I – A desapropriação no ordenamento jurídico brasileiro
A desapropriação é forma originária de aquisição da propriedade (Celso A. B. De Mello, Curso de Direito Administrativo, 14ª. ed. São Paulo. Malheiros, 2000, p. 728), pela qual o Estado ou quem lhe faça as vezes exclui um bem do patrimônio do titular, mediante certa contra-prestação em objeto economicamente apreciável (no caso brasileiro, a desapropriação se faz em dinheiro e/ou em títulos públicos). Todas as obrigações, direitos ou ônus reais que incidam sobre o bem desapropriado sub-rogam-se no valor do preço do bem desapropriado.
A desapropriação pode fundar-se na utilidade ou necessidade públicas ou no interesse social, de acordo a hipótese legal que ocorrer. A desapropriação por necessidade e utilidade públicas encontram-se reguladas pelo Decreto-Lei n° 3365/41(Mello, ob.cit. p. 728), com suas sucessivas alterações, representando o texto básico da desapropriação no direito brasileiro. Há, ainda, legislação espaça tratando da matéria, a qual não abordaremos neste pequeno texto, no entanto, a legislação fundamental sobre a matéria é aqui referida.
A desapropriação por interesse social, em caráter geral, encontra-se prevista na Lei n° 4.132, de 10 de setembro de 1962, a qual, expressamente, se reporta ao Decreto-Lei n° 3.365/41, como se observa pela leitura do seu Art. 5º: "No que esta lei for omissa, aplicam-se as normas legais que regulam a desapropriação por utilidade pública, inclusive no tocante ao processo e à justa indenização devida ao proprietário."
O texto constitucional, por seu turno, prevê no art. 184 que a União possui a competência privativa para desapropriar, por interesse social, para fins de reforma agrária, imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. Visando regulamentar o referido dispositivo constitucional foram editadas a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 e a Lei Complementar nº 76 de 06 de julho de 1993, que instituiu o rito sumário do referido processo de desapropriação.
Todos os entes políticos e até alguns entes administrativos [O Decreto-Lei nº 512, de 21 de março de 1969 autoriza o DNER a declarar de utilidade pública "bem ou propriedade pra efeito de desapropriação e afetação a fins rodoviários."(Art. 1º)], bem como as concessionárias de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas de poder público, poderão promover desapropriações, por utilidade pública mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato.(Art. 3º do Decreto-Lei nº 3.365/41).
A desapropriação por interesse social, salvo para fins de reforma agrária, que é privativa da União, pode ser declarada, por ato da União, dos Estados-Membros, Distrito Federal ou dos Municípios(Mello, ob. Cit. p. 732), de acordo com a hipótese legal.
II - O interesse da previdência social
O Decreto-Lei nº 3.365/41 autoriza que 80% dos valores depositados pelo desapropriante podem ser levantados pelo desapropriado, ainda que o mesmo discorde do preço oferecido, do valor arbitrado ou fixado pela sentença ou mesmo, quando o valor tenha sido depositado no início da demanda. Em contrapartida o desapropriado deverá demonstrar, entre outros requisitos, a prova de quitação das dívidas fiscais.(Art. 34).
É óbvio que entre as dívidas fiscais deve estar contemplada a dívida tributária previdenciária. É costume, no entanto, que no processo de desapropriação o desapropriado requeira a liberação dos valores apresentando, a quitação das dívidas tributárias da União, do Município e do Estado, olvidando das dívidas previdenciárias.
O art. 6º § 1º da Lei Complementar nº 76/83 também prevê a quitação das dívidas tributárias para os fins de liberação de 80% do valor depositado pelo ente desapropriante. Eis o texto legal:
"Art. 6º
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§ 1º Inexistindo dúvida acerca do domínio, ou de algum direito real sobre o bem, ou sobre os direitos dos titulares do domínio útil, e do domínio direto, em caso de enfiteuse ou aforamento, ou, ainda, inexistindo divisão, hipótese em que o valor da indenização ficará depositado à disposição do juízo enquanto os interessados não resolverem seus conflitos em ações próprias, poderá o expropriando requerer o levantamento de oitenta por cento da indenização depositada, quitado os tributos e publicados os editais, para conhecimento de terceiros, a expensas do expropriante, duas vezes na imprensa local e uma na oficial, decorrido o prazo de trinta dias." (Renumerado pela LCP 88, de 23/12/96)
A Lei que trata do rito sumário da desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, expressamente, exige a quitação de tributos para que os 80% dos valores depositados pelo desapropriante sejam levantados pelo desapropriado.
