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Aristóteles: justiça e eudaimonia

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01/04/2016 às 09:13
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7. A EUDAIMONIA

Contrariando muitas interpretações que tendem a enviesar Aristóteles para um igualitarismo radical, uma leitura real dos escritos do estagirita nos leva a inferir ideias opostas. Poderíamos dizer, então, que Aristóteles era um defensor da Meritocracia? Em certa medida, poderíamos, mas se assim fizermos, devemos ter sempre o cuidado de não reduzir a analises aristotélicas a resmungos e reclamações políticas, levando-as perder todo potencial analítico que carregam.

Toda idéia de justiça pressupõe não apenas uma distinção de mérito e demérito, mas também as diferenças escalares dentro de um e do outro. Homenagens, cargos, premiações escolares, hierarquias burocráticas, civis e militares refletem a escala do mérito, o Código Penal e os vários mecanismos de exclusão social a dos deméritos. É inútil falar em “meritocracia”, pois todas as hierarquias sociais são meritocráticas, divergindo apenas no critério de aferição dos méritos. Mesmo essa divergência é mínima. Nenhuma sociedade é tão fortemente apegada a prestígios de família que negue toda possibilidade de merecimento individual autônomo, nem é tão desapegada deles que não reconheça diferença entre ser filho de um herói nacional ou de um assassino estuprador (CARVALHO, 2006)

O mundo filosófico-jurídico anglo-saxão tenta fornecer uma resposta a insuficiência da concepção simplista de uma meritocracia. De um lado, célebre é a posição liberal (no sentido norte-americano) representando por John Rawls (1999), que foca a justiça no plano da igualdade. Do outro lado, não tão célebre quanto o primeiro — pelo menos no mundo jurídico brasileiros — encontramos a posição do grupo que se habitou chamar de comunitarismo (no qual, há quem inclua o Michael Sandel), e que se caracteriza pelo enfoque concedido a noção de justiça a partir da perspectiva do mérito e reconhecimento de algo ou alguém pela sociedade.

Mais recentemente, tem ganhado destaque as novas abordagens propostas por Martha Nussbaum e Amartya Sen. Um dos fatores dessa renovação está numa reflexão (pelo menos por parte de Nussbaum) mais apropriada de um dos conceitos de Aristóteles, a Eudaimonia. Comumente traduzido por felicidade, esta talvez não seja a melhor das traduções

The Greek word eudaimonia means literally “the state of having a good indwelling spirit, a good genius”; and “happiness” is not at all an adequate translation of this word. Happiness, indeed, is usually thought of as a state of mind that results from or accompanies some actions.( Eudaemonism, de acordo com a ENCYCLOPAEDIA Britannica)

Martha nussbaum prefere traduzir Eudaimoinia por flourishing (florescente). Segundo ela, flourish aspira descrever uma vida aberta, natural, ativa e expansiva.

Some texts we shall discuss are rendered obscure on this point by the common translation of Greek eudaimonia' by English 'happiness*. Especially given our Kantian and Utilitarian heritage in moral philosophy, in both parts of which' happiness' is taken to be the name of a feeling of contentment or pleasure, and a view that makes happiness the supreme good is assumed to be, by definition, a view that gives supreme value to psychological states rather than to activities, this translation is badly misleading. To the Greeks, eudaimonia means something like ' living a good life for a human being'; or, as a recent writer, John Cooper, has suggested, 'human flourishing'. Aristotle tells us that it is equivalent, in ordinary discourse, to 'living well and doing well'. Most Greeks would understand eudaimonia to be something essentially active, of which praiseworthy activities are not just productive means, but actual constituent parts. It is possible for a Greek thinker to argue that eudaimonia is equivalent to a state of pleasure; to this extent activity is not a conceptual part of the notion. (NUSSBAUM, p.6, 2001)

Sendo assim, se, a partir de Aristóteles, concebíamos a finalidade da Justiça (e de todas as virtudes) como eudaimoinia, agora que entendemos esta como flourishing[8], chegamos a conclusões mais precisas do que uma vaga noção de meritocracia: a justiça e a distribuição de bens deve ocorrer conforme a capacidade de cada um; logo, é justo conferir a alguém a possiblidade de realizar a própria capacidade. Mais do que se preocupar com o mínimo necessário como condicionante para liberdade de escolha, deve-se dar a cada pessoa a possibilidade de melhor realizar essa liberdade.[9]

Seguindo essa mesma linha que afasta a tradução usual de eudaimonia por felicidade, encontra-se Jean-Luc Marion (2009). Diante da pergunta a respeito da possibilidade de existir um direito a felicidade (bonheur), o filósofo francês é taxativo: não, não há um fundamento real para esse direito. Ao longo da história, verifica-se que o emprego político da felicidade se erige numa ideia de que, uma vez que há um direito a felicidade, cabe ao Estado o dever de efetivá-lo através da distribuição de bens materiais. Porém, é impossível que algo tão indeterminado e sem limites como a felicidade, –  pois, não tendo exterior é total ou não existe –, possa ser efetivado pela posse de bens materiais. Esse é um impasse insolúvel que, uma vez ignorado, descamba num Estado Totalitário, que vê, na sua ampliação irrestrita, o cumprimento de um dever de garantir a felicidade de todos.

Em oposição a noção de felicidade (bonheur) dependente de bens materiais e exteriores a pessoa, Jean-luc Marion propõe uma revisão reflexiva da Eudaimonia de Aristóteles, a qual ele traduz por beatitude (béatitude), seguindo a beatitudo do latim.

