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Normas constitucionais inconstitucionais oriundas do poder constituinte originário

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22/01/2004 às 00:00
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3 ANTINOMIAS NO ÂMBITO CONSTITUCIONAL

A Constituição pode trazer, em seu bojo, normas que sejam conflitantes entre si? Este questionamento tem sido tema de calorosos debates no mundo jurídico. Há os que defendem o princípio da unidade da Constituição [20], segundo o qual as normas constitucionais podem, e devem, ser interpretadas em conjunto, de modo que sejam evitados os conflitos com as demais normas pertencentes à Carta Política. Em posição frontalmente contrária a esta encontra-se a corrente que advoga a tese da hierarquização dos preceitos supralegais, [21] o que possibilitaria, neste caso, a existência de choques normativos internos e, via de conseqüência, a necessidade de critérios para sua ultrapassagem.

Cumpre registrar que a maioria da doutrina se inclina para a não aceitação desta hierarquia entre os preceitos constitucionais. Permissa venia, o presente estudo não vai se perfilar a tal corrente, optando por uma outra esteira de tirocínio.

O presente ensaio monográfico pretende acostar-se àqueles que se posicionam pela hierarquia das normas constitucionais, como forma de demonstrar a possibilidade da existência de antinomias no âmbito da Lei Maior. Faz-se mister, entretanto, antes do debruçamento na questão da hierarquia, uma breve digressão acerca do princípio da unidade da Constituição, como forma de posicionar a matéria no contexto doutrinário.

O princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição tem como fundamento a tese de que a Lex Fundamentalis vem a ser a expressão de um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas. Infere-se, a partir deste postulado, que uma regra constitucional não pode ser considerada em si mesma, de forma isolada das demais. Deve, por conseguinte, a norma constitucional, ser interpretada conjuntamente com os demais preceitos constantes da Lex Mater, o que impossibilita, de acordo com os que defendem o supramencionado princípio, repise-se, a verificação de antinomias internas no âmbito constitucional.

Nesta esteira de pensamento, LUÍS ROBERTO BARROSO assevera:

É precisamente por existir pluralidade de concepções que se torna imprescindível a unidade na interpretação. Afinal, a Constituição não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas. [22]

Sobre a temática em disceptação, ANDRÉ RAMOS TAVARES pontifica:

Considera-se a Constituição como um sistema e, nessa medida, um conjunto coeso de normas. (...) Assim, não se pode tomar uma norma como suficiente em si mesma. Não obstante todas as normas sejam dotadas da mesma natureza e do mesmo grau hierárquico, algumas, em virtude de sua generalidade e abstratividade intensas, acabam por servir como vetores, princípios que guiam a compreensão e a aplicação das demais normas, devendo-se buscar sua compatibilização. [23]

É de bom alvitre citar outros constitucionalistas que se posicionam em conformidade com esta tese, como J. J. GOMES CANOTILHO, UADI LAMMÊGO BULOS, e MANOEL MESSIAS PEIXINHO, que assim define o princípio da unidade da Constituição: "Significa que o intérprete deve considerar a Constituição em sua totalidade, procurando harmonizar os lugares de conflitos entre as suas diversas normas." [24]

Do outro lado, à frente dos que sustentam a possibilidade de hierarquização das normas constitucionais, pode-se mencionar o professor alemão OTTO BACHOF, precursor da defesa da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais. Suas idéias serão pormenorizadas no próximo capítulo, destinado a tal fim.

Corroborando com esta linha de tirocínio, podem ser mencionados, ainda, FERNANDO GARRIDO FALLA, EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA, NÉLSON SAMPAIO e JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, que explanando sobre a relação entre os princípios e as normas supralegais, admite que:

Há uma hierarquia no inter-relacionamento desses princípios com outras normas da Constituição Federal e, sobretudo, com outros princípios constitucionais (sintaxe jurídico-constitucional) que põe a lume a maior importância dos seus princípios fundamentais no confronto com outros princípios. [25]

A tese da existência de uma hierarquia dos preceitos constitucionais encontra ressonância, de igual modo, nos escritos do pernambucano IVO DANTAS, a seguir transcritos:

Em nosso modo de entender, a partir da consagração, pelo texto constitucional, de Princípios Fundamentais e de Princípios Gerais voltados para determinado setor, parece-nos possível estabelecer entre ambos uma nova hierarquia. Nesta, os primeiros ocupam o ápice da pirâmide e os segundos uma posição intermediária entre os Princípios Fundamentais e as normas a que chamaríamos de setoriais. [26]

Assim, considerar a posição de destaque que merecem os Princípios Fundamentais, em detrimento dos Princípios Gerais e das normas setoriais, pode ser o ponto de partida para que se considere a viabilidade de uma classificação hierárquica das regras constitucionais.

Com lastro nesta definição, admite-se a existência de princípios hierarquicamente superiores, no corpo da Carta Política brasileira. Logo, não há como se olvidar a possibilidade de hierarquização dos preceitos constitucionais, inclusive abrangendo, em tal conceito, o escalonamento dos comandos normativos supralegais.

Para se chegar a esta conclusão, parte-se, ainda, do conceito de Constituição formal e material, já consagrado e aceito pela doutrina. Constituição material é aquela composta por matérias estritamente relacionadas com a organização do poder, a distribuição da competência, o exercício da autoridade, a forma de governo e os direitos da pessoa humana, coletivamente ou de forma individualizada. Em outras palavras, consubstancia-se em determinados comandos que se dirigem à composição e ao funcionamento da ordem política e que, por conseguinte, não poderiam ser deixados de lado pelo legislador constituinte.

No aspecto, é de bom alvitre transcrever-se os ensinamentos de MARIA HELENA DINIZ:

Infere-se daí que a Constituição, em sentido material, consiste no complexo de normas constitucionais pela sua matéria, isto é, por normas básicas indicativas de como devem ser elaboradas todas as normas gerais. A Constituição, no sentido formal, abrange normas constitucionais que, pela sua forma, embora disciplinem certas condutas de modo imediato, submetem-se a um processo específico de produção ou alteração disciplinado por outra norma constitucional. [27]

Destarte, as normas de cunho materialmente constitucional, assim definidas pela doutrina, constituem o verdadeiro cerne da Carta Magna, tendo em vista que possuem o condão de vincular o Poder Constituinte, no sentido de inseri-las no texto supralegal, seja qual for o momento político de aprovação da Lei Maior.

Já a Constituição formal, por seu turno, vem a ser o texto em si, como um todo, desde o preâmbulo, até o derradeiro comando normativo da Carta Política. Desta forma, há a inclusão, no rol constitucional, de preceitos normativos que não justificam, pelo seu conteúdo, a sua inclusão na Lex Fundamentalis.

No dizer de PAULO BONAVIDES:

As Constituições não raro inserem matéria de aparência constitucional. Assim se designa exclusivamente por haver sido introduzida na Constituição, enxertada no seu corpo normativo, e não porque se refira aos elementos básicos ou institucionais da organização política. Entra essa matéria pois a gozar da garantia e do valor superior que lhe confere o texto constitucional. [28]

No plano da doutrina constitucional européia, o constitucionalista português J. J. GOMES CANOTILHO, seguindo o pensamento do professor ROBERT ALEXY, assim define os aspectos formais e materiais dos direitos fundamentais:

Fundamentalidade formal, geralmente associada à constitucionalização, assinala quatro dimensões relevantes: (1) as normas consagradoras de direitos fundamentais, enquanto normas fundamentais, são normas colocadas no grau superior da ordem jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-se submetidas aos procedimentos agravados de revisão; (3) como normas incorporadoras de direitos fundamentais passam, muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão (cfr. CRP, art. 288º/ d) e e); (4) como normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes públicos constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, acções de controlo, dos órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais (cfr. afloramento desta idéia no art. 18º/1 da CRP). (...) A idéia de fundamentalidade material insinua que o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade. Prima facie, a fundamentalidade material poderá parecer desnecessária perante a constitucionalização e a fundamentalidade formal a ela associada. Mas não é assim. Por um lado, a fundamentalização pode não estar associada à Constituição escrita e à idéia de fundamentalidade formal como o demonstra a tradição inglesa das Common-Law Liberties. Por outro lado, só a idéia de fundamentalidade material pode fornecer suporte para: (1) a abertura da constituição a outros direitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados, isto é, direitos material mas não formalmente fundamentais (cfr. CRP, art. 16º/ 1.º); (2) a aplicação a estes direitos só materialmente constitucionais de alguns aspectos do regime jurídico inerente à fundamentalidade formal; (3) a abertura a novos direitos fundamentais (Jorge Miranda). Daí o falar-se, nos sentidos (1) e (3), em cláusula aberta ou em princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais. Preferimos chamar-lhe "norma com fattispecie aberta" (Baldassare) que, juntamente com uma compreensão aberta do âmbito normativo das normas concretamente consagradoras de direitos fundamentais, possibilitará uma concretização e desenvolvimento plural de todo o sistema constitucional. [29]

Diante de tais conceituações, pode-se afirmar que as normas de cunho material (normas materialmente constitucionais) devem ser admitidas como superiores, em uma escala hierárquica, quando correlacionadas às demais normas inseridas no texto supralegal, mormente àquelas que o são apenas com o intuito de ganhar força normativa, ou ainda possuir maior rigidez nas suas alterações (normas formalmente constitucionais).

