O trabalho na forma social do capital e o trabalho como princípio educativo refletem a formação humana conforme estudo relatado por Marx. O trabalho como princípio educativo foi, sem dúvida, um dos temas mais recorrentes no Brasil, nos anos 80 e início dos 90 do século XX, entre os pensadores da educação, sobretudo aqueles que pertenciam ao campo do conhecimento trabalho e educação e que se apoiavam num referencial teórico-político marxista.
A partir da segunda metade da década de 90, ao mesmo tempo em que houve um declínio de sua discussão no âmbito acadêmico, o trabalho como princípio educativo sofreu um grande revigoramento na medida em que passa a se constituir como fundamento de propostas de educação que se pretendem inovadoras e progressistas, desenvolvidas por alguns movimentos sociais, que têm ocupado papel central no cenário político brasileiro contemporâneo.
Aqui se faz necessário de forma introdutória e ensaística, o significado do trabalho no modo capitalista de produção, à luz da contribuição teórica oferecida por Marx, sobretudo em O capital, e, com essa base, levantar algumas questões referentes ao trabalho como princípio educativo, ou seja, a formação humana.
No presente estudo o objetivo é refletir acerca de concepções de formação humanística presentes em escritos de Marx, onde segundo o mesmo, todo sistema educacional se estrutura a partir da questão do trabalho, pois o trabalho é a base da existência humana, e os homens se caracterizam como tais na medida em que produzem sua própria existência, a partir de suas necessidades.
Para Saviani, seguidor na linha de Marx, “Trabalhar é agir sobre a natureza, agir sobre a realidade, transformando-a em função dos objetivos, das necessidades humanas.
A sociedade se estrutura em função da maneira pela qual se organiza o processo de produção da existência humana, o processo de trabalho. (1986,p.14)
Assim, se o trabalho é a base da existência humana, seria necessário indagar como é produzida essa existência humana por intermédio do trabalho, na especificidade do modo capitalista de produção. Em que medida seria possível considerar o trabalho como princípio balizador de uma proposta emancipadora de formação humana e educação no interior do capitalismo?
Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, discute o problema da relação entre emancipação política e emancipação humana, bem como o da redução da vida humana à condição animal. No sistema capitalista, as formas de organização do trabalho e da produção se apresentam estranhas ao trabalhador, priorizam a acumulação de capital em detrimento da satisfação das necessidades humanas.
Ao tematizar o trabalho alienado, o autor chama atenção para a expropriação do humano nele contida e para a necessidade de resgate das dimensões essencialmente humanas: objetivações éticas, estéticas e políticas.
Concepção de trabalho e humanização em Marx
O processo de humanização em Marx é compreendido e analisado fundamentalmente a partir da categoria trabalho. O trabalho é característica distintivaimportante do homem em relação aos demais animais.
Assim, o próprio processo de hominização esteve intimamente ligado ao trabalho. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e portudo que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência (MARX e ENGELS, 1989,13).
A presente análise não pretende traçar um panorama completo das concepções de trabalho ao longo da história, no entanto necessário situar as concepções de trabalho vigentes no capitalismo num contexto amplo, com vistas sua análise a partir do referencial marxiano.
O trabalho, compreendido como a ação humana na natureza e nos universos histórico-social, tecnológico, comercial e cultural, ocupa, na sociedade hodierna, lugar central no conjunto das atividades humanas.
Nas sociedades primitivas, o trabalho constituía-se, primordialmente, na ação do ser humano sobre a natureza: o objetivo era extrair dela o alimento necessário para a subsistência da espécie e as condições para se proteger das intempéries e animais ferozes.
As atividades do trabalho, dirigidas fundamentalmente à preservação da espécie humana, não requeriam instrumentos sofisticados para a produção material, e a produção imaterial, no contexto de relações sociais circunscritas ao universo tribal, não demandavam programas educativos formais tais como escolas. O processo educativo de formação se dava no contexto dos agrupamentos família e tribal e objetivava integrar os indivíduos nesse contexto social.
