levanta por inculcar um aparente compromisso de colaboração e sujeição, às vezes indissimulável, aos desígnios do Poder Executivo. Este recebe, por conseguinte, considerável reforço às suas posições autocráticas”.

Prossegue Bonavides[41], advertindo que a subserviência do mais alto tribunal do país, “desvirtuado de sua missão tutelar, poderá minar o contrato social, debilitar a legitimidade democrática do regime, abrir janelas e escancarar portas às pressões inidôneas do Poder Executivo e, ao mesmo passo, desertar a função precípua de tutor do ente constitucional, fazendo, em certa maneira, mais tormentosas as crises e contradições e contrastes do sistema”.

À parte o servilismo, dogmaticamente não há razões impedientes de a função jurisdicional reassumir, ou assumir definitivamente, a sua missão institucional de salvaguarda dos postulados constitucionais, no sentido de, em sede de competente ação ajuizada, tanto que evidenciado o descumprimento irrazoável de um direito social estatuído na Constituição, exercer o dever constitucional de conferir eficácia ao controle popular da função governativa, reconduzindo-a aos trilhos constitucionais.

Bandeira de Mello[42], chamando a atenção para a característica de subsunção que orienta a relação da Administração com a lei – designadamente a Lei Maior – salienta que “as atividades estatais, maiormente as administrativas, nada mais são do que o cumprimento dessa vontade geral fixada, em primeiro plano, no texto constitucional, e, de seguida, na lei”.

Ao desincumbir-se do seu dever, não há como, com honestidade intelectual, enxergar protagonismo nessa atuação da função jurisdicional do Poder, mas o contrário denota um abstencionismo débil e um confinamento renuncista absolutamente incompatíveis com o múnus público que lhe atribui a Constituição.

Múnus, por certo, na precisa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[43], para quem “a ordenação normativa propõe uma série de finalidades a serem alcançadas, as quais se apresentam, para quaisquer agentes estatais, como obrigatórias. A busca destas finalidades tem a índole de dever (antes do que poder), caracterizando uma função, em sentido jurídico”. Conclui dito autor que o “eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever”.

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Hoje, é assente e remansoso o controle exercido pela função jurisdicional sobre a constitucionalidade da produção jusnormativa a cargo da função legislativa. Mas não foi sempre assim. Tal como o controle do mérito e da oportunidade dos atos de governo, não se cogitava do controle de conformidade da lei em face da norma fundamental, no início da fase moderna.

Quando surgiu mais vivamente, acompanhando os primeiros tempos do liberalismo, a partir da idéia do abade Sièyes de supremacia da Constituição e da possibilidade de controle dos atos legislativos com a experiência da Suprema Corte americana de Marshal, não foi, por certo, sem que se rompessem dogmas assentados historicamente, com embates no campo das idéias. Porém, isto foi superado e, atualmente, no mundo ocidental, esse controle é indiscutível, sob o ponto de vista da sua legitimidade e necessidade.

Ora, assim como é possível ao Legislador, ao produzir normas, no exercício da sua capacidade primordial, agredir a Constituição, da mesma forma também é francamente possível que a função executiva do Poder, a partir da sua atuação governativa (comissiva ou omissiva), igualmente incorra em desobediência ou inobservância de certo postulado constitucional.

Destarte, do mesmo modo que a tecnologia jurídica desenvolveu fórmulas para que a função jurisdicional do poder fulminasse as inconstitucionalidades legislativas, também saberá manejar os provimentos jurisdicionais aptos a reconduzir a administração ao ideário da Lei Suprema. O que não se pode admitir é a insindicabilidade popular, por meio da função jurisdicional, dos atos da instância governativa.

Esse é o entendimento sustentado por Humberto Ávila[44], para quem “(...) o exercício das prerrogativas decorrentes do princípio democrático deve ser objeto de controle pelo Poder Judiciário, especialmente porque restringe direitos fundamentais. Em vez da insindicabilidade dessas decisões (Nichtjustitiabilität), é preciso verificar em que medida essas competências estão sendo exercidas”.

Ademais, esclarece esse autor que “(...) o controle de constitucionalidade poderá ser maior ou menor, mas sempre existirá, devendo ser afastada, de plano, a solução simplista de que o Poder Judiciário não pode controlar outro Poder por causa do princípio da separação dos Poderes”.

Essa é também a recomendação que se extrai de Krell[45], quando critica a aplicação tout court de teorias alienígenas, de países centrais, máxime a germânica, de tantas influências, inclusive aquém-mar, em países periféricos, como o Brasil, de pouca tradição substancial de respeito e efetividade dos direitos fundamentais sociais:

... torna-se evidente que o apego exagerado de grande parte dos juízes brasileiros à teoria da Separação dos Poderes é resultado de uma atitude conservadora da doutrina constitucional tradicional, que ainda não adaptou as suas ‘lições’ às condições diferenciadas do moderno Estado Social e está devendo a necessária atualização e re-interpretação de velhos dogmas do constitucionalismo clássico.

Veja-se que o âmbito de atuação da função legislativa, onde se sabe ser mais amplo o espaço de conformação das relações sociais, traz consigo a necessidade de que se estabeleça a presunção de constitucionalidade juris tantum dos atos normativos emanados daquela vertente do poder.

Essa presunção se estabelece em favor do interesse público primário (e não em proveito do corpo parlamentar), mas também decorre do fato de que ditos atos normativos são o produto de um processo elaborativo, insculpido na Constituição, por intermédio do qual são submetidos, ao menos formalmente, ao gabarito constitucional das comissões parlamentares e do veto presidencial.

Entretanto, uma vez demonstrada a inconformidade constitucional, deve ser afastada essa presunção e combatido o ato legal viciado, pois que “uma vinculação estrita do órgão judicial aos fatos e prognoses legislativos fixados pelo legislador acabaria, em muitos casos, por nulificar o significado do controle de constitucionalidade”. [46]

Nesse sentido, registra Mendes que a Corte Constitucional Alemã “recusou o argumento formal quanto à sua incompetência para proceder à aferição dos fatos legislativos, observando que a Constituição confiou-lhe a guarda dos direitos fundamentais em face do legislador e que, portanto, se da interpretação desses direitos decorre limitação para o legislador, deve o Tribunal dispor de condições para exercer essa fiscalização”. [47]

Já no que concerne à atuação administrativa, vê-se que está, na maioria das situações, irremediavelmente subsumida aos estreitos legais. Seu âmbito de conformação é, por natureza, delimitado pela conformação já empreendida normativamente, e nela há de se conter.

Destarte, tanto menor será o risco de que o governante afronte a Constituição, quanto mais, em sede legal, forem detalhados os meios que deverá vinculativamente adotar na empreitada constitucional de promoção da efetividade dos direitos fundamentais sociais. Isso, por óbvio, na hipótese de o próprio ato legislativo já não padecer daquele vício, quando então a Administração apenas o fará concreto.

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Sobre o autor
Adriano Luís de Almeida Silva

Especialista e mestre em direito. Assessor Jurídico e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Adriano Luís Almeida. Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4633, 8 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46977. Acesso em: 23 dez. 2024.

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