3. Do princípio da insignificância e lesões leves
3.1. Fundamento e finalidade
O processo legislativo de tipificação é realizado de maneira abstrata, alcançando também o que Engisch chama de "casos anormais". O Direito Penal Material é, assim, genérico e abstrato, o que alcança algumas condutas que apresentam resultados não lesivos (materialmente atípicos) ou irrelevantes socialmente (desnecessidade de aplicação da sanção).
O Direito Penal não outorga proteção absoluta aos bens jurídicos; protege apenas os bens jurídicos fundamentais e, mesmo assim, não os protege de qualquer ataque, mas apenas dos denominados intoleráveis.
O Princípio da Insignificância surge para evitar situações dessa espécie: atua como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, com o significado sistemático e político-criminal de expressão da regra constitucional do ''nullum crimen sine lege'', que não é a missão do tipo penal e que nada mais faz do que revelar a natureza subsidiária e fragmentária do Direito Penal.
O princípio da insignificância teve sua origem em Roma, ''minimis non curat pretor'', que proibia o julgador (pretor) de se ater a situações irrelevantes, insignificantes.
O princípio da insignificância está diretamente ligado ao princípio da intervenção mínima, impondo ao legislador e ao intérprete, por sua compatibilidade com outros princípios jurídico-penais dotados de positividade e com os pressupostos políticos do Estado Democrático de Direito, a utilização do Direito Penal apenas quando não bastarem outros procedimentos mais suaves para preservar e reinstalar a ordem jurídica.
É sobre o princípio da intervenção mínima que se legitima o juízo de necessidade de tutela penal de determinado bem jurídico. Esse juízo de necessidade pauta-se primeiramente da dignidade penal e esta na relevância social do bem jurídico, verificando dentro deste princípio outros três de grande importância: o princípio da insignificância: responsável pela elaboração da relevância da lesão causada ao bem ou a sociedade; o princípio da proporcionalidade: o que irá balancear o valor do bem violado versus o valor do bem sentenciado; e o princípio da irrelevância penal do fato: que atuará tanto na configuração do injusto penal quanto da culpabilidade para afastar a aplicação da sanção.
Inevitavelmente o princípio da insignificância comporta a idéia de danosidade social atuando como descriminalizante.
O Direito Penal é um remédio sancionador extremo que só deve ser ministrado quando outros se revelem insuficientes. 15
Outro fundamento do princípio da insignificância reside na idéia de proporcionalidade que a pena deve guardar em relação à gravidade do crime.
O legislador não pode prever em que grau e em que intensidade deve tais ações merecer, in concreto, castigo. Em que intensidade deve a lesão assumir relevância penal efetiva?
A redação do tipo legal pretende só incluir prejuízos graves à ordem jurídica e social, porém, não pode impedir também que entrem em seu âmbito casos mais leves, de ínfima significação social. O que é in abstrato penalmente relevante pode não o ser verdadeiramente, isto é, pode não assumir, in concreto, suficiente dignidade e significação jurídico-penal. 16
O princípio da insignificância por comportar a idéia de juízo de reprovação social,o que medirá a relevância social do resultado, é responsável pela análise, in concreto, de se o bem jurídico foi lesado ou exposto a perigo de forma realmente significante para o ordenamento jurídico, isso por que está relacionado com a própria tipicidade material. A insignificância está diretamente vinculada com a tipicidade. Portanto, a consideração de uma conduta como penalmente insignificante leva à obrigatória consideração de atipicidade do ato.
Assim, como ensina saudoso Assis Toledo:
O comportamento humano, para ser típico, não só deve ajustar-se formalmente a um tipo legal de delito, mas também ser materialmente lesivo a bem jurídico alheio ou ética e socialmente reprovável. 17
O princípio da insignificância opera no sistema penal como mecanismo de legitimação do Direito Penal. Realiza um juízo de desvalor do resultado para concluir a existência de uma tipicidade material.
