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Contrato de estágio como meio fraudulento de contrato de trabalho

22/01/2004 às 00:00
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1. INTRODUÇÃO

O governo neoliberal que comandou o Brasil nos últimos oito anos trouxe a "estabilização" da moeda, a abertura aos mercados internacionais, as privatizações, a diminuição da atuação do Estado na economia, enfim, a ideologia liberal do Estado mínimo com o mercado regulando a sociedade. Porém, este mesmo governo neoliberal trouxe também uma enorme onda de desemprego e precarização das relações de emprego existentes, a quebra de empresas nacionais, a violenta dependência do capital externo, bem como uma enorme crise nas áreas sociais.

Dentre estes "presentes" trazidos pelo neoliberalismo optaremos por analisar a precarização das relações de emprego, mais especificamente a utilização fraudulenta do contrato de estágio como meio de burlar a legislação trabalhista.

O contrato de estágio foi instituído pela Lei 6.464 de 1977 e regulamentado pelo decreto 87.497, de 1982, tendo ambas normas sofrido diversas modificações posteriormente. De qualquer modo, tal legislação regula o estágio em geral, havendo também alguns estágios relativos a certas profissões regulados por outras normas.

O estágio, quando remunerado, é um dos institutos que mais se aproxima da relação de emprego, uma vez que reúne os cinco requisitos caracterizadores desta — trabalho por pessoa física, com pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e sob subordinação ao tomador dos serviços - sem que a legislação autorize, porém, sua tipificação como tal.

A justificativa para adoção desta conduta seria a valoração do ensino e preparação do estagiário para o mercado de trabalho, em detrimento de garantias trabalhistas pela não formação do vínculo empregatício, com a finalidade de aumentar as ofertas de estágio no mercado de trabalho, conforme bem esclarece MAURÍCIO GODINHO DELGADO (2002, p. 317):

"Esse vínculo sociojurídico foi pensado e regulado para favorecer o aperfeiçoamento e complementação da formação acadêmico-profissional do estudante. São seus relevantes objetivos sociais e educacionais, em prol do estudante, que justificaram o favorecimento econômico embutido na Lei do Estágio, isentando o tomador de serviços, partícipe da realização de tais objetivos, dos custos de uma relação formal de emprego. Em face, pois, da nobre causa de existência do estágio e de sua nobre destinação — e como meio de incentivar esse mecanismo de trabalho tido como educativo —, a ordem jurídica suprimiu a configuração e efeitos justrabalhistas a essa relação de trabalho lato sensu."

Por outro lado, caso o estágio não favoreça este aperfeiçoamento e complementação da formação acadêmico profissional, retratando na verdade uma fraudulenta utilização de força de trabalho menos onerosa, a relação jurídica que se configurará não mais será a de estágio, mas sim de emprego.

Para a verificação da regularidade do estágio, devemos analisar se o mesmo preenche os requisitos legais, que, segundo MAURÍCIO GODINHO DELGADO (2002, p. 318), podem ser classificados em formais e os materiais.


2. REQUISITOS FORMAIS

Os requisitos formais do contrato de estágio são:

1. Em primeiro lugar, a qualificação das partes envolvidas no estágio - estudante-trabalhador e tomador de serviços.

O artigo 1°, caput, da Lei n. 6.494/77, observado conjuntamente com a Lei n. 8.859/94 limita a figura do concedente do estágio às pessoas jurídicas de Direito Privado, aos órgãos da Administração Pública e às Instituições de Ensino, estando excluídas as pessoas físicas.

Entretanto, observa-se que esta exclusão se faz para assegurar o real cumprimento de suas metas pedagógicas, partindo-se do pressuposto que as pessoas jurídicas poderão melhor atender a estas metas. Por outro lado, nada impede que profissionais que tenham boas condições de proporcionar experiência prática na linha de formação do estudante, sejam concedentes do estágio.

Com relação ao estagiário, este deverá ser estudante regularmente matriculado em curso vinculado ao ensino público e particular (art. 1°, caput, in fine, Lei n. 6.494), que esteja, comprovadamente, freqüentando curso de nível superior, profissionalizante de 2° grau, ou escolas de educação especial (§ 1 ° do art. 1° da Lei n. 6.494/77).

