Direito contido ou justiça cega?

Leia nesta página:

A intenção, aqui, é mostrar que a função social do Direito esbarra em uma justiça cega às particularidades de cada caso, inacessível e contida.

Resumo: Este artigo discute a questão da função social do Direito, qual seja a de disciplinar as relações sociais para a promoção da paz coletiva, em contraponto à questão da justiça cega e do Direito contido. A intenção, aqui, é mostrar que a função social do Direito esbarra em uma justiça cega às particularidades de cada caso, inacessível e contida. A metodologia utilizada foi a de análise e cruzamento da literatura pertinente ao problema em comento, chegando-se à conclusão de que a função social do Direito resta inaplicável em razão de uma pluralidade de interesses diversos do bem coletivo.

Palavras-chave: função social do Direito, justiça cega, Direito contido, acesso à justiça.

 

Abstract: This article discusses the question of the social function of law, which is to discipline the social relations for the promotion of collective peace, as opposed to the question of blind justice and law contained. The intention here is to show that the social function of the law comes up against a blind justice to the particularities of each case, inaccessible and contained. The methodology used was the analysis and cross the relevant literature to the problem under discussion, we came to the conclusion that the social function of law remains inapplicable because of a plurality of different interests of the collective good.

Keywords: social function of law, blind justice, law contained, access to justice.

CONTEÚDO (INTRODUÇÃO E DESENVOLVIMENTO TEXTUAL)

O direito (latu sensu) surge com a nobre missão de ordenar as relações sociais, portanto, a prevenção de conflitos, composição e promoção do bem comum, representam a função social do direito.

Mais precisamente, em uma sociedade plural, diversificada, os conflitos de interesses são inevitáveis, e para dirimir esses conflitos é necessária uma ordem que substitua a justiça pelas próprias mãos. O direito vela pela superação dos conflitos inerentes à condição social do homem, objetivando sempre uma resolução pacífica.

 A função social do direito é o fim comum que a norma jurídica deve atender dentro de um ambiente que viabilize a paz social. O direito em todo o tempo possuiu uma função social. Se ele, o direito, não atinge o seu desiderato não há como disciplinar as relações jurídicas, não cumprindo, portanto, a sua função social.

Por intermédio da função social do direito, busca-se harmonizar os direitos e garantias do homem e do cidadão. Por meio dela, se objetiva efetivar a norma jurídica e as decisões judiciais, resolvendo os conflitos sociais e entregando a cada um o bem da vida.

Não obstante, o direito encontra percalços na louvável tarefa de organizar e garantir o bem social.

A pluralidade de interesses e diversidade de raças, etnias, religiões, opiniões, caráter, etc., acarretam em conflitos. Estes, muitas vezes, ocasionam a inaplicabilidade do fim social do escopo do direito.

A partir do momento em que o direito não mais consegue harmonizar as relações sociais, visando o bem comum, é gerado um enorme transtorno social.

O direito reprimido, represado ou contido, ocasiona um imenso desarranjo social, a partir do momento em que não se torna capaz de garantir o bem-estar do povo, e revelando a sensação de impunidade em toda a sociedade. 

Noutra perspectiva, a justiça – justitia - afigura-se como a qualidade do que está em conformidade com o que é direito, justo e correto. É o princípio basilar que mantém a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal.

A deusa da justiça, símbolo de maior representação do seu conceito, cujo nome é Têmis ou Thémis, é a deusa da justiça da mitologia grega. Têmis nem sempre possuiu os olhos vendados, era a representação de uma divindade de olhar austero, porém sempre junto da balança, que simboliza o equilíbrio e a espada, como o poder.

No século XVI foram os alemães os responsáveis por deixar Têmis cega – vedada – para indicar a imparcialidade.

Com o passar dos anos surge então a problemática da Justiça. Quem nunca ouviu falar que a Justiça é cega?