São requisitos e circunstâncias do princípio da insignificância: a reprovabilidade (que forma o princípio da responsabilidade pessoal juntamente com a culpabilidade), a menor relevância social do bem jurídico e a habitualidade de determinadas condutas.
A violação de um princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos, uma verdadeira insurgência contra todo o sistema e uma subversão de seus valores fundamentais.(MELLO, 2001, p.230).
A violação do princípio da insignificância acarreta uma afronta aos demais princípios constitucionais, afetando a dignidade penal do bem jurídico, do autor da conduta, bem como de toda a sociedade.
O jurista Luiz Flávio Gomes propõe ao legislador, de lege ferenda, como sendo ideal a criação de uma cláusula geral no âmbito do Direito Penal do princípio da insignificância, excluindo a punibilidade de determinados fatos quando presente o desvalor do resultado, da conduta e da culpabilidade. 18
Concordamos com o jurista quando sustenta que há juízes que aplicam o princípio e outros que não o aplicam, há juízes que levam em consideração só o desvalor do resultado (atipicidade) e outros que exigem o desvalor da ação e da culpabilidade; isso tudo acaba por geral, não uma insegurança jurídica (mesmo porque o princípio da insignificância é politico-criminalmente exigível por todo o ordenamento jurídico penal), mas uma desigualdade em julgamentos de mesmo conteúdo e essência, causando um aparente poder discricionário do magistrado.
No exato momento em que a doutrina evoluiu de um conceito formal a outro material de crime, objetivando de significado lesivo a conduta humana necessária a fazer incidir a pena criminal pela ofensa concreta a um determinado bem jurídico, fez nascer a idéia da indispensabilidade da gravidade do resultado concretamente obtido ou que se pretendia alcançar.
A noção de tipicidade, como já apresentada, engloba um valor lesivo concreto e relevante para a ordem social.
O princípio da insignificância possibilita a delimitação de critérios razoáveis de delimitação dos resultados que devam ser considerados insignificantes sob a ótica de um Direito Penal fragmentário e subsidiário, fugindo do empirismo e da exacerbação da análise do caso por caso.
O desvalor do evento deve ser considerado de acordo com a importância dos vários bens jurídicos protegidos penalmente e da intensidade da ofensa ocorrida. O desvalor da ação, por sua vez, deve ser analisado segundo o grau de probabilidade da conduta para a realização do resultado. A ocorrência de ambos os critérios, torna a conduta do agente evidentemente irrelevante para os fins penais, não comportando político-criminalmente a necessidade de imposição da pena, esta se torna ilegítima.(grifo nosso) 19.
Apontam alguns estudiosos do Direito Penal uma certa dificuldade de averiguação da intensidade em delitos não materiais, o que não ocorre, uma vez que para os delitos formais poderá haver o desvalor da ação, não somente do resultado.
O princípio da insignificância nada mais é do que importante construção dogmática, com base em conclusões de ordem político-criminal, que procura solucionar situações de injustiça provenientes da falta de relação entre a conduta reprovada e da pena aplicável. Compete ao aplicador do direito julgar o conteúdo da insignificância, mas sempre orientado pela norma penal.
Os autores de pequenos furtos em supermercados e lojas de departamentos, bem como pessoas que se envolvem em brigas dispersas resultando em lesões leves quando envolvidos em delitos como a rixa, são pessoas que normalmente não cometem outros crimes, inexistindo razão para submetê-los à experiência traumatizante do sistema penal.(grifo nosso) 20.
Como já mencionado anteriormente, para que se possa fundamentar o ilícito devem estar presentes uma ação e um resultado socialmente relevantes, o desvalor de apenas um deles já descaracteriza o ilícito, sendo impossível a formação do Injusto Penal e, da mesma forma, a aplicação da sanção pela falta de possibilidade de atribuição da conduta ou do resultado ao agente, podendo incidir tanto o princípio da insignificância quanto o princípio da irrelevância penal do fato.