Porém, o legislador presidencial neoliberalista, por medidas provisórias (por exemplo, MP n. 2.164-41, de 24 de agosto de 2001, em seu art. 6°), alterou a redação do § 1 ° do art. 1 ° da Lei n. 6.494/77, autorizando o estágio também para alunos de ensino médio, ainda que não profissionalizante, o que foge inteiramente à finalidade do estágio, sendo, nesse caso, dificilmente preenchidos os requisitos materiais do estágio.

2. É também requisito formal a celebração de um termo de compromisso entre o estudante e a parte concedente do estágio. A exigência, entretanto, não é absoluta, Já que dispõe a Lei n. 6.494 que os estágios realizados sob a forma de ação comunitária estarão isentos de celebração de termo de compromisso (art. 3°, § 2°).

3. A interveniência da instituição de ensino no encaminhamento do estagiário é outro requisito formal fixado pela ordem jurídica (art. 3°, Lei n. 6.494/77).

4. Além destas, também é requisito formal desse contrato a concessão de seguro de acidentes pessoais em favor do estagiário, tratando-se de obrigação inerente ao tomador de serviços (art. 4°, in fine da lei 6494/77). Curiosamente, o Regulamento Normativo da lei busca transferir a responsabilidade pela parcela à respectiva instituição de ensino (art. 8º, Decreto n. 87.497/82) —o que é, obviamente, ineficaz, do ponto de vista jurídico.

5. Finalmente, o requisito da bolsa de complementação educacional, que não é obrigatório e que não tem natureza salarial.


3. REQUISITOS MATERIAIS

Os requisitos materiais do estágio, verificados pela participação do estagiário em situações reais de vida e trabalho de seu meio, buscam assegurar sua efetiva formação acadêmico profissional.

O primeiro desses requisitos é que o estágio se verifique em unidades que tenham condições reais de proporcionar experiência prática de formação profissional ao estudante (§ 2°, ab initio, do art. 1° da Lei n. 6.494/77).

O segundo de tais requisitos é que o estágio proporcione ao estudante-estagiário efetiva complementação do ensino e aprendizagem, em consonância com os currículos, programas e calendários escolares (§ 3º, do art. 1º da Lei 6494/77).


4. ESTÁGIO: AVALIAÇÃO CRÍTICA

O contrato de estágio, por se assemelhar muito ao contrato de emprego, tem sido muito utilizado como modo de fraudar as obrigações trabalhistas, uma vez que, conforme vimos, no contrato de estágio não se cria vínculo de emprego.

A utilização distorcida do contrato de trabalho pode facilmente ser verificada pela utilização de estagiários em setores ou empresas que não tenham a menor relação com a área do curso do estudante. Como exemplo podemos citar a contratação de um estagiário do curso de turismo para estagiar como caixa de banco.

Porém, não se deve assustar com o absurdo do exemplo dado, uma vez que esta prática tem sido muito comum atualmente e tem gerado gravíssimas conseqüências para a sociedade em geral.

Entre as conseqüências podemos citar um aumento do número de desempregos, obviamente decorrentes da troca de empregados efetivos por estagiários (estagiários custam menos para as empresas); uma maior precarização do emprego, pois, em razão da maior oferta de trabalho gerada pelo aumento do desemprego, as pessoas se sujeitam a ganhar menos para poderem ao menos se sustentarem; um aumento do déficit da previdência social (não há recolhimento de INSS para estagiários); empobrecimento da população (conseqüência direta da precarização do emprego); entre tantas outras.

Ressalte-se ainda que, apesar de ainda ser minoria, estas relações distorcidas de estágio, relações que não preenchem quaisquer requisitos materiais, encontram respaldo em alguns acórdãos, sob o fundamento de que apenas pela presença de integração social do aluno em relação aos seus colegas de trabalho, já se estaria proporcionando aperfeiçoamento acadêmico profissional.