Sua representação em uma mulher, segurando numa mão a balança e em outra a espada, com os olhos vendados. Idealmente, a Justiça de olhos vendados retrataria uma justiça imparcial, que não visualiza sobre quem recai o seu julgamento, apenas julga. Os três elementos deveriam se harmonizar: a balança que busca o equilíbrio, a espada que aplica o direito pela força e os olhos vedados, prevenindo-se de qualquer privilégio.

Entretanto, o ideal previsto no bojo do que objetiva a justiça e sua representação maior, Têmis, são efetivados? Ou seja, o equilíbrio, a imparcialidade e a força são ponderadas em todas as decisões do Estado? E quais as consequências disso?

Antes de adentrar no mérito dos quesitos acima, faz-se necessário uma breve explanação acerca do acesso a essa justiça.

Ora, o acesso à justiça é um direito social fundamental, que contempla todas as garantias destinadas a promover a efetiva tutela dos direitos fundamentais.

Os doutrinadores Cappelletti e Garth ao enfrentarem o tema, assim entendem:

“A expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individualmente e justos” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p.08).

Em um prisma mais abrangente, o acesso à justiça é visualizado igualmente como uma justiça eficaz, acessível a todos. Nesse sentido, Cappelletti e Garth afirmam que:

“O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p.12).

Pois bem.

Quando a justiça, em virtude do reprimido direito que não mais consegue harmonizar todas as relações sociais, não garante o devido provimento jurisdicional (justo, justiça), ou ainda, quando não age com vistas a tutelar os direitos e garantias do povo, ou quando, os seus membros estão inteiramente infectados com manobras desvirtuadas que não proporcionam o escopo para o qual existe, o resultado-fim é uma sociedade doente, essencialmente conflituosa, incrédula e fadada ao erro.

Indubitavelmente, o complexo sistema estatal que ordena e efetiva a justiça, é repleto de vícios que desencadeiam uma série de transtornos sociais. Nesse diapasão, por exemplo, valendo-se de brechas e possibilidades em um ordenamento jurídico, a efetivação da justiça pode ficar completamente comprometida.

A justiça cega acaba por contribuir para que o direito seja cada vez mais contido ou reprimido, no momento que, não consegue através de um provimento estatal ordenar e harmonizar as relações sociais. 

A exemplo disso, infelizmente temos visto violências terríveis sancionadas pela Justiça, quando a espada de um Policial Militar expulsa violentamente mil e quinhentas famílias pobres dos seus lares, confiscando seus bens, e deixando-os sem caminho na vida, como ocorreu em São Paulo recentemente.

Voltamos a perceber a Justiça cega e de espada nas mãos quando escolhe quem ver e quais súplicas ouve.

Nesse sentido, parece que essa Justiça só escuta as súplicas do Poder Executivo, como ocorreu em São Paulo, onde o Tribunal de Justiça condenou o Sindicato dos Professores à multa no importe de R$ 600.417,18, além de danos morais no valor de R$ 1,5 milhão e, pasmem, proibiu perpetuamente de realizar qualquer manifestação que possa atrapalhar o trânsito, em virtude da greve dos professores no Estado visando melhorias.

A sociedade fica à mercê de um complexo sistema que, na teoria, deveria garantir a justiça, porém, acabam, por inúmeras vezes, por intermédio da justiça cega, que não consegue ver as idiossincrasias em cada caso concreto, que fecha os olhos para a desigualdade social e histórica, ou melhor, abre os olhos para tal indagação, ou o homem “rico” é julgado e tratado da mesma forma que o “pobre”?

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A exemplo do mencionado anteriormente, Antônio Marcos Pimenta Neves era diretor do jornal O Estado de São Paulo quando em agosto de 2000 assassinou a sangue frio sua ex-namorada, a também jornalista Sandra Gomide, o crime foi motivado pela rejeição da ex-companheira.