3.2. Teorias a respeito do Princípio da Insignificância:
São três as Teorias que procurar discutir e fundamentar o princípio da insignificância.
A primeira teoria trabalha com a idéia de que a insignificância reside na punibilidade do resultado, descartando não a conduta que, para esta teoria, se apresenta perfeitamente típica, mas sim a possibilidade de se atribuir ou não uma punição ao agente. Esta primeira teoria falha no momento em que descarta a idéia de se ter um valor muito além do resultado insignificante, ou seja, o desvalor estará na conduta ao passo que o autor não causou um dano relevante socialmente e, assim, não atingiu a tipicidade material do Injusto Penal! Nesta teoria o tipo está sendo tratado como meramente formal.
Uma segunda teoria e de certa forma correta, é a formulada por Claus Roxin, na qual diz que em se tratando de insignificância, esta será observada no plano da culpabilidade e da reprovabilidade do agente, verificando a ilicitude também a partir do momento em que analisa a contrariedade ao ordenamento jurídico como um todo. Para a fixação do delito deve-se levar em conta o injusto praticado pelo agente, um juízo de responsabilidade associado a um juízo de prevenção (ou seja uma verdadeira observação do socialmente tolerável). Para esta teoria, o princípio da insignificância age como forma de despenalizante, uma vez que não há a possibilidade de aplicação de uma pena por não se fazer esta necessária e legítima. Esta teoria não está ''incorreta'' mas incompleta. Na medida em que se está atribuindo uma conduta ao agente que não possui um resultado relevante se está falando da falta de uma conduta realmente típica que cumpra sua missão de proteção da norma (para o Funcionalismo) e, se se falar na falta de uma conduta então se está dizendo que esta não pode ser incriminada! Logo, o princípio da insignificância cumpre seu papel de descriminalizante, isso porque a tipicidade material isenta de relevância a conduta do agente, passando esta à não ser mais aquela ''conduta típica'' que pretende proteger uma norma. Esta segunda teoria atuaria mais como despenalizante, frente ao princípio da irrelevância penal do fato.
A terceira teoria assenta-se em que o princípio da insignificância exclui a própria tipicidade, agindo com descriminalizante, sem sombra de dúvidas a mais adequada. O Injusto Penal, (formado pela tipicidade + a ilicitude) é portador da danosidade social, pois, na medida em que protege uma norma maculada por um juízo de conteúdo axiológico, faz referência automaticamente ao que é relevante para a sociedade. Assim, a aplicação do princípio da insignificância exclui a tipicidade da conduta do agente frente à insuficiência de lesão ou exposição à perigo do em jurídico tutelado. A lesão, neste caso, dentro da configuração do Injusto Penal não representa uma danosidade social, a lesão não seria significante, excluindo-se a tipicidade.
Quando se trata da exclusão da tipicidade por fundamentação no princípio da insignificância, que está amarrado ao princípio da proporcionalidade exclusivamente, está se falando de uma aplicação político-criminal, visando resultados de prevenção com uma perspectiva teleológica.
A prática de uma lesão leve, inclusive as que ocorrem em acidentes de trânsito, pode excluir a tipicidade da conduta, cabe agora descrever o que seria uma lesão corporal considerada leve, e é aqui que residi o problema.
Se a danosidade social está inserida tanto no Injusto Penal, por um tipo material que comporta como elemento de caráter pessoal o dolo e a culpa stricto sensu, bem como na culpabilidade para que se possa realizar a reprovação pessoal necessária (configuração do princípio da responsabilidade pessoal), chega-se a pensar na possibilidade de uma dubialidade desse elemento pessoal, uma vez que o dolo e a culpa strictu sensu são de grande importância para a fundamentação da culpabilidade.
3.3. Críticas ao Princípio da Insignificância:
Discordando de qualquer crítica que se possa fazer ao Princípio da Insignificância, é prudente que sejam as mesmas apontadas para que o leitor possa verificar que são realmente precipitadas.