JOSÉ AFFONSO DALLEGRAVE NETO (2002, p.182) cita um acórdão neste sentido:

"O estágio a que se refere a Lei n. 6.494/77 não exige correlação entre o currículo escolar e a atividade empresarial. Devendo a lei ser interpretada de acordo com o fim a que se destina, estando a finalística da Lei n. 6.494/77 estampada no § 2° do art. 1° (''... a fim de se constituírem em instrumentos de integração, em termos de treinamento prático de aperfeiçoamento técnico-cultural, científico e de relacionamento humano''), à percepção da preocupação do legislador de ensejar meios para o aumento de conhecimento sócio-cultural do estudante, sua participação em atividade laborativa com outras pessoas dando-lhe vivência, experiência e propiciando relacionamento humano fora dos ambientes residência-escola, constata-se que o estágio obediente àquela norma legal não mascara e/ou caracteriza relação de emprego; reafirmação de que na escola da vida o aprendizado é eficaz." (TRT 3a Região, Ac. 1a T., Rei. Renato Moreira Figueiredo, DJMG II, 10.09.92, p. 74)

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Porém, apesar deste tipo de interpretação ainda ser minoria, o legislador presidencial, através de medidas provisórias, alterou a redação do § 1 ° do art. 1 ° da Lei n. 6.494/77, autorizando o estágio também para alunos de ensino médio, ainda que não profissionalizante, o que contribui ainda mais para este tipo de interpretação e para a ampliação deste uso fraudulento de força de trabalho.

O grande equívoco da inserção da expressão "de ensino médio" no art. 1° da Lei do Estágio é que se cria a ilusão de que a prática de estágio por alunos de instituições de ensino médio, cujos currículos não têm conteúdo profissionalizante, permitir-lhes-ia adquirir uma profissão (sendo a prática do estágio legítima). Infelizmente, o que ocorre, é que os adolescentes que estagiam nessas condições, buscando o aprendizado de um ofício, muitas vezes se defrontam com serviços precários e sem nenhum conteúdo profissionalizante.

Os defensores da nova redação da lei, assim como aqueles que já aceitavam a relação jurídica de estágio, mesmo sem os requisitos materiais, afirmam que os fins do estágio foram elastecidos e agora contêm horizontes mais amplos, como a aprendizagem social e cultural, adquirida no convívio social e decorrente de matérias de formação intelectual. Enfim, o estágio no ensino médio teria a função de assegurar ao estudante o desenvolvimento de sua personalidade e não profissionalizá-lo.

Essa interpretação leva à absurda situação de que qualquer empresa pode contratar qualquer estudante de ensino médio, para qualquer função, sem vínculo de emprego, pois a vivência dentro da mesma possibilita "aprendizagem social e cultural, além do desenvolvimento de sua personalidade".

Por fim, com relação ao estágio, vale analisar a questão da distribuição do ônus probatório no processo do trabalho. Segundo MAURÍCIO GODINHO DELGADO (2002, p.321), uma vez admitida a prestação do trabalho pelo tomador de serviços (no caso, parte concedente do estágio), será deste o ônus de provar a existência de fato modificativo da relação jurídica existente. Por outro lado, se o concedente apresentar prova documental dos requisitos formais do estágio, ao autor da ação passará o ônus de evidenciar que tais documentos não espelham a modalidade de relação jurídica neles informada, pois à parte que alega a não veracidade do conteúdo de documentos recai o ônus de comprovar suas alegações (art. 389, l, CPC).

Em conclusão, evidenciados os requisitos formais do estágio mediante prova documental, caberá ao autor demonstrar que os requisitos materiais, contudo, não emergem na relação jurídica trazida a exame judicial (prova não necessariamente documental).


5. BIBLIOGRAFIA

DELGADO, Maurício Godinho; "Curso de Direito do Trabalho " – São Paulo: LTr, 2002.

DALLEGRAVE NETO, José Affonso; "Inovações na legislação trabalhista: reforma trabalhista ponto a ponto" – 2ª ed. rev. e atual. – São Paulo: LTr, 2002.

VIDOTTI, Tárcio José, "Mercado de Trabalho: legislação sobre estágio profissional deve ser alterada", São Paulo, 2002. Disponível em: <http://www.conjur.uol.com.br/view.cfm?id-13905> Acesso em: 21 out. 2002.

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Sobre o autor
Pedro Delgado de Paula

Advogado, Despachante Aduaneiro, Diretor Jurídico da Atlas Comércio Exterior Ltda., Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/MG, Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos, Pós-Graduado em Direito de Empresa e da Economia pela FGV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Pedro Delgado. Contrato de estágio como meio fraudulento de contrato de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 200, 22 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4773. Acesso em: 28 mar. 2024.

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