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No entender do presente estudo, a partir desta diferenciação é possível afastar-se a aplicação do princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição, partindo-se para uma interpretação circunstanciada das normas constitucionais, não de forma a isolá-las do contexto supralegal, mas dando a cada uma delas a importância que lhe é devida.

Atestando as alegações acima, pode-se citar o exemplo da chamadas cláusulas pétreas. Tais comandos normativos são, inclusive, considerados preceitos superconstitucionais, no sentido de que há a consagração, na própria Carta Magna, da impossibilidade de emanação legislativa no sentido de se alterar as regras elencadas no art. 60, §4º, I a IV, da Constituição Federal de 1988.

Assim, se existem normas constitucionais como as cláusulas pétreas, que possuem um caráter de imutabilidade, advindo da expressa proibição contida no texto supralegal, há que se admitir a sua maior relevância em relação àquelas cujo teor pode ser alterado ou, de igual maneira, suprimido, através de emenda constitucional. As cláusulas pétreas encontram-se, desta forma, em posição hierárquica superior aos demais preceitos constitucionais.

Com referência às cláusulas pétreas, cumpre trazer à baila os escritos de ZENO VELOSO:

O poder constituinte originário pré-exclui alguns temas ou matérias do pofer reformador. A Constituição, portanto, tem um núcleo imodificável, intangível, simbolizado nas chamadas cláusulas pétreas (...) Estes assuntos são considerados da maior importância, de gravidade máxima, protegidos por uma superlegalidade, não podendo estar submetidos aos riscos e perigos de serem abolidos, alterados ou minimizados por revisões ou emendas constitucionais. Daí, serem resguardados com uma cláusula de eternidade (Ewigkeitsgarantien). [30]

Corroborando com os escólios acima transcritos, a Professora LAÍS VIEIRA CARDOSO testifica:

Na nossa Carta Magna estão, portanto, os princípios e garantias fundamentais dos cidadãos, cláusulas pétreas das quais emanam as demais regras, de modo a formar-se um sistema organizado no qual as regras superiores norteiam as dela derivadas dando-lhes o fundamento de existência, tudo na forma de uma pirâmide hierárquica onde as normas inferiores devem ser compatíveis com as superiores em uma harmonia axiológica. O poder das emendas limita-se primordialmente ao respeito às garantias conquistadas pelos cidadãos, resultado de árduas lutas. Não se trata de obrigar uma geração a acatar os anseios das gerações anteriores ou de perpetuar o desenvolvimento da humanidade, e, sim, deve ser visto como uma manifestação da cidadania garantindo respeito aos direitos individuais e coletivos, resultado do reconhecimento das reais necessidades da sociedade e da vontade popular, externada por seus representantes e garantidora dos princípios da segurança jurídica e da certeza do direito. [31]

Ainda acerca das normas intangíveis, faz-se mister destacar o pensamento de ANDRÉ RAMOS TAVARES:

No ordenamento constitucional brasileiro certos princípios e regras receberam tratamento mais "privilegiado", denotando a extrema importância deste conjunto. É o caso dos "princípios sensíveis", que geram a medida excepcional da intervenção federal ou estadual. (...) De outra parte, existem as chamadas cláusulas constitucionais pétreas. Inserem-se na mesma noção de normas de alta relevância, porque, nesse caso, foram dotadas de uma garantia também especial: a imutabilidade. [32]

Com esteio nas afirmações anteriormente expostas, esta brochura entende que há embasamento para se estabeleça uma hierarquia entre os ditames constitucionais, de forma que se reconheça, inclusive, a competência do Supremo Tribunal Federal para exercer o controle de constitucionalidade das regras consideradas inferiores, em respeito às de maior importância. Nos capítulos que se seguem, será abordada a importância dos estudos de OTTO BACHOF para estas conclusões, além da posição do STF em relação à matéria.

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Sobre o autor
Pedro Pontes de Azevêdo

Professor de Direito Civil na Universidade Federal da Paraíba. Mestre em direito pela UFPB. Doutorando em Direito pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Civil-Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AZEVÊDO, Pedro Pontes. Normas constitucionais inconstitucionais oriundas do poder constituinte originário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 200, 22 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4724. Acesso em: 26 abr. 2024.

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