A Constituição de Weimar e o Princípio da Igualdade

09/03/2016 às 15:09
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Em 1919, a Constituição de Weimar institui o ensino público obrigatório e gratuito, incluindo o material escolar, para todas as crianças em idade escolar. Os alemães concretizavam, há quase um século, a igualdade do direito de acesso à educação.

É corrente a ideia de que a igualdade teria seu primeiro teórico mais importante em Aristóteles, ao enunciar que “a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, dando a cada um o que é seu”. O Império Romano, dominante na antiguidade, estava assentado sobre uma sociedade estática e marcada por desigualdades em termos de direitos, quadro este agravado pela presença de escravos. A Idade Média, desenvolvida sob o predomínio da Igreja Católica, e a Idade Moderna, desenvolvida sobre reis absolutistas e uma nobreza, afastaram a isonomia nos campos religioso, social, legislativo e político.  

            Este quadro sofrerá uma inflexão, em 1789, quando a Revolução Francesa desenvolverá o moderno conceito de igualdade jurídica. Uma das primeiras medidas dos  revolucionários foi a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no qual acabam com os privilégios de nascimento e fixam que a lei deve ser igual para todos[1]. O lema central do movimento passa a ser “liberdade, igualdade e fraternidade”. A igualdade jurídica, ou seja, as pessoas são iguais na lei e perante a lei, exercerá enorme influência nos textos constitucionais, chegando até os dias atuais.

            A nossa primeira Constituição, outorgada em 1824, por D. Pedro I, fixava, em seu inciso XIII, art. 179, que “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção do merecimento de cada um”. No entanto, sabemos que o Brasil, durante quase toda a vigência desta Carta, estava assentado sobre o trabalho de escravos, que estavam desprovidos dos direitos mínimos. Os Estados Unidos também adotariam este princípio com a Décima Quarta Emenda Constitucional[2], aprovada em 1868. Mas, a previsão não impediu que a Suprema Corte considerasse constitucional, no caso Plessy vs. Ferguson, leis estaduais que impunham segregação em locais e transportes públicos, por motivos raciais.    

            Portanto, o modelo de igualdade jurídica francesa, apesar de ter se universalizado e estar presente, até hoje, nos ordenamentos constitucionais, logo mostrou-se suscetível de exceções perigosas, pois passou a estar permeado de interpretações, de jurisprudências, de normas legais, que, na prática, possibilitaram que alguns fossem mais iguais que os outros. O segundo problema reside no fato de que os direitos de primeira geração apresentam apenas um caráter negativo, ao prescreverem que o Estado não pode invadir a residência, não pode impedir reuniões, não pode diferenciar pessoas, dentre outros. Em consequência, a necessidade de provimento de acesso a serviços sociais básicos pela população de baixa renda não foi resolvida pelo princípio da igualdade jurídica. Há de se desatcar que a Constituição da França de 1791 não estruturou uma instrução pública de acesso isonômico a todas as crianças do país.      

A igualdade social não será alcançada pelos franceses, mas sim pelos seus vizinhos alemães. Em 1919, entra em vigor, a Constituição de Weimar, que trouxe extenso capítulo sobre a educação, integrado por oito artigos, estruturando como seria a prestação deste serviço na Alemanha. Inicialmente foi fixado, em seu artigo 145, o ensino primário e complementar obrigatório, gratuito e público, até os 18 anos[3].

Os alemães, na verdade estruturam os princípios da igual formação educacional para todos e igual preparação para o mercado de trabalho. Como as escolas são públicas e a gratuidade envolve, até mesmo, o material escolar, o acesso era universalizado[4]. O controle estatal também assegurava a uniformização da qualidade de ensino, nivelado por cima, por meio de medidas como o processo criterioso de seleção de docentes, investimentos nas escolas e políticas de valorização do professor.

Observamos que, na Alemanha, a Carta de Weimar determinou que todas as crianças em idade escolar, independentemente da situação econômica, devem sentar nos bancos das escolas públicas, para serem educadas. Destacamos que o país não estava oferecendo colégio de qualidade para os estudantes de classes econômicas mais altas e de pior qualidade para os mais pobres. Os alemães, na verdade, promoveram um nivelamento, uma equiparação, ao instituírem uma escola única para todos seus nacionais.

Em consequência, o país conseguia, a cada ano, oferecer para a sociedade, pessoas qualificadas, após terem sido submetidos a todo um processo educacional de formação, que prezava pela uniformização e nível de ensino. A isonomia resta evidenciada pois certamente as portas do mercado de trabalho estavam abertas para todos que tivessem  uma boa formação educacional e profissional, independentemente das condições econômicas. Empresas selecionam pessoas pelo seu nível de qualificação, não pela classe social. Os alemães conseguem ser, portanto, o primeiro país a instituir uma ampla igualdade escolar e, em consequência, a concretizarem a igualdade social.

