O Estatuto da pessoa com deficiência e o sistema da incapacidade civil: rompendo as barreiras do estigma

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A efetividade da Lei 13.146/15: O estigma da presunção absoluta da incapacidade da pessoa com deficiência merece ser perpetuado?

Importa salientar que não se pretende com o presente artigo discorrer acerca de todas as alterações normativas introduzidas através da Lei 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão da pessoa com deficiência – Estatuto da pessoa com deficiência), tampouco explorar e esgotar os efeitos e consequências das relações jurídicas em que figurem a pessoa com deficiência. O objetivo precípuo, o qual se almeja é despertar no leitor a possibilidade de “se deixar permitir”, de modo a enxergar as inovações legislativas sem o caráter estigmatizante e pré-constituído de que a pessoa com deficiência é incapaz através de uma presunção absoluta, impedindo desta forma, a eficácia da referida Lei.

Com o advento do Estatuto, considerada a amplitude do alcance de suas normas, houve uma significativa e profunda mudança, cujos efeitos e reflexos poderão ser percebidos nos mais variados setores do conhecimento jurídico. No que tange ao sistema da incapacidade civil, temática que se propõe abordar, nota-se, ao menos, à primeira vista, uma certa inquietude dos estudiosos civilistas.[1]

Ressalte-se que as hipóteses de incapacidade absoluta e relativa (artigos 3º e 4º do CC/02), foram redefinidas, de modo a excluir do rol de incapazes as pessoas com deficiência mental.[2]

Em assim sendo, a nova estrutura da incapacidade civil se apresenta da seguinte forma: o art. 3º do Código Civil, que elenca as hipóteses de incapacidade absoluta, teve todos os seus incisos revogados, mantendo-se, por sua vez, como única causa de incapacidade absoluta, aquela decorrente de uma limitação orgânica, isto é, em razão da idade (os menores de 16 anos), chamados de menores impúberes.

Art.3º “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os                        menores de 16 (dezesseis) anos. ”  

Pela nova redação do art. 4º do Código Civil, permaneceu no inciso I a incapacidade relativa dos menores púberes (entre 16 anos completos e 18 anos incompletos); o inciso II retirou do rol de relativamente incapazes os que por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido, referindo-se apenas aos ébrios habituais e os viciados em tóxicos; o inciso III suprimiu os excepcionais sem desenvolvimento mental completo desse rol e albergou, por sua vez, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir a sua vontade e, por fim, permaneceu a incapacidade relativa em razão da prodigalidade.

Art. 4º “São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:

             I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;

             II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico;

III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;

             IV – os pródigos.

Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. ”

Alguns doutrinadores consideraram essas profundas mudanças verdadeiras “aberrações jurídicas”[3], que destruiram toda a sistemática protetiva da incapacidade já consolidada há anos. Outros vislumbraram um efeito “devastador”[4] no sistema, não através de uma visão depreciativa, mas devastador no sentido da “inovação transformadora”.

É certo que a sociedade não está acostumada a aceitar as mudanças impactantes com tanta facilidade, seja por comodismo, seja pela dificuldade de desconstrução conceitual ou ainda de reconstrução ideológica. No entanto, importa realçar que de nada adianta uma “devastadora” alteração legislativa se a nossa mente continuar exatamente a mesma.

A norma que se abstrai do novo texto legal requer o esforço e participação do jurista e de toda a sociedade para a sua devida interpretação e aplicação, e particularmente, nesta seara, faz-se mister avançar além de conceitos sedimentados, que já mereciam há tempos serem repensados a fim de garantir um verdadeiro plano isonômico no que toca à inclusão e participação ativa da pessoa com deficiência no exercício e na tutela dos seus direitos.

Não é de agora que esse entendimento deveria ser suscitado, pois o contexto social, histórico e político, o qual vivemos já ensejava uma visão humanista do legislador desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Destaque-se o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, que exigiu uma releitura dos institutos fundamentais do Direito Civil à luz dos princípios constitucionais pregando a realização da personificação e tutela da dignidade da pessoa humana, a solidariedade social e a isonomia.

Vale destacar que o Direito necessita de seus aplicadores para alcançar a evolução dos fatos sociais. A interpretação de uma norma precisa respeitar os valores da época em que vive o intérprete, e, portanto, não se atingirá a efetividade da norma que inova o sistema da incapacidade civil se não nos permitirmos romper as barreiras do “desconhecido”. De sorte que, se assim fosse até hoje não encontraríamos efetividade na norma que garante a isonomia entre o homem e a mulher, a igualdade de filiação independente de relação conjugal ou de origem e estaríamos ainda presos ao conceito pejorativo adotado pelo Código Civil de 1916 que elencava como absolutamente incapazes “os loucos de todo o gênero”.

E nesta linha de intelecção, reconheça-se que desempenhamos um importantíssimo papel para impedir que o estigma da incapacidade da pessoa com deficiência seja perpetuado como uma presunção absoluta.