A primeira crítica é que o princípio da insignificância feriria a Segurança Jurídica, o que não condiz com a realidade, uma vez que o sistema penal está inserido em um sistema social, por isso é um sistema aberto e de conteúdo axiológico. Mesmo assim, é inteiramente orientado pelo princípio da legalidade com relação à normativização, o que impossibilita a arbitrariedade do magistrado, que deve sempre estar atentando para o tipo protetor de uma norma valorada (tipicidade material). Ademais, o princípio da insignificância atua com precisão no âmbito da aplicação do Direito penal pela política criminal.
Outra crítica que se faz é de que no Direito Penal brasileiro não se encontra qualquer edificação desse princípio na Legislação. Esta controvérsia é facilmente solucionada, pois trata-se de princípio e possui sua edificação não em mera Lei Ordinária, mas no próprio Estado de Direito que preze por um mínimo de dignidade. Está na própria ordem político-criminal: conduta reprovável versus pena aplicável. Encontra-se no artigo 5°, inciso XXXIX e § 2°, da Constituição Federal, o emprego da analogia in bonam partem no Direito Penal decorre da adoção de direito não expresso pela Carta, mas recomendável através de seu sistema e princípios adotados.
É possível na legislação brasileira, a verificação de alguns dispositivos que claramente orientam a invocação do princípio da insignificância, como exemplo, o furto privilegiado do artigo 155, § 2°, extensão aos crimes previstos no Capítulo V, artigo 170, 171,§ 1°, artigo 180, § 3°, in fine, etc., todos do Código Penal. Mesmo o artigo 59, do CP, permite a verificação da irrelevância penal do fato.
O princípio da insignificância opera juntamente com o princípio da proporcionalidade, como limite tático da norma legal, opera na contenção dos excessos.
Para se precisar a global insignificância da conduta ou a irrelevância penal do fato, leva-se em conta: o desvalor da ação, o desvalor do resultado, o desvalor do grau de lesividade e ofensividade ao bem jurídico protegido pelo tipo penal, antecipada medição da pena (razoável e proporcional), necessidade de imposição da pena e benefícios sociais (para a sociedade, autor do delito e vítima).
3.4. Das lesões leves
Lesão significa prejudicar, ferir, ofender fisicamente, ofender o crédito ou reputação de, violar o Direito de alguém. Do ponto de vista Médico - Legal, lesão é toda alteração anatômica ou funcional ocasionada por agente traumatizantes externos ou internos.
O Código Penal brasileiro não define o que seja lesão. Depois da vida, o Direito deve assegurar a integridade do corpo no seu aspecto anatômico e funcional, determinando a punição das ações que perturbem a normalidade da estrutura física e /ou funcional, mesmo psíquica da pessoa, considerada como entidade operante no âmbito da vida social e nas relações interpessoais. 21
O que realmente interessa é tentar delinear o que seriam lesões corporais consideradas leves, pois estas estão inseridas dentro da esfera dos delitos de menor potencial ofensivo, regulados pela Lei dos Juizados Especiais, n. 9.099/95. Se tais lesões são leves a ponto de serem consideradas de menor potencial ofensivo, dependendo da intensidade e da quantidade da lesão é bem provável que sejam declaradas insignificantes diante da irrelevância do bem jurídico penalmente tutelado.
O artigo 129, caput, do Código Penal traz a lesão corporal considerada leve: "Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem _ pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano". Ainda se pode observar no mesmo artigo as causas de diminuição de pena: § 4° - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço; quanto à substituição da pena no § 5° - O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção pela de multa: I - se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior; II - se as lesões são recíprocas; ainda, § 6° - Se a lesão é culposa: pena de detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano.
