Estado de Coisas Inconstitucional e a efetividade dos direitos fundamentais

Estudo comparado dos precedentes da corte constitucional da Colômbia e da ADPF 347 apreciada pelo STF (caso dos presídios brasileiros)

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04/03/2016 às 17:25
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O Estado de Coisas Inconstitucional - ECI é uma teoria constitucional desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia que busca tornar efetivos os direitos fundamentais.

SUMÁRIO: I - Introdução: Neoconstitucionalismo e o Estado de Direito Constitucional. II - O Estado de Coisas Inconstitucional. III - A proteção dos direitos fundamentais no Brasil e a utilização da técnica do Estado de Coisas Inconstitucional no Supremo Tribunal Federal (ADPF 347). IV – Conclusões.

 

I. Introdução: Neoconstitucionalismo e o Estado de Direito Constitucional.

 

O modelo de Estado de Direito do Século XX colocou as Constituições em uma posição de notável centralidade e importância social, na medida em que o texto constitucional não somente criava uma nova ordem jurídica, mas veiculava valores sociais consagrados pela vontade popular quando da instalação das assembleias nacionais constituintes, detentoras do poder político de criação ou instaurador da nova ordem (aquele que tudo pode com inicialidade[1]), responsáveis pelo novo desenho institucional do Estado.

 

A virada do Estado de Direito para o Estado de Direito Constitucional realizou-se a partir da segunda grande guerra mundial, quando a Constituição dos Estados passou a ser compreendida como norma jurídica de cumprimento obrigatório, ganhando força normativa concretizadora apta a transformar o mundo dos fatos, transmudando-se de mero diploma político de elevada abstração e conteúdo principiológico para um documento transformador da realidade social. São exemplos dessa mudança de paradigma constitucional as Constituições da Alemanha (Carta de Bonn de 1949), da Itália (Carta de 1956), de Portugal (1976), da Espanha (1978)[2].

 

A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.

Mas, - esse aspecto afigura-se decisivo – a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas condições como elemento autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.

 

O neoconstitucionalismo como modelo dogmático do constitucionalismo moderno ou pós-positivista representa bem esse momento de se empregar efetividade às normas constitucionais.

 

Foi na Europa continental que o denominado neoconstitucionalismo ou constitucionalismo contemporâneo[4] ganhou força, trazendo consigo um maior protagonismo do poder judiciário quando as cartas constitucionais passaram a atribuir a esse poder a função da aferição da validade constitucional dos atos emitidos pelos poderes públicos. Os juízes estariam autorizados a realizar o controle de constitucionalidade das normas editadas pelos poderes constituídos e até mesmo das políticas públicas por eles executadas, passando a influenciar diretamente na construção da pauta política do Estado que ordinariamente caberia aos poderes legislativo e executivo, legitimados pelo processo democrático popular.

 

A influência do “modo de vida constitucional” se realizou de forma diversa entre os países que adotaram o sistema do civil law e aqueles do common law, e até mesmo entre aqueles que adotam o mesmo sistema jurídico. Aqueles adeptos do civil law atribuíram a função de guardião da Constituição ao Poder Judiciário, com a criação de um órgão especializado no controle de constitucionalidade (cortes constitucionais), cujas decisões preponderavam sobre aquelas emitidas pelos demais órgãos jurisdicionais. Os países do civil law, que inclui a Europa continental, onde se deu seu nascedouro, e os países de origem latina, herdaram do modelo romano-germânico a prevalência do direito escrito e da superioridade da Constituição com o protagonismo do controle de constitucionalidade no Poder Judiciário. Já os países do common law, que inclui em especial a Inglaterra e as nações por esta colonizadas, o sistema jurídico não estava baseado em leis escritas, mas na tradição e nos costumes que remontavam a tempos imemoriais. Enquanto no civil law as leis criavam os costumes, no common law os costumes sociais davam vida às leis.

 

A constituição inglesa não foi criada de uma só vez, ela se fez - não foi feita por um ato só, pois fora criada por obra dos juízes. O parlamento inglês limitou-se a receber e sistematizar a elaboração jurisprudencial das cortes e quando participou do processo constitucional atuou como corte jurisdicional e não na sua função legislativa[5]. O fato da Inglaterra não possuir uma Constituição em texto único, como tradicionalmente ocorre com os demais países, não a faz distanciar-se da tradição ocidental da constitucionalização dos direitos. A Inglaterra é um Estado de Direito Constitucional (Rule of Law), mas à sua maneira.

 

Como bem pondera SANTORO[6]:

 

A ideia, difusa na Europa continental, de que a Grã-Bretanha não tivesse uma constituição e, em particular, que não existissem direitos constitucionalmente garantidos é, portanto, absurda. Se se comparam as constituições continentais com as disposições jurídicas inglesas e, em primeiro lugar, com as de origem jurisprudencial, percebe-se que “a constituição inglesa”, com o seu núcleo fundamental de direitos de liberdade, existe, mas não é sancionada por um único documento. Ela não contém uma declaração dos direitos, como é típico das constituições dos outros países. A tutela das liberdades pessoais encontra o próprio fundamento nas decisões jurisprudenciais: o direito constitucional não é outra coisa senão uma generalização dessas decisões.

 

O que é interessante observar é que o fato do Estado inglês não possuir uma Constituição em um texto único não tornou a sociedade mais vulnerável quanto à proteção dos direitos fundamentais. Como os direitos fundamentais são declarados com base nos costumes e nos precedentes jurisprudenciais, a sua concretização se estabelece de acordo com as situações particulares da vida. O problema da efetividade das normas constitucionais existente nos demais países da Europa continental e na América Latina em grande parte não está presente no modelo constitucional inglês.

 

Em outras palavras, a produção judicial das disposições concernentes aos direitos individuais tem uma indubitável vantagem sobre aquela legislativa e sobre aquelas declarações dos direitos: tal produção pelo seu próprio modo de vir à luz conecta de maneira inseparável os instrumentos de tutela de um direito e o direito a ser tutelado. Representa, portanto, uma grande vantagem do sistema constitucional inglês a circunstância de que os atos legislativos em matéria de direitos. Como os Habeas Corpus Acts, não fizeram outra coisa a não ser organizar as garantias criadas pelas Cortes. Essas leis constitucionais, afirma Dicey, mesmo sem proclamar nenhum princípio e sem definir nenhum direito, “valem pelos seus efeitos práticos mais do que cem artigos constitucionais que garantem a liberdade individual”.

Os direitos individuais previstos pelas constituições da Europa continental são meras “deduções” extraídas de princípios constitucionais. A previsão constitucional dos direitos não garante, de modo algum, os cidadãos contra a supressão ou suspensão destes; aliás a favorece, como demonstra o fato de que, nos países dotados de uma declaração dos direitos, a validade desta declaração é muitas vezes suspensa. O fato de que os direitos sejam previstos por um texto normativo especial, que sejam “alguma coisa de estranho e de independente do corpo ordinário do direito”, torna-os como alguma coisa que pode facilmente ser posta de lado sem subverter a normal práxis jurídica[7].

 

Somente a partir do Constitutional Reform Act de 2005 foi criada uma corte constitucional na Inglaterra separada do Parlamento (Westminster), modificando uma cultura constitucional talhada secularmente na soberania parlamentar na matéria constitucional, por imposição da incorporação da Declaração Europeia de Direitos do Homem de 1950 pelo Human Rights Act de 1998[8]. A mudança foi um passo necessário para que a Inglaterra aceitasse a jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos, órgão da União Europeia.

 

O problema da ausência de efetividade dos direitos fundamentais, que é uma realidade nas nações com Constituições rígidas e com Poder Judiciário independente, não se apresentava como algo relevante para a sociedade inglesa, mesmo com uma Constituição flexível e uma corte constitucional vinculada ao Parlamento. Para o cidadão inglês (englishman) o cumprimento das normas e o respeito às garantias individuais e coletivas é princípio básico de convivência social. O common law, ao induzir a produção de normas jurídicas como derivação dos costumes sociais, facilita o cumprimento espontâneo dos direitos pelos cidadãos.

 

Os Estados Unidos (Nova Inglaterra) herdaram do modelo inglês o common law, com a adoção da técnica da força normativa dos precedentes judiciais (stare decisis), com o traço diferencial de que no país há uma Constituição escrita programática de base principiológica.

 

O contraponto realizado entre o modelo romano-germânico do civil law e o common law anglo-americano é importante na medida que permite verificar como a realidade do constitucionalismo se desenvolveu de forma especial em cada nação, com fortes componentes históricos e consuetudinários.

 

Podemos assim traçar as principais características do neoconstitucionalismo ocidental: o reconhecimento da supremacia constitucional em relação às demais espécies normativas; a atribuição de força normativa à Constituição, não se apresentando o texto constitucional como mera carta programática ou de recomendação ao legislador na sua atividade legiferante e ao administrador na realização das políticas públicas; o controle de constitucionalidade dos atos dos poderes executivo e legislativo, inclusive em relação aos atos discricionários; e a criação de cortes constitucionais para o julgamento das ações de controle abstrato de constitucionalidade.

 

No Brasil, a partir da Constituição de 1988 foram criadas várias técnicas de controle de constitucionalidade com o objetivo de viabilizar processualmente os valores constitucionais, permitindo que a carta magna exerça de forma efetiva o seu protagonismo.

 

Esses instrumentos processuais garantidores dos direitos fundamentais são os remédios constitucionais do habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção e ação popular. Cada espécie processual destinada a salvaguardar situações jurídicas específicas e destinadas à concretização dos direitos e garantias fundamentais.

 

Embora o controle difuso de constitucionalidade seja obra da Constituição de 1891, e o concentrado da Constituição de 1946 (Emenda Consitucional nº 16/65 – art. 101, I), foi com a Constituição de 1988 que o controle de constitucionalidade dos atos dos poderes públicos ampliou seu âmbito de atuação com a previsão da ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, a), a ação declaratória de constitucionalidade (arts. 102, I, a, e 103, § 4º), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º), a arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º) e a ação direta interventiva (art. 36, III).

 

Além desses instrumentos processuais que garantem o princípio da supremacia da Constituição, foram desenvolvidas várias técnicas decisórias que têm contribuído para a criação de uma jurisdição constitucional democrática e participativa,digna de uma sociedade aberta dos intérpretes da constituição[9], como a declaração de inconstitucionalidade com ou sem redução de texto, a interpretação conforme a constituição, a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto[10], a modulação dos efeitos temporais das decisões[11][12] e a inconstitucionalidade consequencial ou por arrastamento[13].

 

A ampliação dos instrumentos de efetivação dos direitos constitucionais foi construída por obra de forte influência doutrinária, a qual não admitia a presença de um texto normativo de incrível carga axiológica, mas sem efetividade social (mera folha de papel[14]).

 

Qual a utilidade prática da existência de um texto constitucional moderno e alinhado à proteção dos direitos humanos, se o seu conteúdo reflete uma retórica política vazia e escrito sem qualquer perspectiva de concretização social? Isso tem ocorrido nos países de desenvolvimento social tardio, como é o caso do Brasil.

 

A expansão da jurisdição constitucional vem com esse objetivo de concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição, alterando a realidade social através da aplicação de valores universais preservados durante séculos pela cultura ocidental.

 

Aliado aos métodos hermenêuticos e às técnicas decisórias utilizadas pela Suprema Corte brasileira, uma teoria de concretização dos direitos fundamentais tem ganhado espaço na jurisdição constitucional brasileira, o Estado de Coisas Inconstitucional, teoria transportada da Corte Constitucional da Colômbia e que vem sendo utilizada ainda de forma embrionária nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal.

 

II. O Estado de Coisas Inconstitucional[15]

 

Mas o que seria o Estado de Coisas Inconstitucional?

 

O Estado de Coisas Inconstitucional - ECI é uma teoria constitucional desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia que busca tornar efetivos os direitos fundamentais quando verificado pelo Poder Judiciário uma reiterada violação aos direitos fundamentais constitucionais e a mora contumaz do poder público para a solução dos problemas sociais.

 

Para melhor compreender a teoria do ECI é importante resgatar um pouco da história colombiana.

 

A Colômbia há décadas está inserida em um contexto político e social conturbado, com a realização de ações públicas direcionadas à redução do poder do narcotráfico e de milícias armadas paraestatais. A atuação desses grupos armados, e sua influência no seio da sociedade e entre os próprios agentes do poder público, chegou a atuar de forma nociva no âmbito do processo político do país, com a eleição de narcotraficantes, o financiamento de campanha eleitoral de parlamentares e até mesmo o assassinato de candidatos à presidência da República contrários à causa do comércio de drogas[16][17].

 

A ausência do Estado em áreas sociais importantes, e a insatisfatória prestação de serviços públicos à sociedade, abriu espaço para que esses grupos paramilitares emergissem com forte influência política sobre a sociedade, preenchendo o espaço político deixado pelo Estado.

 

A situação vivenciada ao final do Século XX dificultava sobremaneira a estabilidade institucional do Estado colombiano. O Estado não conseguia garantir a paz social, o que também impedia o desenvolvimento econômico do país.

 

Nesse conturbado ambiente social foi aprovada no ano de 1991 a Constitución Política de Colombia[18] que não representava ruptura democrática, mas uma continuidade.

 

A Constituição da República Colombiana é declaradamente veiculadora de um Estado Social de Direito, prevendo a carta constitucional o respeito à dignidade humana, ao trabalho e à solidariedade, com prevalência do interesse geral da população[19].

 

A teoria do ECI tem sido aplicada de forma recorrente no âmbito da Corte Constitucional da Colômbia, sendo cabível uma atuação dirigente do Poder Judiciário quando presentes alguns requisitos:

 

  1. A vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetam a um número significativo de pessoas;
  2. A prolongada omissão das autoridades para o cumprimento de suas obrigações legais na garantia dos direitos;
  3. A adoção de práticas inconstitucionais, como a exigência de utilizar medidas judiciais como parte do procedimento para garantir o direito violado;
  4. A não edição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias capazes de evitar a vulneração dos direitos;
  5. A existência de um problema social cuja solução exija a atuação de várias entidades, para a adoção de um conjunto de medidas multissetoriais que exigem um nível de recursos que demandam um esforço orçamentário adicional importante;
  6. Possibilidade de caos judicial se todos os interessados buscassem a tutela jurisdicional.

 

O ECI tem sido declarado para a proteção do que a corte denomina de sujeito de especial proteção constitucional que são pessoas físicas que integram uma minoria étnica, política ou social que se apresentam como grupos vulneráveis, sem voz política, que precisam da proteção do juiz constitucional e devem ser tratados de maneira prioritária.

 

Alguns casos submetidos à Corte Constitucional foram emblemáticos e passaram a servir de paradigma para a aplicação da teoria do ECI, como a seguir passamos a descrever:

 

a) Caso Cajanal (T 068/98)[20]:

 

Os autores ajuizaram a ação de Tutela perante a corte constitucional contra a Caixa Nacional de Previdência Social (Cajanal), órgão responsável pelo pagamento das aposentadorias dos servidores públicos, que de forma reiterada e sistemática omitia-se em analisar os pedidos de aposentadorias dos cidadãos. Alegavam os autores da ação a existência de mora administrativa por mais de oito meses sem a concessão do benefício. A Cajanal não estaria, portanto, exercendo adequadamente suas funções administrativas. Existia um problema estrutural de ineficiência e inoperância administrativa que gerava elevado número de ações judiciais, em razão da deficiência do serviço público previdenciário.

 

Considerando que tinham sido ajuizados na Corte Constitucional mais de 30.000 (trinta mil) Ações de Tutela (semelhante ao nosso Mandado de Segurança) contra as Caixas de Previdência Social, com identidade das questões a serem julgadas, alegando a Caixa que o motivo da demora no processamento e pagamento do benefício seria o imenso volume de trabalho e a fraude na produção dos documentos comprobatórios da atividade laboral, a corte constitucional promoveu inspeção judicial na entidade demandada constatando a precariedade da estrutura organizacional da Cajanal.

 

Demorava-se mais de 8 meses para a análise dos pedidos de benefício previdenciário e não havia orçamento para pagar essas ações previdenciárias, nem política pública para solucionar o problema.

 

O acórdão da corte colombiana determinou, dentre outras coisas, comunicar ao Ministro da Fazenda e Crédito Público, Ministro do Trabalho e Seguridade Social, o Chefe do Departamento Administrativo da Função Pública, a Gerência da Caixa Nacional de Previdência, a Subdireção de prestações econômicas da Caixa Nacional de Previdência, para que dentro de seis meses à data do acórdão corrijam a ineficiência administrativa, dentro dos parâmetros legais, bem como as falhas de organização e o procedimento que afetam a pronta resolução das solicitações de reconhecimento e atualização do cálculo das pensões.

 

b) Caso dos notários (SU  250/98)[21][22]:

 

A ação foi ajuizada por titular de cartório cuja posse se realizou sem a realização de prévio concurso público como exigia a Constituição colombiana. A titular do cartório exercia o mister público em condição de interinidade e argumentava que o poder público não poderia tê-la exonerado do cargo sem a prévia realização de concurso público, entendendo violados no caso concreto os princípios constitucionais da igualdade, do direito ao trabalho (artigos 25 e 54[23]) e do devido processo legal (art. 29[24]), este último por estarem ausentes no ato que a destituiu os argumentos que fundamentariam sua destituição do cargo. A autora postulava, além da reintegração ao cargo, indenização por lucros cessantes e danos morais. Segundo o entendimento da corte constitucional os notários interinos nomeados no período anterior à Constituição colombiana de 1991, como era a situação funcional da autora da ação, poderiam ser destituídos do cargo por ato motivado da Administração, caso não estivesse desempenhando o cargo de forma satisfatória, bem como através de sua substituição por outra pessoa aprovada em concurso público.

 

A corte constitucional considerou presente o Estado de Coisas Inconstitucional pelo fato da demora do ente estatal em providenciar a realização de concurso para a substituição dos notários interinos por aqueles que denominavam de notarios en propiedad” concursados, com expressa violação ao art. 131 da Constituição que previa taxativamente que “El nombramiento de los notarios en propiedad se hará mediante concurso”. Segundo a corte “no hay explicación razonable para que no se convoque a concurso para designación de notarios en propiedad, ya que hay normatividad vigente en lo referente a organismo que administra la carrera y el concurso”. Na decisão reconheceu a necessidade de emitir ordem para que os entes legitimados realizem o concurso para o cargo de notário, fundamentando a decisão no art. 131[25] da Constituição que prevê a separação dos poderes e a necessária harmonia entre as funções estatais desempenhadas pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

 

A decisão da corte constitucional, assim, determinou de um lado que a Administração, no prazo de cinco dias, emitisse ato administrativo apresentando os motivos e os fatos concretos para a destituição da autora como titular do cartório. Por outro lado, determinou a notificação ao Superintendente de Notariado y Registro y al Consejo Superior de la Administración de Justicia, com base no art. 131 da Constituição e Decreto 960 de 1970, para que após seis meses da notificação da decisão sejam convocados os concursos abertos para notários.

 

c) Caso das condições das prisões (T-153/98)[26]:

 

A ação proposta contra o Ministério da Justiça e INPEC (instituto prisional que administra as penitenciárias) discutia as precárias condições das prisões colombianas, com o congestionamento dos espaços físicos das penitenciárias disponíveis aos detentos, impedindo: a execução do projeto de ressocialização; que os detentos pudessem usufruir das mínimas condições de uma vida digna na prisão; a separação dos internos por categorias (indiciados e condenados; reincidentes e primários; funcionários públicos e indígenas dos demais, etc.).

 

Na narrativa da ação proposta descreve-se o estado de superpopulação carcerária com grave risco à integridade física dos detentos. Em celas construídas para 40 ou 80 detentos existiam 170 ou 180 detentos, o que impossibilitava até mesmo o repouso noturno, além do calor insuportável de até 40 graus.

 

Na decisão da corte consta o seguinte relato do autor da ação (um detento):

 

Si uno cae a una cárcel debería de tener un mínimo espacio para dormir y tener servicio de agua, en estos momentos después de una hora de habernos encerrado el calor es insoportable la temperatura debe pasar de 30 grados, no hay donde recibir aire, el aire que se respira es caliente lo mismo que el aire que circula, al cual le podíamos dar interpretación como derecho a la propiedad, lo que quiero con la presente acción de tutela es que el gobierno haga la forma de buscar soluciones pues no se justifica que haya que haber violencia, muerte o destrucción para poder que el Estado entre a arreglar soluciones como las que estamos viviendo, yo por mi parte me mantengo atemorizado oyendo rumores de que no esperamos si no que cualquiera arranque para mostrarle a este gobierno que en Bellavista somos capaces de destruir este pabellón en menos de medio día.

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As estatísticas demonstravam que existia um excedente na população carcerária nas prisões colombianas no ano de 1997 de 45,3%, com 42.454 detentos para 29.217 vagas - um excedente de 13.237.

 

As conclusões obtidas na decisão da corte evidenciavam a vulneração sistemática dos direitos dos presos: “Las condiciones de vida en los penales colombianos vulneran evidentemente la dignidad de los penados y amenazan otros de sus derechos, tales como la vida y la integridad personal, su derecho  a la familia, etc. Nadie se atrevería a decir que los establecimientos de reclusión cumplen con la labor de resocialización que se les ha encomendado. Por lo contrario, la situación descrita anteriormente tiende más bien a confirmar el lugar común acerca de que las cárceles son escuelas del crimen, generadoras de ocio, violencia y corrupción”.