Esta nova compreensão da capacidade civil traduz a valorização da dignidade e enseja um novo comportamento social, de modo que não cabe somente reabilitar a pessoa com deficiência para se adequar à sociedade,  mas por evidente, torna-se urgente reabilitar a sociedade para eliminar todas as barreiras de exclusão, permitindo em caráter inclusivo ao deficiente, através do exercício da autonomia e do direito à autodeterminação, poder escolher, observadas as suas limitações naturais, como irá exercer os atos da vida civil.

Assim, não cabe mais à Lei afirmar através de uma presunção absoluta que a pessoa com deficiência mental é incapaz. Importa salientar que, através da nova interpretação legal, cabe à própria pessoa com deficiência exercer plenamente a sua capacidade civil, dentro das suas limitações naturais, ainda que para isso necessite de institutos protetivos. Com o mesmo raciocínio, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald defendem que “não se justifica, em absoluto, impor a uma pessoa com deficiência o enquadramento jurídico como incapaz, por conta de um impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial. Toda pessoa é capaz, em si mesma. E, agora, o sistema jurídico reconhece essa assertiva”.[5]

Advirta-se, todavia, que embora tenha sido reconhecida a sua plena capacidade, em determinadas situações não se pode olvidar a realidade fática, isto é, a existência de impedimentos que possam obstruir a sua participação plena e efetiva. Diante destas hipóteses, a pessoa com deficiência não terá legitimação para a prática de certos atos jurídicos específicos, em razão de suas limitações naturais[6]. Corroborando este entendimento, é digno de realce o princípio da igualdade substancial, o qual reclama tratamento diferenciado somente quando efetivamente haja razoável situação de desigualdade.

O exercício do direto à singularidade, isto é, o direito de ser diferente, jamais pode ser obstado, nem tampouco imbuído de caráter discriminatório e ofensivo. É salutar o respeito às diferenças e a sua efetiva tutela.[7]

É digno de atenção destacar que a intenção do legislador não é desconsiderar a eventual vulnerabilidade da pessoa com deficiência nas relações contratuais, nem tampouco, desamparar aqueles que não consigam se autodeterminar e exprimir a sua vontade. Sendo assim, requer, destaque-se mais uma vez, o esforço do intérprete para encontrar soluções razoáveis às eventuais situações jurídicas que possam ser lesivas à pessoa com deficiência, à luz da aplicação do princípio da vedação do retrocesso, da confiança e da boa-fé objetiva.

Neste ponto, é oportuno reconhecer que alguns abalos sistêmicos ocorreram com as alterações normativas, sobretudo no que toca ao artigo 4º, inciso III do Código Civil, no entanto, não é razoável obstruir o raciocínio jurídico a partir de críticas apressadas, sem buscar ao menos uma interpretação construtiva capaz de apresentar soluções para os eventuais problemas. Com aguçado senso crítico, o autor Cristiano Chaves[8] assevera com maestria que:

 “o ambiente jurídico, portanto, exige um comportamento crítico do operador do Direito, não apenas voltado para apontar defeitos ou imperfeições, mas, sobretudo, para a formação de uma nova visão do fenômeno civilista, em compasso com o mundo contemporâneo”. Reconhece ainda o referido autor que “a cidadania é efetivamente, o motor de impulsão que projeta a dimensão da pessoa humana em seus valores e direitos fundamentais. Não mais, porém, compreendida como simples sujeito de direitos virtuais, porém como titular de um patrimônio pessoal mínimo que lhe permita exercer uma vida digna, a partir da solidariedade social e da isonomia substancial”.

Em linha de coerência com o que se afirma, o Estatuto da pessoa com deficiência acrescentou ao Código Civil (art. 1783 – A) um novo procedimento de jurisdição voluntária, chamado “tomada de decisão apoiada”, no qual se permite que a pessoa com deficiência possa eleger duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre os atos da vida civil. Este instituto é uma alternativa para a curatela, que só deverá ser requerida como ultima ratio e afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

Em sendo assim, a curatela constitui medida extraordinária, proporcional às necessidades e circunstância de cada caso. Deve a sentença judicial especificar as razões e motivações de sua definição, precisando individualizar os atos que estão sendo privados daquela pessoa, na proteção dos seus interesses e da sua dignidade. Por derradeiro, cabe frisar a existência da curatela compartilhada (art. 1775 – A, CC) que também é possível, com a inovação legislativa.