A intensificação de relações sociais entre tribos, feudos, cidades e continentes ampliaram as relações entre os povos e propiciaram trocas recíprocas de objetos e decultura produzida, demarcando novas exigências de produção e de educação ao longo da história da humanidade.
Com tais exigências tem início a divisão do trabalho, a separação campo e cidade e a exploração de mão de obra com vistas assegurar um patamar de produção condizente com novas exigências de oferta de mercadorias.
A produção em larga escala não se restringe mais à prioritária provisão de alimentos, ela se estende à indústria e ao comércio emergentes. Na indústria intensifica-se a produção de ferramentas, objetos e equipamentos necessários à expansão das cidades e à alimentação do comércio.
O ideário de civilização e progresso justifica o emprego de trabalhadores na construção, sustentação e expansão de impérios, monarquias, estados e nações dos mais diversos, que por sua vez, requerem o exercício e a ostentação de poder (obras arquitetônicas e arsenais de guerra) e de produção artística, destinados a exaltar deuses e governos.
A organização do trabalho, especialmente no contexto da produção de excedentes, tende a dissociar o trabalhador do produto imediato do seu trabalho, passando sua contribuição a ter uma dimensão social e, portanto, um significado mediato e abstrato.
Para o trabalhador, os motivos do seu trabalho são transformados. O produto do seu trabalho passa a ser consumido por desconhecidos, o resultado do que faz se dilui na produção coletiva e, em alguns casos, somente será percebido e usufruído por gerações posteriores. Tal mecanismo muda a relação do trabalhador com o produto de seu trabalho e enseja, para a sustentação do mencionado mecanismo, exploração de mão obra e justificativa ideológica para tal exploração, num crescente processo de desumanização.
Na Ideologia Alemã, MARX e ENGELS (1989, p. 34), tratam das conseqüências da expansão do mercado e já em 1846 quando a concluem, prenunciam questões pertinentes ao atual fenômeno da globalização e o acirramento do processo de alienação a ele inerente.
Na verdade, é também um fato indubitavelmente empírico que, na história decorrida até hoje, com a extensão da atividade, no plano da história universal, os indivíduos foram cada vez mais submetidos a uma força que lhes é estranha – opressão essa que eles consideravam como uma trapaça do chamado Espírito universal –, uma força que se foi tornando cada vez mais maciça e se revela, em última instância, como o mercado mundial.
A condição de determinados por uma estrutura que lhes parece estranha subjuga os trabalhadores.
Transforma-os em agentes executores de tarefas fragmentadas. Sem a compreensão da totalidade do que executa, o trabalhador não tem a posse do seu produto e, por conseguinte, dos benefícios (riqueza) que ele pode ensejar. A expectativa era a de que o advento das grandes descobertas científicas, dos intercâmbios comerciais e da globalização propiciasse planejamento das relações econômicas e a produção fosse regulada pelas necessidades humanas, que os trabalhadores tivessem consciência do seu trabalho.
Contudo, a pretendida regulação se dá de modo unilateral, ou seja, sob o critério do lucro. O mercado se apresenta como entidade onipotente, capaz de num passe de mágica tudo regular. Com isso, dita aos homens os modos de suas relações sociais a pretexto de fazer justiça ao esforço de cada indivíduo no contexto da competitividade.
O próprio trabalho se transforma ele mesmo numa mercadoria muito rentável para quem dela dispõe, o capitalista. Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1973, 102) expõe esse mecanismo nos seguintes termos: “A procura de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria (...) a existência do trabalhador encontra-se reduzida às mesmas condições que a existência de qualquer outra mercadoria”.
A redução do homem à condição de mercadoria tem como uma de suas conseqüências mais graves o fato de o trabalhador ser concebido como instrumento de produção: a ele basta condições mínimas de existência que o permita sobreviver para produzir.
Os elementos simples do processo de trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. (MARX, 1983, p. 149-150). O autor assevera que :
o processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais. (MARX, 1983, p. 153)
Essas condições propiciadas àqueles que conseguem vender o seu produto: um privilégio, portanto, concedido aos que estão empregados. Daí a lógica perversa que limita a capacidade de organização dos trabalhadores: Segundo Marx, “o capitalista pode viver mais tempo sem o trabalhador do que o trabalhador sem o capitalista” (1973, 101), pois enquanto este sofre danos no lucro, o trabalhador sofre danos em sua existência.
Se o capital é trabalho acumulado e a acumulação é a meta principal, o trabalhador vê-se exposto a toda sorte de privações, alienação e desejos frustrados. A miséria social constitui-se em o objetivo da economia na medida em que a explora em seu benefício. A subida dos salários desperta no trabalhador o mesmo desejo de enriquecimento que no capitalista, mas só o pode satisfazer pelo sacrifício do seu corpo e espírito. Marx afirma que originalmente e em princípio todo produto do trabalho pertence ao trabalhador. Mas imediatamente acrescenta que, na realidade, o trabalhador recebe apenas a parte mínima e absolutamente indispensável do seu produto; precisamente tanto quanto necessita para existir como trabalhador, não como homem, e para gerar a classe escravizada dos trabalhadores, não a humanidade.
Segundo Marx, tudo é comprado com o trabalho e que o capital não passa de trabalho acumulado, mas acrescenta logo a seguir que o trabalho, longe de ter possibilidade de comprar tudo, devem antes vender-se a si mesmo e a sua humanidade. (1973, p. 106-107).
As condições de trabalho são depauperadas, a exploração e a alienação dos trabalhadores intensificadas. As dimensões propriamente humanas, a estética, a ética e política são rechaçadas, consideradas fúteis, um luxo para os trabalhadores. Um privilégio restrito aos detentores de capital, como recompensa ao seu esforço e competência.
As formas de organização do trabalho e da produção se apresentando estranhas ao trabalhador, priorizam a acumulação de capital em detrimento da satisfação das necessidades humanas.
No Terceiro Manuscrito Marx (1993: 210-220) aduz: Quanto menos cada um comer, beber, comprar livros, for ao teatro ou ao baile, ao bar, quanto menos cada um pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, poetar, etc., tanto mais poupará, tanto maior será o seu tesouro, que nem a traça nem a ferrugem roerão, o seu capital. Quanto menos cada um for, quanto menos cada um expressar a sua vida, tanto mais terá, tanto maior será a sua vida alienada. O ser humano fica reduzido à sua vida animal, à satisfação de suas necessidades básicas de sobrevivência.
Ao tratar do trabalho alienado, Marx (1993, p. 162), de modo explícito, chama atenção para a expropriação do humano nele contida:
Chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente activo nas suas funções animais – comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno, etc. – enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano animal.
De fato, aquela que deveria ser a ciência riqueza, a chamada economia política, se transforma na ciência da miséria, da privação e da renúncia. A ciência que justifica o processo de desumanização.
As reflexões teóricas sobre as condições de humanização e desumanização geradas pelo capitalismo e analisadas à luz de estudos de Marx, contribuem para a análise crítica do tipo de formação humanística que é preconizado pela legislação educacional no âmbito da formação humana.
O resgate das dimensões genuinamente humanas no processo educativo de formação é um dos passos no processo de superação do capitalismo. Contudo, tem precedência a ação dos destituídos de dignidade humana que denunciam a fragilidade do sistema. De fato, já não há mais espaço para deter e ocultar a miséria gerada pelo sistema de exploração. As contínuas rebeliões denunciam o processo de desumanização.
Considerações Finais
Marx completa a trilogia a respeito do trabalho no capitalismo: trabalho útil ou concreto como criador de valor de uso, trabalho abstrato como substância de valor e, finalmente, trabalho produtivo de capital. Ainda, oportuno ressaltar: “... as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (Marx e Engels, 1989, 36).