É fato, no entanto, que a jurisprudência tem se negado a liberar os valores depositados quando o desapropriado não comprova o pagamento dos tributos, no entanto, pela análise de diversos precedentes judiciais, verifica-se que a dívida tributária previdenciária, não é referenciada, como se estivesse fora da previsão legal.
Exigindo a quitação dos tributos em processo de desapropriação registra-se o seguinte precedente:
"Acórdão Origem: TRIBUNAL - QUINTA REGIAO
Classe: AG - Agravo de Instrumento – 44916
Processo: 200205000230508 UF: PE Órgão Julgador: Primeira Turma: Data da decisão: 12/12/2002 Documento: TRF500066121
Fonte: DJ - Data::24/04/2003 - Página::447 Relator(a) Desembargador Federal Paulo Machado Cordeiro Decisão: UNÂNIME Ementa: ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. IMÓVEL URBANO. UTILIDADE PÚLICA. DEPÓSITO. LEVANTAMENTO DE 80%. IMPOSSIBILIDADE. IPTU. INADIMPLÊNCIA. - A DECISÃO AGRAVADA INDEFERIU O PEDIDO DE LEVANTAMENTO DE 80% DO DEPÓSITO DO VALOR OFERTADO, EM FACE DE DÉBITOS ALUSIVOS AO IPTU E TAXAS INCIDENTES SOBRE O IMÓVEL OBJETO DE DESAPROPRIAÇÃO. - NÃO RESTOU COMPROVADO OS REQUISITOS DO ART. 34 DO DECRETO 3.365/41, QUAIS SEJAM, A PROVA DE PROPRIEDADE, DE QUITAÇÃO DE TRIBUTOS E A PUBLICAÇÃO DE EDITAIS, COM PRAZO DE 10 DIAS, PARA CONHECIMENTO DE TERCEIROS. - ENQUANTO USUFRUI DO BEM, OU SEJA, ANTES DA IMISSÃO NA POSSE PELO ENTE PÚBLICO, CABE AO EXPROPRIADO O RECOLHIMENTO DO IPTU. NÃO SUBSISTE, ASSIM, A ARGUMENTAÇÃO DO AGRAVANTE. - AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO.
Data Publicação: 24/04/2003"
III – A caracterização das contribuições previdenciárias como tributos
O conceito de tributo na vigência do atual texto constitucional alcança as chamadas contribuições previdenciárias. Nesse sentido convém invocar a lição segura de Sacha Calmon Navarro Coelho: "Dentre as sociais ressaltam as previdenciárias, pagas por todos os segurados proporcionalmente aos seus ganhos, para garantirem serviços médicos, auxílios diversos e aposentadorias. Estas são as verdadeiras contribuições que podem ser incluídas na espécie dos tributos vinculados a um atuação específica do Estado relativamente à pessoa do contribuinte."(Curso de Direito Tributário Brasileiro, 6. ed. Rio de Janeiro. Forense, 2000, p. 404). Hugo de Brito Machado (Curso de Direito Tributário, 9ª. Ed. São Paulo. Malheiros, 1996, p. 46/47), também assim se posiciona: "Temos portanto, em nosso Sistema Tributário, cinco espécies de tributo, a saber: os impostos, as contribuições de melhoria, as contribuições especiais e os empréstimos compulsórios". Entre as contribuições especiais incluem-se as chamadas Contribuições para a Seguridade Social, muitas das qual a cargo do fisco previdenciário.
É de se destacar que o fato das Contribuições para a Seguridade Social, estarem topograficamente localizadas fora do Sistema Tributário Nacional, em nada altera a natureza tributária que possuem. Trata-se, obviamente, de tributo com características próprias, como p.ex., o prazo nonagesimal, para o início de sua exigênica. Todavia toda sua estrutura jurídica é nitidamente tributária, sendo a posição constitucional (fora do capítulo Sistema Tributário Nacional), completamente irrelevante.