Nota-se que quanto às lesões leves e culposas incide diretamente a Lei n. 9.099/95, não havendo necessidade de se aplicar o parágrafo quinto, mesmo por que, se não houvesse este último parágrafo os delitos de lesões culposas ou leves estariam automaticamente sujeitos à Lei 9.714/98, ou seja, às determinações do artigo 44, do Código Penal, da mesma forma que qualquer outro delito.
O conceito de lesão corporal como crime autônomo só foi corretamente determinado após os Códigos Austríacos (1803) e Francês (1810), apesar das lesões terem acompanhado o homem desde sua existência e, ter existido alguma legislação como o Código de Hammurabi e da Babilônia que faziam menções a tais delitos.
Há uma controvérsia e até mesmo resistência entre alguns pesquisadores em conceituar as lesões como corporais; entendem melhor conceituação, como faz o Código Italiano, "lesões pessoais". Como o médico-legista, João Bosco Penna, salienta que o ser humano vivo, objeto material de tal crime, é a reunião da parte somática à parte fisiológica, inclusive a psíquica. Dizendo-se lesão corporal dá-se a impressão que só os danos corporais, anatômicos, estariam sendo tutelados pela lei penal.
Em se tratando de lesões pessoais, os peritos são ou devem ser médicos, de preferência legistas, a quem cabe o diagnóstico, classificação, estabelecimento do nexo causal, verificar se as lesões são vitais ou pós-mortais, estabelecer a gravidade das mesmas, fazendo seus enquadramentos no texto legal. O perito médico-legista trabalha para servir à Justiça. (PENNA, 1996, p.104).
Discordando de tal posicionamento, a legislação penal realmente preferiu restringir as lesões em corporais, para uma análise da perspectiva anatômica; é apenas pelas lesões que serão apenados os autores nos delitos na esfera penal, com inteiro respeito ao princípio da subsidiariedade e fragmentariedade penal. Isso, entretanto, de nada obsta que os danos morais, psíquicos e pessoais, da esfera mais íntima do ser humano, não sejam pleiteados na esfera cível, com restituição e indenização à vítima de lesões de grandes proporções.
O crime de lesão corporal é crime material admitindo a tentativa; entretanto, é preciso a análise da situação em questão para saber medir a que grau seria esta tentativa, como por exemplo, se o agente, em meio a uma briga, atira uma pedra na vítima que desvia, aqui não se pode penalizar o autor mesmo que atribuída a ele a conduta, pois falta claramente o resultado danoso. Por outro lado, há situações como a do agente que, com dolo, pretende atirar ácido sulfúrico no rosto de seu inimigo, que, desviando-se, sai ileso; mesmo com a falta do resultado, neste caso, o autor deve ser penalizado pela tentativa.
O crime de lesão corporal acarreta em dolo de dano e não em dolo de perigo. Ocorre que, em algumas circunstâncias, como nos acidentes de trânsito, as lesões corporais serão resultados de um crime de perigo, justamente pela falta deste dolo de dano. Outras distinções relevantes são com relação ao crime de ameaça real, cujo intuito é apenas intimidar ou perturbar a tranqüilidade pessoal do sujeito passivo, e, com relação às vias de fato, que se caracterizam por violência material cometida contra outrem sem dano corporal e sem animus vulnerandi.
O consentimento do ofendido está relacionado ao risco permitido e ao princípio da confiança, podendo este possibilitar a isenção de pena ao autor e até flexibilizá-la reduzido-a, desde que o autor seja responsabilizado pelos processos causais que criou e podia controlar, mesmo tendo o sujeito passivo ''consentido''.
3.4.1. Da classificação das lesões corporais
As lesões corporais podem ser classificadas quanto: as causas - são as energias vulneráveis, que podem ser agrupadas em energias de ordem física, de ordem química, de ordem biológica, de ordem psíquica, etc.; à sede - sede é a região do corpo humano onde incide o trauma, podendo ser comprometidas estruturas de hierarquia funcional diferentes; daí conseqüências diversas surgirão quanto à gravidade atual ou futura do dano; à quantidade e qualidade do dano: a legislação penal distingue as violências contra as pessoas do ponto de vista punitivo, segundo a gravidade que alcançam; surge assim, essa outra visão das lesões, em mortais e não mortais e estas em leves, graves e gravíssimas. (PENNA, 1996, p.117).
As lesões leves estão descritas no caput do artigo 129 do Código Penal, não trazem tais lesões às conseqüências previstas nos parágrafos do mesmo artigo.
O Código Penal não traz como sendo lesão a simples dor, que, como sintoma subjetivo é de difícil apreciação e permite simulação. É um erro tal fato, uma vez que a dor pode ser resultado de uma lesão leve que não tenha se exteriorizado. A dor não se diagnostica, presume-se. Sabe-se que, segundo a legislação penal, a dor para caracterizar lesão é irrelevante. No entanto, sabe-se que a dor, imediata ou mediata, pode determinar incapacidade funcional para o trabalho, bem como transtornos ou dificuldades digestivas, respiratórias, cardiológicas, sexuais, etc. Em relação ao psiquismo, a dor perturba a atenção, memória, concentração, percepção, volição e elaboração intelectual, quebrando a resistência à prática de ações contrárias à lei, à moral, à região, à etiqueta e aos próprios interesses da vítima, determinando atitudes permissivas bem como atitudes indiferentes quanto às conseqüências dos próprios atos.
Sabe-se que muitos espancamentos acontecem sem deixar qualquer marca visível, como as que ocorrem quando realizadas com laranjas envoltos a uma toalha, como também o espancamento com madeira das solas dos pés.
O conceito adotado pelo Código Penal de lesão corporal é lato sensu: lesão corporal é todo e qualquer dano ocasionado à normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer do ponto de vista fisiológico ou mental.
A atribuição das lesões teve sua esfera modificada uma vez que as lesões podem ser resultados de crimes de perigo, ou se simples acidente sem mesmo se cogitar em dolo, como é o caso de lesões derivantes de acidentes de trânsito.
O sentido lato sensu que a legislação penal imprimiu no conceito de lesão possibilita a conclusão de que a ofensa à integridade corporal é qualquer dano de importância à normalidade anatômica dos tecidos, ou mesmo dos órgãos, e, como ofensa à saúde as alterações desfavoráveis ao normal funcionamento do organismo, isto é, as alterações fisiológicas quaisquer que sejam, inclusive as alterações das funções psíquicas.
O conceito de dano à saúde tanto compreende a saúde-corpo como a mental também. Se uma pessoa, à custa de ameaça provoca em outra um choque nervoso, convulsões ou outras reações patológicas, pratica lesão corporal.(TJSC - RT 478/374).
Resulta a lesão corporal sempre de uma violência exercida sobre outrem, violência esta que pode ser de qualquer ordem, qualquer que seja o meio empregado para produzi-la.
É necessário que o dano ao corpo ou à saúde sejam significantes. A lesão não deve ser tão leve que fique abaixo daquele mínimo que a faça ponderável para o Direito Penal. Não cabe, por exemplo, punir como lesão corporal, uma picada de alfinete, um beliscão, um resfriado transmitido, uma transitória hipertensão arterial sistêmica emocional, o arrancamento de alguns fios de cabelo, etc.
O eritema não constitui lesão corporal, pois se trata de simples rubor na pele, devido ao maior fluxo de sangue, não comprometendo a normalidade funcional do corpo humano, quer do ponto de vista anatômico, quer fisiológico ou mental (JUTACRIM 81/461 e 76/265).
A lesão que não se expressa como comprometedora está adstrita ao crime de vias de fato.