Faltou ao Brasil, não apenas competência na gestão dos serviços educacionais, mas a visão estratégica e política desenvolvida em Weimar. Por séculos, não conseguimos oferecer educação pública a crianças de baixa renda, gerando, em consequência, uma enorme segregação social. Foram pessoas excluídas do acesso a profissões científicas, e condenadas a exercerem trabalhos menos qualificados e de menor remuneração.  

Quando conseguimos tardiamente universalizar o ensino, passávamos a conviver com um problema ainda maior: o nível de qualidade da educação. Certamente que o oferecimento de escola pública sem qualidade não atende ao princípio da isonomia. A solução que o Estado tem oferecido para corrigir a ineficiência no ensino tem sido a criação de cotas. Mas, se um estudante, após cursar o ensino fundamental e médio em escola pública, apresenta grau de conhecimento muito aquém do necessário para acessar as melhores universidades do país, resta evidenciado que a culpa não está na raça, mas sim na ineficiente prestação deste serviço. No entanto, para o Estado, certamente é mais fácil não assumir a sua culpa e resolver o problema de forma maquiada, empurrando a responsabilidade para questões de ordem racial, a serem resolvidas simplesmente assegurando-se vagas a determinado grupo de pessoas. Destacamos que a Alemanha, mesmo tendo, em períodos de sua história, desenvolvido de fato políticas de perseguições e exclusões contra minorias, não adotou o modelo de cotas. Podemos citar, como exemplo, o físico Albert Einstein[5], autor da teoria da relatividade, alemão de nascimento, mas de descendência judia, que cursou escola pública na Alemanha.

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A busca por uma isonomia social reside no ensino público de qualidade, que assegure a todos o amplo acesso a instituições de ensino superior, a escolas técnicas e ao mercado de trabalho. Chama a atenção que, quase um século após a Constituição de Weimar ter universalizado o acesso ao ensino, para os estudantes de todas as classes econômicas, garantindo uma isonomia social no país, nós, hoje, queremos enfrentar os graves problemas no sistema educacional estatal, não com profundas reformas políticas e administrativas, mas sim com medidas pontuais que beneficiam apenas parte da população. Certamente, estamos indo na direção contrária ao modelo de sociedade igualitária. Em síntese, apesar de caminharmos para dois séculos de independência, o princípio da igualdade ainda está longe, certamente muito longe, de ser efetivado no Brasil.       

       

REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS

ANAIS. Assembleia Nacional Constituinte (1933/1934). Rio de Janeiro: Gráfica do Senado, 22 vols. 1935.

AZEVEDO, J.A.M. Elaborando a Constituição Nacional: Atas da Subcomissão elaboradora do Anteprojeto de 1932/1933. Rio de Janeiro: Gráfica do Senado. 1933.

BONAVIDES, Paulo. Reflexões: política e direito. 3ª ed. São Paulo: Malheiros. 1988.

CARNEIRO, L. Pela Nova Constituição. 1ª ed. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco. 1936.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 3ª ed. São Paulo: Saraiva. 2000.

ROBERT, Alexy. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros. 1992.   


[1] Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.    

[2] Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis.    

[3] Art. 145. O ensino é obrigatório para todos. Para atender a esta tarefa haverá escolas nacionais com um mínimo de 8 anos de escolaridade. Haverá também escolas complementares até que o indivíduo complete 18 anos. O ensino e material escolar são gratuitos tanto nas escolas nacionais quanto nas complementares.  

[4] Ottmar Buhler, jurista alemão, procede aos seguintes comentários sobre a educação na Constituição de Weimar: “É digno de notar, em primeiro lugar, a intensidade com que se regula, na Constituição, uma matéria que, até agora, se havia subtraído, totalmente à legislação do Reich. A regulamentação também vai muito além do que se havia projetado de início; durante o trabalho de preparação se foram suscitando novas questões que, de começo, não se havia pensado resolver, e dessarte se criaram disposições muito minuciosas sobre problemas como o da posição religiosa na escola. A ideia suprema, que domina todo o capítulo, é o propósito de dedicar à educação das gerações futuras todo o cuidado e todos os meios que permitam os difíceis tempos atuais. A segunda grande ideia é democratizar o sistema escolar, impor a escola única para todas as classes sociais, pelo menos nos graus mais elementares, e tomar medidas para que a assistência às universidades, por parte das classes mais humildes, seja mais considerável do que vem sendo agora”. (Anais, 1935, vol. VIII, p. 302)    

[5] Einstein nasceu em Ulm, cidade localizada no sul da Alemanha, e cursou escola primária pública e católica e depois o Ginásio Luitpold, ambos em Munique.

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Sobre o autor
Antonio José Teixeira Leite

Advogado em Brasília (DF). Especialista em Direito Público pelo IDP, MBA em Direito e Política Tributária pela FGV, Especialista em Políticas Públicas, pela Escola Nacional de Administração Pública e Pós graduado em Direito Societário pela FGV-Law. Professor em cursos de graduação, pós-graduação e extensão universitária.

Informações sobre o texto

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