É interminável a relação de assuntos que podem ser discutidos tendo por tema o Código de Trânsito Brasileiro. De forma especial, são de extremo interesse as questões relacionadas às autuações por infrações de trânsito, as chamadas "multas de trânsito": i) são o instrumento de maior impacto contra o desrespeito às leis; ii) geram a penalização pecuniária, iii) a suspensão e a cassação do direito de dirigir; iiii) são campo farto de discussões para os profissionais do Direito ao envolverem Princípios Constitucionais (Ampla Defesa e Contraditório), iiiii) questões de Direito Administrativo e Processual Civil (quais os órgãos legitimados a receberem, analisarem e julgarem recursos administrativos; quais os legitimados passivos para responderem em demandas judiciais de desconstituição de multas etc), entre outros.
O presente artigo pretende ressaltar a necessidade de uma definição pormenorizada, precisa, detalhada, circunstancial, quando da notificação do pretenso infrator para a autuação que se apresenta contra ele: as autuações dúbias (e suas notificações), sem uma indicação única e definida a respeito da infração teoricamente cometida é causa de nulidade da Notificação e, automaticamente, do Auto de Infração, por ofender de forma irreparável a Ampla Defesa e o Contraditório.
Em uma análise resumida do tema, podemos começar relacionando os tipos listados pelo Código de Trânsito Brasileiro do Art. 162 ao 255, ao estudo do tipo levado a efeito pela Ciência Penal - avançada no estudo da matéria porque o Direito Penal é, por excelência, tipológico. Podemos detectar, então, dentre as infrações definidas pelo legislador do CTB, aquelas cujo texto legal acabou por gerar uma tipificação com alternativas - o que se denomina na Classificação Estrutural dos Tipos de Tipo Misto ou Composto - ou uma tipificação com necessidade de qualificação - chamado no estudo do tipo de Tipo Aberto. Nos artigos que oferecem uma tipificação com alternativas, o chamado Tipo Misto, o legislador elencou em conjunto, duas, três, quatro formas diferentes de se incorrer na infração. Nos dizeres do mestre penalista Luiz Regis Prado, o Tipo Misto "é o tipo que envolve uma pluralidade de ações" [1]. Nos artigos que oferecem tipificação com necessidade de qualificação, o Tipo Aberto, o legislador criou uma regra amplíssima a fim de que o agente de trânsito, na prática de suas funções, pudesse subsumir determinada prática específica à norma legal proibitiva. Para Regis Prado, o Tipo Aberto "descreve parte da ação proibida, devendo ser completado pelo julgador" [2].
O problema está exatamente aí: na primeira hipótese, qual das ações foi cometida ou por quem, que justificasse a autuação? Na segunda hipótese, qual foi o ato precisamente praticado pelo autuado? A indicação da infração de forma individualizada, com a exposição de elementos complementares à simples menção do artigo de lei é essencial: enquanto no curso do processo penal o réu se defende dos fatos vinculados durante toda a instrução e não da tipificação a ele imposta, as notificações de infração de trânsito imputam ao notificado uma conduta expressa e estritamente relacionada à tipificação procedida pela autoridade de trânsito. Somente por aquilo que expressamente descrito na Notificação é que o Notificado poderá ser acusado - e somente daquilo poderá se defender.
Dentre as tipificações com alternativas - Tipo Misto, está o Art.167: "Deixar o condutor ou passageiro de usar o cinto de segurança, conforme previsto no Art.65". Uma autuação e a Notificação para esta infração devem indicar, necessariamente, quem na oportunidade estava sem o cinto de segurança - condutor ou passageiro. Caso contrário, a ampla defesa constitucional fica prejudicada e não há contraditório porque o autuado não sabe nem como realmente foi cometida a infração. Abre-se, por exemplo, espectro de análise muito largo para a autoridade de trânsito no eventual recurso administrativo. Se ocorrer um equívoco do agente de trânsito, imaginando estar autuando um passageiro que o veículo não transportava ou mesmo não tinha capacidade de transportar, não haverá como se dar a irresignação eficaz do recorrente, porque o órgão julgador sempre poderá dizer que autuação não se referia ao carona, mas ao condutor, e vice versa. Outros exemplos de autuação com alternativas: Arts.165, 174, 181 VIII (esse último muitíssimo frequente na cidade de Cachoeiro de Itapemirim e de análise interessante - "Estacionar o veículo no passeio ou sobre faixa destinada a pedestre(...), ao lado ou sobre canteiros centrais, divisores de pista de rolamento, marcas de canalização, gramados ou jardim público").
Quanto à tipificação com necessidade de qualificação - Tipo Aberto, há os bons exemplos dos Arts.168 e 195. O primeiro define como infração "Transportar criança em veículo automotor sem observância das normas de segurança especiais estabelecidas neste código". Qual norma foi ofendida? Qual foi a forma de transporte que gerou insegurança? Transporte de menor de 10 anos no banco dianteiro? Criança no banco de trás sem assento especial? Assento especial colocado no banco da frente? Como se pode oferecer defesa se não se sabe a conduta que o agente teria visto? Por outro lado, o que o agente considerou "transporte sem observância de normas de segurança" teria haver estritamente com as "normas de segurança especiais estabelecidas no código"? Como o autuado ou mesmo a autoridade de trânsito podem saber que a prática observada pelo agente e indicada como infração foi contrária a uma "norma especial" estabelecida no CTB? Portanto, o agente pode ter visto determinada forma de transporte que sequer estava elencada nas normas especiais de segurança estabelecida no código, o que, portanto, não caracterizaria a infração do Art. 168.
No Art.195 ("Desobedecer as ordens emanadas da autoridade competente de trânsito ou de seus agentes"), a pergunta se repete: que ordem, que comando, que sinal foi desobedecido? Como alguém pode se defender de algo que não sabe, não reconheceu, não percebeu ou sequer lhe foi sinalizado, se não há descrição mínima da ordem emanada do agente? Como se manifestar contra o ato administrativo - utilizando-se do direito ao contraditório - se o autuado sequer sabe o que teria sido (ou não) indicado a ele pelo agente ou autoridade naquela oportunidade (que pode ter ocorrido até 30 dias antes - Art. 281, Par.Único II)?
Quem milita o tema trânsito percebe a urgência do aprimoramento da lavratura dos Autos de Infração e da confecção das Notificações de Trânsito, sob a pena capital de o autuado continuar (pois isso já é prática corriqueira) a sofrer autuações e receber notificações nada esclarecedoras, falhas na tipificação e na circunstanciação dos fatos.
É claro que o autuado deve receber sua notificação com o máximo rigor fático, para que tenha elementos de defesa e conheça detalhadamente a acusação descrita pelo agente, principalmente no campo destinado às informações complementares. O agente autuante não deve furtar-se a assinalar integralmente os dados que caracterizaram o fato e que permitam a defesa do interessado [3]. E se as instâncias administrativas insistem em não enfrentar o tema, o Poder Judiciário deve estar pronto a exercer sua função, livrando o cidadão da aplicação de multas (e outras penalidades) baseadas em perigosas ausências de informação.
Notas
01. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Volume 1-Parte Geral. 3ª ed., São Paulo: RT, 2000, p.300.
02. Obra citada, p.301.
03. PINHEIRO, Geraldo de Faria Lemos e RIBEIRO, Dorival. Código de Trânsito Brasileiro Interpretado. 1ª ed., São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p.298.