Torna-se mister, neste ponto, um comprometimento do intérprete e jurista contemporâneo com a ação de curatela, de modo a compreendê-la como um instrumento capaz de promover a proteção e dignidade da pessoa, e não como uma forma reducionista da sua vontade. Merecem destaque as palavras dos notáveis Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

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“Não se pode pensar que a simples decretação da curatela, por si só, já é suficiente para proteger um incapaz. Ao revés, deve o juiz reconhecer a possibilidade do exercício de determinadas situações, fundamentalmente existenciais, pelo incapaz, garantindo os seus direitos e a sua cidadania. Tanto é verdadeiro que o art. 758 do Código de Processo Civil de 2015 é alvejante ao disparar que o ‘curador deverá buscar tratamento e apoio apropriados à conquista da autonomia pelo interdito’, deixando antever uma preocupação com a situação existencial da pessoa, ao estimular, a toda evidência, a sua recuperação da plena capacidade e autodeterminação de sua vontade”.[9]

Ressalte-se, por fim, que o intuito do presente artigo não é fazer acreditar que vivemos no “país das maravilhas”, nem tampouco negar a imperfeição da natureza humana. É inclusive, pensando na atual conjuntura social que estamos enfrentando com as novas mutações genéticas que ainda representam uma profunda incógnita, que é preciso reconstruir conceitos sedimentados no passado, libertando-nos da força do estigma para poder descortinar o amanhã. São latentes os gravíssimos casos de microcefalia que se expandem de forma assustadora, podendo desencadear impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial e se assim, não nos deixarmos permitir, poderemos ter futuramente uma geração de “incapazes”.

Cabe repetir as palavras de Rodrigo da Cunha[10] ao afirmar que a nova compreensão da capacidade civil é uma boa tradução e incorporação da noção e valorização da dignidade e dignificação do humano e alguns passos adiante da noção original de Immanuel Kant em sua clássica obra Fundamentação da Metafisica dos Costumes, quando afirmou “as coisas têm preço, e as pessoas dignidade”.

Arrematando todo o exposto, necessário se faz repensar o hoje para reconhecer a capacidade plena a favor das pessoas com deficiência, com a consequente inversão da carga probatória, devidamente justificada quando as suas limitações naturais lhes impedirem o exercício pleno.


[1] Importa destacar as palavras do mestre visionário Paulo Lôbo: “Após cinco séculos de total vedação jurídica, no Direito brasileiro, tudo mudou com o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao direito interno brasileiro por meio do Decreto Legislativo 186, de 9.7.2008 e por sua promulgação pelo Decreto Executivo 6.949, de 25.8.2009. Finalmente, a Lei 13.146, de 6.7.2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), regulamentou a Convenção” (LOBO, Paulo Luís Neto. Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes, disponível em http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/processo-familiar-avancos-pessoas-deficiencia-mental-nao-sao-incapazes).

[2] De acordo com a redação original do Código Civil: Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I- os menores de 16 anos; II – os que por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; II - os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III - os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; IV - os pródigos. Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.

[3] Estarrecidos diante da Lei, Vitor Frederico Kümpel e Bruno de Ávila Borgarelli, destacam que “infelizmente, a lei 13.146/2015, ao mutilar os artigos 3º e 4º do Código, desguarnece justamente aquele que não tem nenhum poder de autodeterminação. Trata-se de “autofagia legislativa”.  (BORGARELLI, Bruno de Ávila; KÜMPEL, Vitor Frederico. As aberrações da lei 13.146/2015, disponível em http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI224905,61044-As+aberracoes+da+lei+131462015).

[4] Neste sentido, Pablo Stolze explica o imenso alcance da mudança normativa que se descortina através do texto O Estatuto da Pessoa com Deficiência e o sistema jurídico brasileiro de incapacidade civil, disponível em: http://jus.com.br/artigos/41381/o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-e-o-sistema-juridico-brasileiro-deincapacidade-civil.

[5] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 14 ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 328.

[6] Neste diapasão, reconhecendo a capacidade legal da pessoa com deficiência, Nelson Rosenvald enfatiza que “mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil” (ROSENVALD, Nelson. Tudo que você precisa para conhecer o Estatuto da pessoa com deficiência, disponível em http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11-perguntas-e-respostas-tudo-que-voce-precisa-para-conhecer-o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia/).

[7] Com o mesmo pensar, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald ressaltam o direito à singularidade e asseveram que a “deficiência, por si só, não gera incapacidade jurídica; e nem toda pessoa incapaz juridicamente é, necessariamente, deficiente” (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. op. cit., p. 329).

[8] FARIAS, Cristiano Chaves de. Redescobrindo as fronteiras do Direito Civil: uma viagem na proteção da dignidade humana. Texto publicado no Jornal A Tarde, Salvador, em 14.11.2002.

[9] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB, op. cit., p. 366.

[10] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Capacidade, dignidade e a Lei 13.146/6.7.2015 em Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2015.

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Sobre a autora
Clarice Pereira Bezerra de Abreu

Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas pela Universidade do Minho (Braga), Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Clássica de Lisboa (2010), graduada pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL (2006), Coautora do livro Escritos de Direito das Famílias: uma perspectiva luso-brasileira, advogada e professora universitária na Faculdade Estácio de Sá de Alagoas - FAL .

Informações sobre o texto

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