As autolesões não são puníveis, pois é inconstitucional sua punição. Dentro deste contexto, poderia dizer que o consumo de substâncias entorpecentes não pode ser punido, pois se trata de autolesão. De correta apreciação tal idéia, desde que o bem jurídico penal incolumidade pública não esteja sendo afetado; poderia resultar na descriminalização do consumo de substâncias entorpecentes e análogas, hoje tipificadas como crime no artigo 16, da Lei nº 6.368/76 (Lei de Tóxicos).
A autolesão praticada por gestante para ocasionar o aborto não é punida, entretanto será penalizada como crime de aborto, pois o bem jurídico protegido é a vida de terceira pessoa.
O crime de lesões corporais é um crime instantâneo, consumando-se no momento em que se produz o dano resultante da ação ou missão do agente.
É bastante difíceis a conceituação das lesões e sua classificação, apesar de parecer fácil não o é. Para que uma lesão seja considerada de natureza grave deve incapacitar a vítima para as ocupações habituais por mais de trinta dias. Ora, que tipo de ocupações? Andar, trabalhar, comer, falar, etc? Entende-se que o legislador pretendeu ser o mais amplo possível, tentando abarcar todas as habitualidades da pessoa. Um exemplo claro está em um agente que desferindo um soco no rosto da vítima com um soco inglês causa-lhe ferimentos na boca, impossibilitando que esta possa comer normalmente, bem como falar, por mais de trinta dias, devidos as cortes na mucosa, sem que os dentes tenham sido quebrados (dai tratar-se-ia de lesão permanente); mas, se a vítima não ficar incapacitada por trinta dias, e sim por vinte e oito? Desconfiguraria a lesão como sendo grave e passaria a ser leve?
3.4.2. Lesões Leves: crime de menor potencial ofensivo
É fato que as lesões leves são regulamentadas pela Lei dos Juizados Especiais, Lei n. 9.099/95, por se tratar de crime de menor potencial ofensivo (artigo 98, inciso I, da Constituição Federal de 1988).
O Ministério Público, após a apresentação da denúncia pode apresentar proposta de suspensão condicional do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não tenha sido condenado ou esteja sendo processado por outro crime; bem como pode apresentar a proposta de transação penal ao termo circunstanciado sem a instauração do processo. Em ambos os casos não há sentença (artigo 162, CPC), trata-se de uma decisão interlocutória.
No Direito Penal, para que a conduta seja significante e ou possa incidir uma pena sobre a mesma, é necessário uma ofensa concreta a um determinado bem jurídico, é indispensável a gravidade do resultado concretamente obtido, ou que se pretendia alcançar.
O princípio da insignificância é um meio qualificador dos valores da estrutura típica do Direito Penal. Assim, a lesão corporal, por sua vez, ou provoca à vítima incapacidade para as suas ocupações habituais por uma ou duas semanas, ou que tenha perturbado temporariamente o funcionamento de membro, órgão, sentido, função _ e que, portanto jamais poderia ser reputada insignificante_ pode dispor de um modelo processual mais célere, condicionando-se, mesmo, a iniciativa da ação penal à vítima, ou deferindo o perdão judicial nos casos em que houver pronta e justa reparação do dano, e poderá ser considerada como crime de bagatela, ou mesmo de menor potencial ofensivo.
Essas lesões não são insignificantes, mas apenas estão sujeitas a um procedimento mais efetivo, com maiores expressões de resultados. A Lei n. 9.099/95 exerce mais que um novo procedimento, mas uma forma de reestruturar a política criminal com relação ao aspecto preventivo especial. Seus resultados são mais benéficos tanto para o autor quanto para a vítima. A transação penal ou a suspensão condicional do processo na esfera penal, para crimes considerados de menor potencial ofensivo em nada obsta que a vítima, querendo e achando de Direito, pleiteie um ressarcimento ou uma indenização perante a esfera cível (artigos 71 a 76, da Lei supramencionada), o que lhe será bem mais gratificante; terá a possibilidade de ver, ao menos em parte, seu conflito solucionado com a reparação ou indenização do ônus que veio a sofrer.