Dito isso, se a possibilidade do novo se encontrar determinada, circunscrita aos limites do sistema capitalista vigente, não haverá possibilidade de humanização. Não somente porque o capitalismo nada tem a contribuir no processo de humanização, mas principalmente porque a possibilidade de transformação traz em si a necessidade do novo, a elaboração de outros patamares estruturais, não a preservação dos atuais com seus privilégios e privilegiados.
Assim, o significado do trabalho na forma social do capital, a análise desenvolvida permite extrair, algumas considerações como em O capital, Marx pretende apreender não o ser social genérico de uma forma social genérica, mas o ser social de uma forma social historicamente determinada, a forma capital. Por isso, todas as categorias analíticas que compõem seu construto teórico, sintetizadas na categoria capital, têm como finalidade apreender esse ser histórico-social.
Ainda, Marx apresenta os fatores constitutivos do processo de trabalho, diferenciando-o do processo de valorização e, ao mesmo tempo, compreendendo, como unidade de ambos, o processo de produção capitalista. Dessa forma, a categoria trabalho, como trabalho em geral, não serve ou, na melhor das hipóteses, é insuficiente para a apreensão da relação capitalista de produção e, portanto, do ser social da forma capital.
Na obra O Capital, o trabalho jamais é apresentado de forma desistoricizada. Ele aparece como trabalho em geral numa forma social genérica e como trabalho útil, trabalho abstrato e trabalho produtivo na forma social capitalista. Evidencia-se aqui a relação de contradição entre o trabalho concreto, como criador do valor de uso para satisfação das necessidades humanas, e o trabalho produtivo de capital, cuja análise conduziu à conclusão segundo a qual, na forma social do capital, a dimensão de positividade do trabalho constitui-se pela dimensão de sua negatividade,seu estatuto de ser criador da vida humana constrói-se por meio de sua condição de ser produtor da morte humana.
Constata-se que, a voracidade pelo lucro por parte dos detentores dos meios de produção e do capital financeiro, a preservação do capital como entidade abstrata e suscetível de ser conquistado com esforço, renúncia e competência, o fetiche da mercadoria que seduz e encanta a todos, mesmo os sem poder aquisitivo para adquiri-las, submetem os homens a toda sorte de carências, alienação, frustrações e exploração. Molda-se um cidadão submisso à ordem vigente, destinado a contribuir com seu trabalho alienado à manutenção dos privilegiados do sistema.
O processo de formação do trabalhador está, em última instância, ajustado às diretrizes do capitalismo vigente. O trabalhador deve, inclusive, ser formado para se adaptar com flexibilidade às novas formas de ocupação, exploração.
A formação humana, no contexto da sociedade atual, pode contribuir para a sua transformação. Precede, contudo, a superação do trabalho alienado por parte do próprio educador.
O uso da liberdade ensejará novas concepções de trabalho. Novas relações sociais e de produção emergirão, ao mesmo tempo em que se requer o suprimento das necessidades vitais do homem.
Referências bibliográficas
GOMES, C.M. Processo de trabalho e processo de conhecimento. In: GOMES, C.M. et al. Trabalho e conhecimento: dilemas na educação do trabalhador. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1987.
HABERMAS, J. Técnica e ciência como “ideologia”. In: HABERMAS, J. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1994.
MARX, K. O capital. V. I, tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MARX, K. O capital. V. I, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MARX, K. Capítulo VI inédito de O capital. São Paulo: Moraes, s/d.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes,1989.
MARX, Karl. Manuscritos económico-filosóficos. Lisboa: Ed. 70, 1993.
SAVIANI, D. O trabalho como princípio educativo frente as novas tecnologias. In: FERRETTI, C.J. et al. (Org.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1986.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 4. ed. São Paulo: Pioneira, 1985.