 

A corte constitucional para o caso das condições dos presídios colombianos declarou o ECI ao ordenar o INPEC, o Ministério da Justiça e do Direito e o Departamento Nacional de Planejamento a elaborar, em um período de três meses, um plano para construção carcerária tendente a garantir aos reclusos condições de vida dignas. O governo deveria realizar de imediato as diligencias necessárias para que sejam incluídos os recursos necessários às obras no orçamento fiscal, bem como sua inclusão no Plano Nacional de Desenvolvimento e Investimentos. As obras deveriam estar concluídas em um período máximo de quatro anos. Os presos condenados deveriam estar em celas separadas daqueles não condenados. O INPEC, o Ministério da Justiça e do Direito e o Ministério da Fazenda deveriam tomar as medidas necessárias para solucionar as carências de pessoal especializado nas prisões e guardas penitenciárias. Os governadores e prefeitos, os presidentes das Assembleias Departamentais e Conselhos Distritais e Municipais deveriam tomar as medidas necessárias para cumprir sua obrigação de criar e manter centros de reclusão próprios. O Presidente da República, como suprema autoridade administrativa, e o Ministro da Justiça e Direito deveriam, enquanto se executam as obras carcerárias, adotar as medidas necessárias para garantir a ordem e o respeito aos direitos fundamentais dos internos nos estabelecimentos de reclusão no país.

 

d) O caso dos deslocados (T-025/2004)[27]:

 

O caso trata das populações “deslocadas” (desplazados) na Colômbia, pessoas que saem involuntariamente de suas residências em direção a outros municípios em razão da atuação do narcotráfico ou milícias armadas paraestatais na região onde residem. São caracterizadas por sua vulnerabilidade social, necessitando de uma especial proteção constitucional por representarem minorias em razão de gênero, idade ou agrupamento étnico (mulheres que sustentam o grupo familiar, menores de idade, minorias étnicas como os índios e pessoas da terceira idade)[28].

 

O art. 1º da Lei 387 de 1997[29] da Colômbia define os desplazados como “toda persona que se ha visto forzada a migrar dentro del territorio nacional abandonando su localidad de residencia o actividades económicas habituales, porque su vida, su integridad física, su seguridad o libertad personales han sido vulneradas o se encuentran directamente amenazadas con ocasión de cualquiera de las situaciones de conflicto armado interno; disturbios y tensiones interiores, violencia generalizada, violaciones masivas de los Derechos Humanos, infracciones al Derecho Internacional humanitario u otras circunstancias emanadas de las situaciones anteriores que puedan alterar drásticamente el orden público”. O referido diploma prevê uma série de medidas a serem adotadas pelas autoridades públicas, a fim de garantir aos deslocados uma existência digna, prevendo ajuda humanitária pelo prazo de três meses, prorrogável até superada a condição de vulnerabilidade.

 

O fundamento político para o auxílio material do Estado tem relação direta à omissão dos organismos estatais em não terem garantido os direitos fundamentais inerentes à vida em sociedade (dignidade da pessoa humana), em especial aspectos de segurança pública que permitisse a permanência dos deslocados em seus lares de origem, não assegurando a proteção ao patrimônio e a liberdade de ir e vir dos cidadãos que se viram forçados a deixar suas residências em busca de um novo lugar para viver com sua família.

 

De acordo com a corte constitucional colombiana:

 

El patrón de violación de los derechos de la población desplazada ha persistido en el tiempo, sin que las autoridades competentes hayan adoptado los correctivos suficientes para superar esas violaciones, y sin que las soluciones puntuales ordenadas por la Corte frente a las violaciones detectadas en las sentencias dictadas hasta el momento, hayan contribuido a impedir la reincidencia de las autoridades demandadas en tutela. Inclusive, se ha llegado a agravar la situación de afectación de los derechos de la población desplazada ante la exigencia impuesta por algunos funcionarios de la interposición de acciones de tutela como requisito previo para que las autoridades encargadas de su atención cumplan con sus deberes de protección[30].

 

A cobertura social do Estado em relação à população de “deslocados” é insuficiente, via de regra alegando as autoridades a ausência de recursos financeiros para a implementação das políticas públicas destinadas à melhoria de vida do grupo social.

 

No dizer da corte, “es imperioso destinar el presupuesto necesario para que los derechos fundamentales de los desplazados tengan plena realización. La obligación constitucional del Estado de garantizar una protección adecuada a quienes por razón del desplazamiento forzado interno se encuentran en condiciones indignas de vida no puede ser aplazada indefinidamente. La Ley 387 de 1997 reconoció que la atención de la población desplazada es urgente y prioritaria. La jurisprudencia de esta Corporación ha reiterado la prelación que tiene la asignación de recursos para atender a esta población y solucionar así la crisis social y humanitaria que representa este fenómeno. No obstante, ello no ha sucedido y de esta forma se ha desconocido la Carta Política, lo ordenado por el Congreso de la República y lo dispuesto en las políticas de desarrollo adoptadas por el propio Ejecutivo”[31].

 

A violação reiterada do Estado por ter se omitido em concretizar direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, sem que se apresentem sinais reais de atuação do poder público quanto ao planejamento e execução de políticas públicas que possam melhorar a condição de vida dos deslocados, justificaria uma atuação mais proativa e assertiva da corte constitucional na exigência do cumprimento das cláusulas constitucionais.

 

Assim, caberia ao Estado implementar as políticas públicas, programas ou ações afirmativas para lograr uma igualdade real de condições e oportunidades aos abrangidos pela situação de desplazamiento, concretizando os preceitos constitucionais relativos aos direitos econômicos, sociais e culturais básicos da população, em sintonia com o que a corte já havia decidido anteriormente ao adotar a teoria denominada cláusula de erradicación de las injusticias presentes.

 

A concretização dos direitos fundamentais não poderia ser diferida no tempo de forma indefinida, exigindo uma ação efetiva do Estado para a melhoria das condições de vida da população deslocada. A eventual superação das necessidades dos deslocados que dependam da edição de leis e da designação de orçamento adequado à execução da política pública deve ser gradativamente atendida pelo poder público, não se sustentando a mora indefinida das instituições e dos entes do Estado em busca da proteção dos deslocados. O enfrentamento dos problemas que exijam ações do poder público para a garantia dos direitos fundamentais dos deslocados deve ser sempre um caminhar para frente. Não se aceita o retrocesso social.

 

Em suma, concluiu a corte colombiana que: “por las condiciones de vulnerabilidad extrema en las cuales se encuentra la población desplazada, así como por la omisión reiterada de brindarle una protección oportuna y efectiva por parte de las distintas autoridades encargadas de su atención, se han violado tanto a los actores en el presente proceso, como a la población desplazada en general, sus derechos a una vida digna, a la integridad personal, a la igualdad, de petición, al trabajo, a la salud, a la seguridad social, a la educación, al mínimo vital y a la protección especial debida a las personas de la tercera edad, a la mujer cabeza de familia y a los niños (apartados 5 y 6). Esta violación ha venido ocurriendo de manera masiva, prolongada y reiterada y no es imputable a una única autoridad, sino que obedece a un problema estructural que afecta a toda la política de atención diseñada por el Estado, y a sus distintos componentes, en razón a la insuficiencia de recursos destinados a financiar dicha política y a la precaria capacidad institucional para implementarla. (apartado 6.3) Tal situación constituye un estado de cosas inconstitucional que será declarado formalmente en esta sentencia (apartado 7 y ordinal primero de la parte resolutiva)”[32].

 

Mesmo com a edição da Lei 387 de 1997 e de Decreto regulamentando a proteção social dos deslocados, existindo nas normas a previsão de ações concretas a serem executadas pelos entes públicos responsáveis e orçamento direcionado para o grupo social em condição de vulnerabilidade social, não foram efetivadas as ações estatais para melhoria da condição social dos deslocados.

 

Pela decisão da corte, o órgão público responsável por administrar as políticas públicas destinadas aos deslocados (Consejo Nacional Para la Atención Integral a la Población Desplazada por la Violencia) deveria corrigir sua atuação e reordenar as ações planejadas pela legislação e o orçamento disponibilizado para a execução das políticas públicas, sendo transparente com a sociedade caso não seja possível atender a todas as ações planejadas, elegendo ações prioritárias que atinjam a totalidade da população deslocada conferindo-lhe direitos mínimos a uma existência digna, como a garantia do direito à vida, à dignidade, à integridade física, psicológica e moral, à unidade familiar, à prestação de serviços de saúde nos casos de emergência e saúde básica, proteção frente a práticas discriminatórias baseadas na condição de deslocamento das famílias, direito à educação das crianças até os quinze anos de idade.

 

A corte colombiana fixou o prazo de dois meses para que o  Consejo Nacional Para la Atención Integral a la Población Desplazada por la Violencia defina o nível de recursos financeiros que efetivamente serão destinados a cumprir as obrigações assumidas pelo Estado, sem que os direitos mínimos mencionados possam deixar de ser protegidos de maneira oportuna e eficaz, concedendo o prazo de um ano caso seja necessário reorganizar o planejamento das políticas públicas para atendimento do mister de proteção dos deslocados.

 

A declaração jurisdicional do Estado de Coisas Inconstitucional, além de criar um fato político que tem como objetivo exigir uma atuação conjunta mais efetiva do poder público para a satisfação dos direitos fundamentais básicos do grupo social, levanta uma série de questões relacionadas à violação ou não do princípio da separação de poderes, princípio democrático e da dignidade da pessoa humana.

 

Uma crítica que se faz ao ECI é que somente os três casos de ECI decididos em 1998 exigiram gastos expressivos do orçamento colombiano, cuja alocação dos recursos coube a apenas 8 (oito) juízes da corte constitucional, subtraindo uma função administrativa que seria do Poder Executivo. Um questionamento se impõe: caberia à corte definir o direcionamento de recursos orçamentários do Estado?

 

Uma constatação: ao adotar a ECI em questões sociais importantes, o Judiciário colombiano passou a definir a pauta política do Estado.

 

No caso específico dos deslocados, o papel da corte colombiana apenas realçou a mora do Poder Executivo na execução orçamentária e no atendimento das ações planejadas anteriormente em lei e no decreto regulamentar. Existia uma omissão do Estado não em relação à atividade legislativa, mas no cumprimento das normas que buscavam o melhoramento das condições de vida da população deslocada.

 

Não podemos, nesse caso específico dos deslocados, advogar a presença de um ativismo judicial como sucedâneo da função legislativa, mas a presença de uma decisão judicial de conteúdo mandamental para atendimento da ordem jurídica e concretização dos direitos fundamentais da Constituição colombiana.

 

Não obstante a característica afirmativa da decisão no caso dos deslocados, o estudo do ECI abre a oportunidade de análise da utilização de decisões da suprema corte de caráter mandamental para a concretização dos direitos fundamentais.

 

Tal postura jurisdicional altiva da suprema corte desencadearia a violação aos princípios da separação dos poderes e do regime democrático?

 

III. A proteção dos direitos fundamentais no Brasil e a utilização da técnica do Estado de Coisas Inconstitucional no Supremo Tribunal Federal (ADPF 347)

 

A luta pela efetivação dos direitos fundamentais é um caminho que deve ser sempre perseguido pelo poder público e pelos cidadãos, utilizando-se de todos os instrumentos disponibilizados pela ordem jurídica.

 

A defesa realizada por HABERLE[33] de uma “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” buscava não somente uma maior abertura do Poder Judiciário para a sociedade. O processo de interpretação da Constituição deveria ser vivenciado de modo transversal por todos, poderes públicos e sociedade civil. Defendia o autor que “no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elemento cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos ‘vinculados às corporações’ (zünftmässige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade (...weil Verfassungsinterpretation diese offene Gesellschaft immer von neuem mitkonstituiert und von ihr konstituiert wird). Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade”.

 

E essa sociedade plural e complexa no mundo contemporâneo exige uma maior vigília do Estado para a efetivação dos direitos fundamentais.

 

A partir do momento que os principais valores sociais são encampados e positivados nos textos constitucionais espera-se que estes ganhem as ruas, tornando-se conhecidos e praticados (efetivados) em benefício de todos os cidadãos, seja por ato espontâneo, seja pelo exercício da coerção dos organismos do Estado.

 

No caso da nossa Constituição Federal de 1988 o legislador constituinte exagerou sobremaneira na inserção de diversas matérias que não guardavam essencialidade ou grau de importância que justificasse sua presença no texto constitucional.

 

Não se tratava de matérias relacionadas à organização do Estado, aos direitos e garantias individuais e coletivos, ao exercício dos poderes políticos, à segurança nacional, valores que dizem respeito a temas essenciais ao exercício do poder, da cidadania e de políticas de bem-estar social, mas de assuntos que poderiam ser deslocados para um regramento infraconstitucional[34].

 

Sob outra perspectiva, mesmos em relação aos direitos fundamentais que deveriam constar no texto constitucional por representar o estado da arte dos valores que protegem a dignidade da pessoa humana e coordena adequadamente as relações sociais entre os indivíduos e entre estes e o Estado, essa prodigalidade na oferta de direitos trouxe uma enorme sobrecarga financeira ao Estado brasileiro para custear uma série de serviços e prestações de natureza econômicas que precisam de um esforço financeiro de toda a sociedade, que transfere suas riquezas do patrimônio dos particulares para os cofres do Estado que nem sempre elege de forma adequada o destino da aplicação desses recursos ou apenas os aplica indevidamente por incúria ou má-fé de seus agentes estatais.

 

O mal emprego dos recursos públicos e as relações espúrias estabelecidas entre os interesses público e privado, constituem hoje o maior câncer a ser exterminado pela sociedade brasileira, se assim desejar elevar o patamar civilizatório e a qualidade de vida da sociedade como um todo.

 

Os textos constitucionais analíticos, como é o caso brasileiro, onde de tudo um pouco é disciplinado no texto normativo, abre espaço - em países com uma distribuição de renda abissalmente desigual como o nosso e com deficiente oferta de serviços pelo Estado, embora a um custo social e econômico altíssimo considerando a carga tributária - para que os direitos neles consagrados não se tornem efetivos ou concretizados no mundo real vivido pelos cidadãos, abrindo-se espaço para uma discussão da existência de uma crise de efetividade das normas constitucionais.

 

Como leciona BARROSO, o neoconstitucionalismo é o movimento jurídico-cultural criado para impulsionar a efetividade das normas constitucionais, com a realização de um salto quântico da Constituição presente na folha de papel para a Constituição vivida pela sociedade[35].

 

Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito.

 

A teoria do Estado de Coisas Inconstitucional serve como ferramenta adicional para a proteção dos direitos fundamentais encartados no texto constitucional.

 

O estudo de casos colombiano evidencia que uma das características do ECI é que a decisão judicial proferida pela corte constitucional não é sucedânea da atividade legislativa do Estado. O órgão jurisdicional não atua como legislador positivo. Ou seja, não há atividade de criação do direito legislado, mas apenas uma determinação jurisdicional para que os entes públicos responsáveis pela política pública concretizem direitos fundamentais vulnerados a grupos específicos de cidadãos.

 

A declaração do ECI tem conteúdo político-jurisdicional e posiciona o Poder Judiciário como garante dos direitos fundamentais violados, acompanhando as políticas públicas e corrigindo, caso necessário, os programas, projetos e ações dos organismos públicos que não tenham conseguido dar vida aos preceitos constitucionais.

 

Não é atividade legislativa criadora do Poder Judiciário, mas uma atuação proativa que se mostra legitimada diante de situações de urgência institucional que justifique a cooperação emergencial dos órgãos públicos para sanar a reiterada violação a direitos fundamentais, desde que comprovado que experiências anteriores não foram suficientes para colmatar o vazio no atuar dos poderes públicos.

 

O ECI não seria um método hermenêutico, ao lado dos métodos histórico, gramatical, lógico e sistemático, mas uma técnica de argumentação teórica-constitucional para a efetivação dos direitos fundamentais.

 

Também não se confundiria com os instrumentos jurídicos processuais garantidores da efetividade das cláusulas constitucionais, ou seja, não seria uma espécie de ação com procedimento próprio a tutelar os direitos fundamentais, a exemplo da previsão do habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção e ação popular. Mas poderá se utilizar desses instrumentos processuais para que ganhe vida.

 

O traço diferencial do ECI é político, em um primeiro momento, pois convida todos os poderes a prestarem contas das políticas públicas e a justificar a omissão do Estado na área social vulnerada. Em um segundo momento, utiliza-se de uma decisão de conteúdo declaratório-mandamental para que os poderes omissos promovam as ações necessárias para a correção de rumo constitucional, realizando providências de ordem concreta para cessar a violação sistemática de direitos fundamentais às minorias vulneráveis tuteladas, oportunizando a realização de um novo pacto social entre as instituições para que o resultado das políticas públicas seja alcançado de forma satisfatória, de acordo com os valores tutelados pelo texto constitucional.

 

Nem sempre o Estado de Coisas Inconstitucional representa uma omissão legislativa ou a ausência de norma jurídica disciplinadora do direito fundamental, mas pode estar constantemente relacionado ao não atendimento da norma existente ou sua inadequada execução, em razão dos meios materiais anteriormente empregados não terem alcançado os resultados queridos pela Constituição.

 

A primeira decisão judicial que se tem notícia da utilização da teoria do ECI no Brasil foi no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Medida Cautelar na ADPF 347 que tratava, a exemplo do caso colombiano, das condições dos presos e dos presídios brasileiros.

 

O Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, com base em estudo realizado pela Clínica UERJ Direitos, propôs Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF para a proteção dos direitos dos presos encarcerados no sistema prisional brasileiro, cujas condições nas prisões vulneravam vários princípios fundamentais da Constituição, como o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a proibição da tortura, do tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso III) e das sanções cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”), o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII), o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX) e o de não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII), além dos direitos fundamentais à saúde, educação, alimentação apropriada e acesso à Justiça. Também os acordos internacionais na matéria de direitos humanos pactuados pelo Brasil estariam sendo violados, a exemplo do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

 

Na narrativa fática o partido político apresentava uma versão real das precárias condições de vida dos presidiários, grupo social desprovido de influência política no processo democrático, por não exercerem o direito ao sufrágio, constatando-se um flagrante desinteresse da sociedade e dos poderes constituídos quanto a mudança do status quo dessa minoria vulnerável.

 

Segue trechos do Voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, em que descreve as condições dos presídios brasileiros:

 

Sustenta o autor da ação que o quadro resulta de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal, incluídos os de natureza normativa, administrativa e judicial. Consoante assevera, os órgãos administrativos olvidam preceitos constitucionais e legais ao não criarem o número de vagas prisionais suficiente ao tamanho da população carcerária, de modo a viabilizar condições adequadas ao encarceramento, à segurança física dos presos, à saúde, à alimentação, à educação, ao trabalho, à assistência social, ao acesso à jurisdição. A União estaria contingenciando recursos do Fundo Penitenciário – FUNPEN, deixando de repassá-los aos Estados, apesar de encontrarem-se disponíveis e serem necessários à melhoria do quadro. O Poder Judiciário, conforme aduz, não observa os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, nos quais é previsto o direito à audiência de custódia. Alega que o procedimento poderia reduzir a superlotação prisional. Sustenta a sistemática ausência de imposição, sem a devida motivação, de medidas cautelares alternativas à prisão, assim como a definição e execução da pena sem serem consideradas as condições degradantes das penitenciárias brasileiras. O Poder Legislativo estaria, influenciado pela mídia e pela opinião pública, estabelecendo políticas criminais insensíveis ao cenário carcerário, contribuindo para a superlotação dos presídios e para a falta de segurança na sociedade. Faz referência à produção de “legislação simbólica”, expressão de populismo penal.

Em relação ao mérito, discorre sobre o quadro fático do sistema penitenciário do Brasil. Argumenta serem as prisões “verdadeiros infernos dantescos”. Destaca as seguintes situações: celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos, homicídios frequentes, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos, praticadas tanto por outros detentos quanto por agentes do Estado, ausência de assistência judiciária adequada, bem como de acesso à educação, à saúde e ao trabalho. Enfatiza estarem as instituições prisionais dominadas por facções criminosas. Salienta ser comum encontrar, em mutirões carcerários, presos que já cumpriram a pena e poderiam estar soltos há anos. Ressalta que essas mazelas comprometem a segurança da sociedade, considerada a “mistura”, ocorrida nos presídios, entre presos com graus diferentes de periculosidade, o que afasta a possibilidade de ressocialização, contribuindo para que as taxas de reincidência cheguem a 70%. Consoante articula, os estabelecimentos prisionais convertem-se em “escolas do crime”. Crescimento significativo da população carcerária, que, de cerca de 90.000 presos, em 1990, chegou, em maio de 2014, a 563.000, sem contar os mais de 147.000 em regime de prisão domiciliar. Quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. A majoração do número de presos foi de mais de 650%. O déficit seria de, pelo menos, 206.307 vagas, o qual aumentaria para 730 mil vagas, se fossem cumpridos todos os mandados de prisão expedidos. Uso abusivo da prisão provisória. Segundo relatórios do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 41% dos presos brasileiros estão nessa condição. Alega a banalização da adoção da medida constritiva antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, evidenciando-se uma “cultura do encarceramento”. Aponta, mais, inexistir separação, nos presídios, entre os presos provisórios e os definitivos. Mulheres encarceradas ante a ausência de estabelecimento próprio e adequado, não havendo berçários, locais destinados à gestante e à parturiente ou creches para abrigar crianças maiores de seis meses e menores de sete anos. (...) Enfatiza comporem as minorias sexuais outro grupo a sofrer com o encarceramento inadequado. Consoante realça, esses indivíduos ficam expostos, constantemente, a abusos sexuais, inclusive a servidão, contraindo doenças sexualmente transmissíveis.

 

Declaração do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, contemporânea ao julgamento da ação, cuja pasta é responsável pela administração dos presídios federais e pela coordenação das políticas públicas do sistema prisional no âmbito nacional, realizada na época da discussão parlamentar sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos de idade, não deixava dúvidas sobre as condições dos presídios, ao mencionar que “os presídios seriam escolas do crime e masmorras medievais, preferindo a morte do que ficar preso no Brasil”[36].

 

A situação retratada decorreria de falhas estruturais em políticas públicas. A solução do problema dependeria da adoção de providências por parte dos diferentes órgãos legislativos, administrativos e judiciais da União, dos Estados e do Distrito Federal.

 

Em maio de 2014 contabilizavam-se 711.463 presos, incluídos 147.397 em regime domiciliar, para apenas 357.219 vagas disponíveis. Ainda existiam 373.991 mandados de prisão sem cumprimento, o que agravaria ainda mais o quadro caótico dos presídios caso os mandados fossem cumpridos.

 

As condições precárias dos presídios já eram conhecidas pelo legislativo brasileiro, que instalou no ano de 2009 na Câmara dos Deputados a Comissão Parlamentar de Inquérito para melhor conhecer o sistema penitenciário brasileiro, sem que providências político-administrativas tenham sido executadas para minorar o tratamento desumano a que estão submetidos os presidiários. Concluiu-se, na oportunidade, que “a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário”[37].

 

Não restava dúvida alguma da presença de uma vulneração massiva e reiterada dos direitos fundamentais dos presos. Verdadeira situação de caos institucional.

 

O Supremo Tribunal Federal, meses antes da análise da cautelar, ainda no ano de 2015, tinha sinalizado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 592.581/RS, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, as condições precárias de cumprimento das penas judiciais, determinando ao Poder Executivo da União e dos Estados que realizassem obras para melhoramento das instalações físicas das prisões.

 

REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA ACÓRDÃO DO TJRS. REFORMA DE SENTENÇA QUE DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA DO ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DESBORDAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS PROGRAMÁTICAS. INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABIILIDADE IMEDIATA. INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO POSTULADO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA MANTER A SENTENÇA CASSADA PELO TRIBUNAL.

I - É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais.

II - Supremacia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial.

III - Sentença reformada que, de forma correta, buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art.5º, XLIX, da Constituição Federal.

IV - Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio da separação dos poderes.

V - Recurso conhecido e provido.

 

No julgamento do RE 592.581/RS o STF decidiu aprovar o tema 220 da repercussão geral com a seguinte tese: “É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes”.

 

Já sinalizava a suprema corte, meses antes da declaração do ECI, uma posição mais proativa em defesa dos direitos fundamentais dos presos.

 

Na ADPF 347/DF que reconheceu o ECI a corte constitucional foi mais além quando deferiu os pedidos cautelares para: a) determinar aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão; b) determinar à União que libere o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos; c) determinar à União e aos Estados, e especificamente ao Estado de São Paulo, que encaminhem ao Supremo Tribunal Federal informações sobre a situação prisional.

 

A decisão cautelar do STF abriu a oportunidade do debate acadêmico sobre se não haveria a decisão da corte atravessado a linha divisória funcional que constitucionalmente cabe aos poderes constituídos, com violação ao princípio democrático e da separação de poderes.

 

O STF ao emitir decisões que impõem obrigação de fazer aos poderes Executivo e Legislativo não estaria invadindo a esfera de competência institucional de outros poderes?

 

Seria legítima a atuação contramajoritária da suprema corte em defesa dos direitos fundamentais de grupos vulneráveis e minoritários como os presos?

 

Sua atuação deveria estar reservada apenas à declaração da omissão do poder público na concretização de direitos ou poderia ir além e estabelecer premissas de atuação para que os Poderes Executivo e Legislativo providenciem a correção de rumos institucionais?

 

Seria a decisão do STF reflexo de um ativismo judicial condenável ou de uma proatividade ou altivez necessária em respeito aos preceitos fundamentais?[38]

 

Os questionamentos são muitos e poderiam ser explorados com mais vagar em trabalho específico sobre o tema, mas sem dúvida alguma, no atual contexto político e de desenvolvimento social do Brasil, a proatividade jurisdicional além de útil é indispensável para a concretização dos direitos fundamentais, desde que a atuação da corte constitucional encontre limites no próprio texto constitucional.

 

Sobre o tema do papel do STF na efetivação dos direitos fundamentais e o eventual conflito entre as funções estatais no Estado Democrático de Direito, algumas posições foram firmadas no julgado analisado e que podem sinalizar a visão do modelo constitucional que está sendo construído no sistema jurídico pátrio.

 

Para o Ministro Marco Aurélio, “há dificuldades, no entanto, quanto à necessidade de o Supremo exercer função atípica, excepcional, que é a de interferir em políticas públicas e escolhas orçamentárias. Controvérsias teóricas não são aptas a afastar o convencimento no sentido de que o reconhecimento de estarem atendidos os pressupostos do estado de coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa cogitar de afronta ao princípio democrático e da separação de poderes. A forte violação de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva do Tribunal”. Segundo o Relator, “apenas o Supremo revela-se capaz, ante a situação descrita, de superar os bloqueios políticos e institucionais que vêm impedindo o avanço de soluções, o que significa cumprir ao Tribunal o papel de retirar os demais Poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados. Isso é o que se aguarda deste Tribunal e não se pode exigir que se abstenha de intervir, em nome do princípio democrático, quando os canais políticos se apresentem obstruídos, sob pena de chegar-se a um somatório de inércias injustificadas. Bloqueios da espécie traduzem-se em barreiras à efetividade da própria Constituição e dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos”. E vai mais além, ao externalizar o entendimento da possibilidade da realização do controle de atos discricionários do governo ao defender que ao“Supremo cumpre interferir nas escolhas orçamentárias e nos ciclos de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas, mas sem detalhá-las. Deve formular ordens flexíveis, com margem de criação legislativa e de execução a serem esquematizadas e avançadas pelos outros Poderes, cabendo-lhe reter jurisdição para monitorar a observância da decisão e o sucesso dos meios escolhidos. Ao atuar assim, reservará aos Poderes Executivo e Legislativo o campo democrático e técnico de escolhas sobre a forma mais adequada para a superação do estado de inconstitucionalidades, vindo apenas a colocar a máquina estatal em movimento e cuidar da harmonia dessas ações”[39].

 

O decano da corte constitucional, Ministro Celso de Mello, resumiu de forma lapidar aquilo que se espera de um órgão guardião da Constituição e a necessidade da participação mais proativa para a concretização dos direitos fundamentais. Enfatizou o jurista no seu voto[40]:

 

Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.

(...)

No exame da grave questão ora submetida ao nosso exame, é preciso não desconsiderar a função contramajoritária que cabe ao Supremo Tribunal Federal exercer no Estado democrático de Direito e que legitima, precipuamente, a proteção das minorias e dos grupos vulneráveis, sob pena de comprometimento do próprio coeficiente de legitimidade democrática das ações estatais.

(...)

Tenho para mim que o eminente Relator bem examinou, em seu primoroso voto, a controvérsia suscitada na presente causa, cabendo assinalar que a abordagem do tema por ele efetuada ajusta-se, quanto ao seu conteúdo, à jurisprudência constitucional que esta Corte Suprema construiu a respeito da legitimidade do controle jurisdicional das políticas públicas. Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional de que se acham investidos os órgãos do Poder Judiciário, tem enfatizado que os juízes e Tribunais não podem demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivas as determinações constantes do texto constitucional, inclusive aquelas fundadas em normas de conteúdo programático (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

(...)

Impende assinalar, no entanto, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter vinculante, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.

(...)

Cabe ter presente, bem por isso, consideradas as dificuldades que podem derivar da escassez de recursos – com a resultante necessidade de o Poder Público ter de realizar as denominadas “escolhas trágicas” (em virtude das quais alguns direitos, interesses e valores serão priorizados “com sacrifício” de outros) –, o fato de que, embora invocável como parâmetro a ser observado pela decisão judicial, a cláusula da reserva do possível encontrará, sempre, insuperável limitação na exigência constitucional de preservação do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte:

(...)

A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação, o direito à segurança e o direito de não sofrer tratamento degradante e indigno quando sob custódia do Estado.

 

A escassez de recursos financeiros do Estado para o atendimento de todas as necessidades sociais, geralmente associada ao princípio da reserva do possível, não autoriza o desatendimento massivo de direitos fundamentais, devendo-se assegurar o mínimo existencial que assegurem os membros da sociedade viver com dignidade.

 

Casos de vulneração massiva de direitos fundamentais brotam aos montes em terra brasilis, o que tem aberto espaço político para que o Poder Judiciário atue mais enfaticamente na concretização dos direitos fundamentais.

 

O Supremo Tribunal Federal, em especial na atual composição de seus membros, tem sinalizado uma atuação mais proativa e altiva para a concretização dos direitos fundamentais.

 

A semelhança dos problemas sociais e do grau de desenvolvimento econômico no Brasil e na Colômbia, com imensos desafios a serem superados, criou um ambiente propício para o desenvolvimento da teoria do Estado de Coisas Inconstitucional.

 

A adoção da teoria do ECI traz para a jurisdição constitucional uma característica pouco presente nas decisões do Supremo Tribunal Federal, mas que vem ganhando corpo inclusive no controle concentrado de constitucionalidade. As decisões do STF, fundamentadas no Estado de Coisas Inconstitucional ou não, vem irradiando cada vez mais conteúdo mandamental, com comando decisório que estabelece obrigação de fazer direcionada a órgãos e entidades públicas.

 

Para se dar efetividade aos direitos fundamentais não seria suficiente que a corte constitucional sinalizasse a mora legislativa, como ocorre no mandado de injunção, ou dar ciência ao poder competente para a adoção das providências necessárias e imputável a determinado órgão estatal, nos casos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (Lei nº 9.868/99).

 

As decisões proferidas pela corte constitucional que no controle concentrado objetivo geralmente têm eficácia declaratória e constitutiva, ou seja, declara a inconstitucionalidade de dispositivo normativo ou de entendimento jurídico contrários à Constituição, decretando sua nulidade e, por consequência, retira do mundo jurídico a norma ou elimina o entendimento normativo, não possui carga executiva ou mandamental. A decisão que reconhece o ECI tem carga mandamental e executiva, reconhecendo a omissão do poder público e determinando obrigação de fazer.

 

A utilização da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF, prevista no §1º, art. 102 da CF e disciplinada pela Lei nº 9.882/99, mostra-se como instrumento adequado para o reconhecimento do ECI, diante da possibilidade da decisão nela proferida gerar um efeito executório direcionado aos poderes públicos[41]. Essa a intelecção que se extrai do texto literal da lei ao fixar no art. 10 que “julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental”.

 

IV. Conclusões

 

A partir da metade do Século XX, após a segunda guerra mundial, nasceu o movimento denominado de Neoconstitucionalismo que conferia posição de centralidade às Constituições, como norma jurídica de cumprimento obrigatório e com força normativa concretizadora apta a transformar o mundo dos fatos, transmudando os textos constitucionais de mero diploma político de elevada abstração e conteúdo principiológico para um documento transformador da realidade social.

 

A partir da necessidade de dar efetividade às normas constitucionais, o texto constitucional brasileiro colocou à disposição da sociedade vários instrumentos processuais como as ações constitucionais do habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção e ação popular, e as ações do controle concentrado de constitucionalidade, além do emprego pela suprema corte de métodos de aplicação das normas constitucionais (técnicas decisórias) que dão vida aos valores constitucionais, com a criação de uma jurisdição constitucional democrática e participativa,  digna de uma sociedade aberta dos intérpretes da constituição.

 

Aliado às ações constitucionais e às técnicas decisórias utilizadas pela Suprema Corte brasileira, uma teoria de concretização dos direitos fundamentais tem ganhado espaço na jurisdição constitucional brasileira, o Estado de Coisas Inconstitucional, teoria transportada da Corte Constitucional da Colômbia e que vem sendo utilizada ainda de forma embrionária nos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, a exemplo do julgamento realizado na ADPF nº 347/DF que tratava das condições dos presídios brasileiros.

 

O Estado de Coisas Inconstitucional - ECI é uma teoria constitucional desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia que busca tornar efetivos os direitos fundamentais quando verificado pelo Poder Judiciário uma reiterada violação aos direitos fundamentais constitucionais e a mora contumaz do poder público para a solução dos problemas sociais. Tem como requisitos: (a) A vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetam a um número significativo de pessoas; (b) A prolongada omissão das autoridades para o cumprimento de suas obrigações legais na garantia dos direitos; (c) A adoção de práticas inconstitucionais, como a exigência de utilizar medidas judiciais como parte do procedimento para garantir o direito violado; (d)  A não edição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias capazes de evitar a vulneração dos direitos; (e) A existência de um problema social cuja solução exija a atuação de várias entidades, para a adoção de um conjunto de medidas multissetoriais que exigem um nível de recursos que demandam um esforço orçamentário adicional importante; (f) Possibilidade de caos judicial se todos os interessados buscassem a tutela jurisdicional.

 

A declaração do ECI tem conteúdo político-jurisdicional e posiciona o Poder Judiciário como garante dos direitos fundamentais violados, acompanhando as políticas públicas e corrigindo, caso necessário, os programas, projetos e ações dos organismos públicos que não tenham conseguido dar vida aos preceitos constitucionais.

 

Não é atividade legislativa criadora do Poder Judiciário, mas uma atuação proativa que se mostra legitimada diante de situações de urgência institucional que justifique a cooperação emergencial dos órgãos públicos para sanar a reiterada violação a direitos fundamentais, desde que comprovado que experiências anteriores não foram suficientes para colmatar o vazio no atuar dos poderes públicos.

 

O traço diferencial do ECI é político, em um primeiro momento, pois convida todos os poderes a prestarem contas das políticas públicas e a justificar a omissão do Estado na área social vulnerada. Em um segundo momento, utiliza-se de uma decisão de conteúdo declaratório-mandamental para que os poderes omissos promovam as ações necessárias para a correção de rumo constitucional, realizando providências de ordem concreta para cessar a violação sistemática de direitos fundamentais às minorias vulneráveis tuteladas, oportunizando a realização de um novo pacto social entre as instituições para que o resultado das políticas públicas seja alcançado de forma satisfatória, de acordo com os valores tutelados pelo texto constitucional.

 

Referências Bibliográficas

 

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BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Sérgio Fabris Editor. Porto Alegre. 1997.

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LEAL, Saul Tourinho. Ativismo Judicial ou Altivez: o outro lado do Supremo Tribunal Federal. Editora Fórum: Belo Horizonte, 2010.

NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 10ª edição. Salvador: Editora Juspodivm.

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Sobre o autor
Allan Luiz Oliveira Barros

Allan Luiz Oliveira Barros. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Atuou na Procuradoria Federal junto a Superintendência Nacional de Previdência Complementar - Previc. Membro da Câmara de Recursos da Previdência Complementar (CRPC). Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela UNICEUB. Máster en Dirección y Gestión de Planes y Fondos de Pensiones pela Universidade de Alcalá, Espanha. Pós-Graduado em Direito Constitucional e Direito Previdenciário. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Previdenciário e da Escola da Advocacia-Geral da União. Editor do site www.allanbarros.com.br

Informações sobre o texto

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