Cabe observar-se que o Supremo Tribunal Federal já atribuiu a natureza tributária ao Salário-Educação, previsto no Art. 212 § 5° da C.F., bem como, expressamente, refere-se à natureza tributária das contribuições sociais Nesse sentido convém invocar o precedente:
"RE 290079 / SC - SANTA CATARINA
RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO
EMENTA: TRIBUTÁRIO. SALÁRIO-EDUCAÇÃO. PERÍODO ANTERIOR À LEI N.º 9.424/96. ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE, EM FACE DA EC 01/69, VIGENTE QUANDO DA EDIÇÃO DO DECRETO-LEI N.º 1.422/75, POR OFENSA AO PRINCÍPIO DA ESTRITA LEGALIDADE TRIBUTÁRIA, CONSAGRADO NOS ARTS. 153, § 2.º, E 178, E AO PRINCÍPÍO DA VEDAÇÃO DA DELEGAÇÃO DE PODERES, PREVISTO NO ART. 6.º, PARÁGRAFO ÚNICO. ALEGADA CONTRARIEDADE, AINDA, AO ART. 195, I, DA CF/88.
CONTRIBUIÇÃO QUE, DE RESTO, FORA REVOGADA PELO ART. 25 DO ADCT/88.
Contribuição que, na vigência da EC 01/69, foi considerada pela jurisprudência do STF como de natureza não tributária, circunstância que a subtraiu da incidência do princípio da legalidade estrita, não se encontrando, então, na competência do Poder Legislativo a atribuição de fixar as alíquotas de contribuições extratributárias. O art. 178 da Carta pretérita, por outro lado, nada mais fez do que conferir natureza constitucional à contribuição, tal qual se achava instituída pela Lei n.º 4.440/64, cuja estipulação do respectivo quantum debeatur por meio do sistema de compensação do custo atuarial não poderia ser cumprida senão por meio de levantamentos feitos por agentes da Administração, donde a fixação da alíquota haver ficado a cargo do Chefe do Poder Executivo. Critério que, todavia, não se revelava arbitrário, porque sujeito à observância de condições e limites previstos em lei. A CF/88 acolheu o salário-educação, havendo mantido de forma expressa -- e, portanto, constitucionalizado --, a contribuição, então vigente, a exemplo do que fez com o PIS-PASEP (art. 239) e com o FINSOCIAL (art. 56 do ADCT), valendo dizer que a recepcionou nos termos em que a encontrou, em outubro/88. Conferiu-lhe, entretanto, caráter tributário, por sujeitá-la, como as demais contribuições sociais, à norma do seu art. 149, sem prejuízo de havê-la mantido com a mesma estrutura normativa do Decreto-Lei n.º 1.422/75 (mesma hipótese de incidência, base de cálculo e alíquota), só não tendo subsistido à nova Carta a delegação contida no § 2.º do seu art. 1.º, em face de sua incompatibilidade com o princípio da legalidade a que, de pronto, ficou circunscrita. Recurso não conhecido. "
Não pode restar qualquer dúvida, portanto, da natureza tributária das dívidas fiscais arrecadadas pelo INSS, exigindo, tal qual as demais dívidas tributárias, a necessária Certidão Negativa de Débito – CND, para os fins de liberação de 80% dos valores depositados pelo desapropriante, nas hipóteses previstas no Art. 6° § 1° da LC n° 76/93 e no Art. 34 do Decreto-Lei n° 3.365/41.
É óbvio que as liberações que se façam em contrariedade aos termos da legislação em vigor devem ser consideradas como ilegais, com todas as conseqüências daí advindas, inclusive, com a devolução das quantias liberadas excedentes, até que os dispositivos legais sejam, de fato, respeitados.
IV – Conclusão
A liberação dos valores depositados pelo desapropriante, tanto na desapropriação por utilidade pública, como na desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, nas hipóteses previstas no Art. 6° § 1° da LC n° 76/93 e no Art. 34 do Decreto-Lei n° 3.365/41, somente pode ocorrer com a total quitação das dívidas fiscais/ tributárias, as quais incluem, necessariamente, as contribuições arrecadadas pelo INSS, por serem contribuições de natureza tributária.
Os eventuais valores liberados, em desconformidade à legislação em vigor, devem ser devolvidos pelos desapropriados, nos valores correspondentes aos débitos tributários previdenciários ou devem ser retidos quando forem efetuados o pagamento dos restantes 20% do valor da desapropriação, até que a legislação, enfim, seja cumprida.
Bibliografia
Coelho, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 6. ed. Rio de Janeiro. Forense, 2001.
Machado, Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário, 9ª. Ed. São Paulo. Malheiros, 1996.
Mello, Celso A. B. Curso de Direito Administrativo, 14ª. ed. São Paulo. Malheiros, 2000.