Em contrapartida, Lindemberg Alves, era um jovem sem antecedentes criminais, na época com 22 anos, em outubro de 2008 fez sua ex-namorada, Eloá Pimentel, de refém juntamente com uma amiga, durante cinco dias, acabou atirando na amiga e assassinando Eloá com um tiro na cabeça, o motivo foi o mesmo, a rejeição da ex-namorada.

Pimenta Neves era rico, um jornalista conhecido e de sucesso. Lindemberg um pobre rapaz de periferia, motoboy sem muito futuro. Ambos são condenados. A sentença de Pimenta Neves demorou 6 anos para ser prolatada. A de Lindemberg, pouco mais de 3. Desde o cometimento do crime, Neves ficou apenas 7 meses na cadeia e ganhou o direito de responder ao processo em liberdade. O motoboy passou os 3 anos na cadeia sem direito algum. Pimenta foi condenado a 19 anos. Lindemberg a 98.

Eis que surge o seguinte quesito: o que diferencia o jornalista Pimenta Neve do motoboy Lindemberg Alves? Suas condições sociais? Sim! Mas o que os diferencia mesmo é o olhar que a justiça brasileira teve para cada um deles em razão disso. Nesses dois casos, mais cega para um do que para o outro, provando mais uma vez que a justiça não é tão deficiente visual quanto os togados dizem ser.

CONCLUSÃO

Pelo apresentado, é possível verificar que o Direito vem esvaindo-se de sua finalidade: manter uma unidade social coesa. Após explanado o tema, é possível observar que o Direito, detentor dos meios necessários para manter a paz social, através de seu instituto maior, a justiça, mostra-se desgastado.

A sociedade como um todo precisa ter contensão de direitos e por quê? Porque, como exposto, trata-se de uma pluralidade de raças, ideologias, religiões, opções sexuais, que juntos formam um mesmo corpo social e este corpo precisa de regras, de contensão e cabe ao Estado através da aplicabilidade do Direito, com o uso da espada e da balança da Deusa Têmis, manter toda esta estrutura multicultural coesa, garantindo a paz social na nação.

A partir do momento em que esta unidade social esvai-se, o Direito, perde sua finalidade. Por consequência, a justiça perde sua venda e passa a tratar os desiguais de forma desigual, tornando-se evidente que a sociedade está doente, visto que o direito é reflexo de sua sociedade. No entanto, a sociedade doente, segrega e cada grupo social entra em conflito com o grupo vizinho em busca de anseios particulares. Neste momento, a justiça passa a atender interesses pessoais e não mais venda os olhos à desigualdade, tornando-se submissa a jogo de poder e interesses particulares, causando discrepâncias como nos exemplos outrora trazidos.

A nação para ser consistente precisa de uma sociedade forte, e quanto a isso, cabe ao direito manter a força social, caracterizada pela sua unidade. Em uma sociedade tão diversificada quanto a nossa, um pouco de contensão de direitos não atrapalharia.

Sabemos que o direito contido acarreta inúmeros prejuízos a toda a coletividade, desenrolando em uma série de transtornos sociais, conforme explicitado, o direito perde, em um dado momento, a sua função social mais louvável, harmonizar as relações sociais.

A partir de então, o remédio adequado não poderia estar em mãos melhores do que com a Justiça, que ideologicamente, resolveria os litígios com vistas a analisar a proporcionalidade, a imparcialidade, a ponderação de princípios, etc., no entanto, a cegueira da Justiça acaba por contribuir nesse processo de enxovalhar o escopo do direito e da própria Justiça.

A justiça dura para todos é louvável, no entanto, complicado é quando a mesma se torna cega para a isonomia.

REFERÊNCIAS

 

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.p 168.

WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna, In: Participação e processo, São Paulo, Ed. RT, 1988.

GREGO, Rogério. Direito Penal do Equilíbrio: uma visão minimalista do Direito Penal. 4. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2009.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Sidney Dias Dantas

Acadêmico em Direito<br>Técnico Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos