ASPECTOS GERAIS
O princípio da moralidade administrativa, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, adquiriu substancial importância no âmbito da Administração Pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (CF, art. 37, caput, § 4º).
No propósito de conferir maior concretude ao princípio em questão - definido, em essência, como modelo abstrato de conduta a ser seguido - editou-se a Lei nº 8.429/92, sedimentando, no plano de direito positivo, sua juridicidade (força normativa). Com muita propriedade, registra Maria Sylvia Zanella Di Pietro[1] que:
A inclusão do princípio da moralidade administrativa na Constituição foi um reflexo da preocupação com a ética na Administração Pública e com o combate à corrupção e à impunidade no setor público. Até então, a improbidade administrativa constituía infração prevista e definida apenas para os agentes políticos. Para os demais, punia-se apenas o enriquecimento ilícito no exercício do cargo. Com a inserção do princípio da moralidade na Constituição, a exigência de moralidade estendeu-se a toda a Administração Pública, e a improbidade ganhou abrangência maior, porque passou a ser prevista e sancionada com rigor para todas as categorias de servidores públicos e a abranger infrações outras que não apenas o enriquecimento ilícito.
Dito isso, extrai-se da Lei nº 8.429/92 que os atos de improbidade administrativa, elencados em rol meramente exemplificativos (o que deflui do próprio emprego do advérbio notadamente), são considerados aqueles que: 1) importam em enriquecimento ilícito (artigo 9º); 2) causam prejuízo ao erário público (artigo 10), e 3) atentam contra os princípios da Administração Pública (artigo 11). O artigo 12, por sua vez, estabelece as sanções a serem aplicadas aos responsáveis, graduando-a segundo a tipologia do ato de improbidade.
Convém registrar, ainda, que os atos de improbidade podem incidir em mais de um tipo legal. A título de exemplo: a ausência de licitação pode se traduzir em ato que importe em enriquecimento ilícito e ao mesmo tempo em descumprimento a preceitos constitucionais que regem a administração pública, no caso, o princípio da legalidade.
Em arremate, pontue-se que a Lei de Improbidade coaduna com a diretriz republicana do Estado brasileiro, na medida em que estabelece – como diretriz específica (e não mais geral) – um modelo de Administração Pública voltada ao atendimento dos interesses públicos, e não para o fim de satisfação pessoal (ilícita e perniciosa) dos seus agentes públicos que, não raro, deliberadamente associam o patrimônio público como extensão do patrimônio particular.
ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE IMPORTA ENRIQUECIMENTO ILÍCITO
O caput do artigo 9º da Lei nº 8.429/92 estabelece as características principais dos atos que importam enriquecimento ilícito.
Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente [...]
O objeto de tutela do tipo legal é o enriquecimento legítimo, justo e moral. Não existe objeção ao enriquecimento (acumulação de patrimônio), desde que o seja por meios lícitos e honestos.
A obtenção de alguma vantagem patrimonial indevida, tipificada ou não nos incisos, pressupõe necessariamente que o agente preordene voluntariamente sua conduta nessa finalidade, significando, assim, que o dolo (genérico, não necessitando ser especial) é elemento indissociável. A conduta de perceber vantagem econômica para facilitar a alienação de bem público (inciso III), por exemplo, não deixa qualquer margem para possível atuação culposa. O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 678.599/MG, frisou o caráter doloso dos atos que ensejam o enriquecimento ilícito. Confira-se:
[...] 1. Os atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito (art. 9º) normalmente sujeitam o agente a todas as sanções previstas no art. 12, I, pois referidos atos sempre são dolosos e ferem o interesse público, ocupando o mais alto ‘degrau’ da escala de reprovabilidade. Todos são prejudicados, até mesmo os agentes do ato ímprobo, porque, quer queiram ou não, estão inseridos na sociedade que não respeitam.
Portanto, é totalmente incompatível com essa modalidade de improbidade a conduta culposa, uma vez que não faz sentido falar em enriquecimento ilícito obtido pela via imprudente ou negligente.
ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE IMPORTA PREJUÍZO AO ERÁRIO
O artigo 10, caput, descreve a modalidade de ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário público.
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente [...]
O tipo legal tutela a preservação do patrimônio público em sentido amplo, isto é, bens e valores jurídicos, não limitando, somente, ao conceito tradicional de erário, com suas dotações e recursos.
O elemento subjetivo, como consta expressamente do caput, pode instrumentalizar-se na forma de dolo ou culpa. Todavia, afirme-se que mesmo assim é discutível a possibilidade de punição a título de culpa, pois esta não teria, em princípio, gravidade suficiente para ocasionar efetiva lesão ao patrimônio público.
Parece claro que no caso de culpa a conduta do agente deve merecer especial atenção, notadamente no que se refere à análise da intensidade da conduta e da gravidade do resultado. Isso não significa dizer, porém, que o comportamento culposo não enseja resultado danoso (punível, portanto) ao erário público.
Por decorrer da inobservância de um dever de cuidado objetivo, seja pela imprudência, negligência ou imperícia, é indubitável que a conduta culposa revele, no caso concreto, dano material ao erário público, o que, de modo geral, é mesmo exigência inafastável para a caracterização do ato ímprobo sob exame, independente do elemento subjetivo manifestado.
Ademais, sublinhe-se que doutrina e jurisprudência assinalam que a culpa, apta a caracterizar o ato ímprobo, é aquela de natureza grave. No entanto, a aferição da relação de causalidade entre o elemento subjetivo culposo e o dano - que deve ser efetivo (critério objetivo) - possibilitará a aplicação da sanção cabível de forma proporcional, se realmente devida na espécie.
José dos Santos Carvalho Filho[2] leciona, no ponto, que:
Em nosso entender, não colhe o argumento de que a conduta culposa não tem gravidade suficiente para propiciar a aplicação de penalidade. Com toda a certeza, há comportamentos culposos que, pela repercussão que acarretam, têm maior densidade que algumas condutas dolosas. Além disso, o princípio da proporcionalidade permite a perfeita adequação da sanção à maior ou menor gravidade do ato de improbidade. O que se exige, isso sim, é que haja comprovada demonstração do elemento subjetivo e também do dano causado ao erário.
Sobre a presença da prova inequívoca do prejuízo, o Superior do Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 842.428/ES, averbou que:
[...] 4. Embora mereçam acirradas críticas da doutrina, os atos de improbidade do art. 10, como está no próprio caput, são também punidos a título de culpa, mas deve estar presente na configuração do tipo a prova inequívoca do prejuízo ao erário.
O enquadramento da conduta culposa como ímproba, na tipologia sob estudo, é compatível com o texto constitucional, que em caráter vinculante impôs à Administração Pública o dever de obediência aos princípios inscritos no caput do artigo 37 (incluindo, especialmente, a moralidade). Afinal, o dever de zelo pela coisa pública requer que o agente não trate com incúria e desmazelo o patrimônio estatal, pois, ao assumir um cargo, emprego, função ou mandato público, coloca-se inevitavelmente na posição de garante da coisa pública (res publica).
ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE ATENTA CONTRA OS PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS
Os atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública importam em violação dos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições.
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente [...]
Além da violação dos deveres específicos retro elencados, também configurará a improbidade administrativa a violação aos princípios gerais da administração pública inscritos no artigo 37, caput, da Constituição da República, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Interessante verificar que o enquadramento do agente na prática de um ato ímprobo que acarreta enriquecimento ilícito ou que importe lesão ao erário, ocasiona, via de consequência, violação ao princípio da legalidade.
Bem por isso, Pazzaglini[3] assevera que
O art. 11 constitui soldado de reserva (expressão do saudoso jurista Nelson Hungria), configurando-se pelo resíduo na hipótese da conduta ilegal do agente público não se enquadrar nas duas outras categorias de improbidade.
O artigo sob apreço é considerado residual em relação aos artigos 9º e 10, o que significa que, sempre que ocorra a improbidade por enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, haverá inevitavelmente violação a princípios administrativos. Destarte, quando não for possível enquadrar o ato de improbidade naquelas duas primeiras modalidades, emprega-se o artigo 11 como regra de reserva.
O objeto da tutela constitui a observância dos princípios constitucionais. Assim, uma vez que a caracterização da improbidade resulta em ofensa aos princípios, é de se exigir do agente o dolo; deve, pois, estar imbuído de má-fé. Cuida-se do dolo genérico, bastando que a simples vontade consciente de aderir à conduta produza os resultados vedados pela norma jurídica, conforme entendimento já averbado pelo Superior Tribunal de Justiça (EDcl no Ag1.092.100, RS, Relator o Ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 31.5.2010).
Em razão da abstração dos princípios, exige-se que sua ofensa pelo agente público seja clara e devidamente comprovada, caso contrário não se cuidará de ato de improbidade dessa natureza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se admite a denominada responsabilização objetiva do agente por ato de improbidade administrativa, sendo sempre exigido o dolo ou culpa, a depender da tipologia.
A aplicação da lei de improbidade reclama do julgador bom-senso, sobretudo na pesquisa do elemento subjetivo do agente, considerando, ainda, que existem infrações que, sob o aspecto material, são consideradas meras irregularidades, passíveis de correção adequada na própria esfera administrativa e/ou cível.
Pontue-se, ademais, que a própria severidade das sanções previstas na Constituição e na Lei de Improbidade Administrativa demonstram que o objetivo foi o de punir infrações que tenham o mínimo de gravidade e repercussão, por apresentarem consequências danosas para o patrimônio público (em sentido amplo), ou propiciarem benefícios indevidos para o agente ou para terceiros. Portanto, curial que a aplicação das sanções observe o princípio da razoabilidade, notadamente sob o seu aspecto de proporcionalidade entre meios e fins, como forma de viabilizar a prevalência da justiça.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 19ª Edição, 2008.
DA SILVEIRA, Clariana Oliveira. Um breve histórico da improbidade administrativa no Brasil. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=2192>. Acesso em: 30 ago. 2011.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 4. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 6ª ed., Impetus: 2012.
MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 22ª ed., Saraiva: 2009.
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada. São Paulo: Atlas, 2002. p.55, p.73, p.75, p.101.
[1]DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, op. Cit., p. 710.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos.. Op. cit., pág. 950.
[3]PAZZAGLINI FILHO, Marino. Op. cit.,, p.55.