Ainda segundo o filósofo francês, enquanto que a felicidade se caracteriza por uma alienação à instancia exterior, a eudaimonia de Aristóteles se definiria como um ato (energeia), uma realização de si em si mesma, a qual jamais permanece sem um fim/finalidade/propósito (ateles), mas sem que isso signifique que, tal como a felicidade, seja condicionado a um objeto exterior.

Il convient donc de considérer plus nettement la différence entre le bonheur (moderne en effet) et la béatitude. Ils ne s’opposent pas seulement comme l’aliénation de soi par l’objet de l’heur s’oppose à l’autarcie de soi par un acte sans objet extérieur, mais aussi parce que la béatitude peut, au contraire du bonheur, permettre d’établir un principe de la morale. (MARION, 2009).

 A beatitude como a autarquia de si mesmo por um ato incondicionado a algum objeto exterior permite estabelecer um princípio de moral. Jean-luc Marion se inspira em Santo Agostinho para trazer à tona o fato fundamental e incondicionado de que  “N’est-ce pas la vie heureuse (vita beata) elle-même que tous veulent et qu’il ne se trouve absolument personne pour ne pas la vouloir (quam omnes volunt et omnino qui nolit nemo est)"( Marion,2009)

A Beatitude, portanto, se impõe como um primeiro princípio incondicional, o qual não depende da posse de nenhum outro objeto, mas somente do simples e puro desejo, um desejo sem objeto. Portanto, o desejo de Beatitude, de um lado, nos libera da alienação da felicidade enquanto evento que torna nossa serenidade dependente daquilo que nos é externo e permite, assim, estabelecer limites para o Estado, já que, para que possa permanecer democrático, é necessário distinguir aquilo que ele pode daquilo que não pode e, por consequência, aquilo que ele deve daquilo que ele não deve; do outro lado, o desejo de Beatitude nos permite escapar da violência causada pela rivalidade mimética (teoria tão cara do René Girard, para quem rivalidade mimética é a origem da violência), uma vez que, enquanto esta só existe em torno de um número limitado de objetos, o desejo de beatitude, como não visa a nenhum bem, está liberado da competição entre os desejos.

Nous pouvons ainsi atteindre une conclusion. Autant le bonheur ne paraît avoir aucun droit à s’ériger comme un devoir ou comme un droit, parce que nul individu, ni aucun état ne peut en fournir les objets, autant la béatitude, qui ne repose sur aucune acquisition d’objet mais sur l’inconditionnalité d’un désir peut-elle s’imposer comme une obligation de chacun envers lui-même : ne jamais faire de compromis sur le désir de béatitude, sur le désir comme essentiellement désir de béatitude. Mais il s’agit alors d’une nécessité qui outrepasse et le droit et le devoir (MARION,2009)

Embora Jean-Luc Marion nos proponha uma atenção redobrada para o desejo de beatitude, como se nos fornecesse somente uma introdução para outras investigações, não se pode deixar de verificar que a abordagem do filosofo francês se distancia do empenho usual que outros fazem em extrair de Aristóteles uma estrutura de um ordenamento político e jurídico

Quem também nos oferece um Aristóteles pouco afeito a arquitetura social é o Eric Voegelin (2000). De maneira semelhante a Santo Agostinho, o filosofo alemão observa a sequência de surgimentos e derrocadas de civilizações na história sem dela extrair nenhuma ordem que lhe possa ser chamada sua propriamente, Mas, não obstante a confusão e sofrimento da Cidade dos Homens, Eric Voegelin entrevê um princípio de ordem que subjaz a dinâmica da história, sem com ela se confundir.

Sua abordagem de Platão e Aristóteles se dá nesse contexto. Os dois grandes filósofos viveram e produziram suas obras quando a Grécia se encontrava em seu declínio. Entretanto, malgrado a escuridão que envolvia sua civilização, ambos surgem como faróis capazes de iluminar os caminhos das seguintes gerações

Eric Voegelin identifica, em Aristóteles, a tensão entre as duas ideias naturais de homem, em termos da perspectiva do animal racional (da Ética Nicomaquea) e animal político (da Política). Seja a virtude individual, seja a social, ambas visam a formação do homem maduro (SPOUDAIOS). Mas que o SPOUDAIOS entre em sintonia completa coma sociedade, não fica plenamente resolvido em Aristóteles, que entende como a maior das atividades, a do BIOS TEORETIKOS, a vida contemplativa da Verdade. Se, por um lado, a Antiga Grécia ruía, e com ela sua ordem política e jurídica, do outro a comunidade dos contempladores da Verdade encontrava forças, para mais um resplendor, numa Ordem incorruptível.


5.Conclusão

Entre outros legados, a Grecia Antiga nos deixou essenciais investigações a respeito da Justiça que em muito influenciou a cultura jurídica do Ocidente. O manancial, porém, ainda não se esgotou, e em muito tem enriquecido o debate Jusfilosófico Atual


BIBLIOGRAFIA

ARISTOTELES. Etica Nicomaquea. Universidad Nacional Autónoma de Mexico.México. 1954

ARISTOTLE. Politics in The Great Books of The Western World Vol 9. The Works of Aristotle. The University of Chicago. 1952

CARVALHO, OLAVO. Jardim das Aflições. São Paulo; Érealizações, 2000

___________________. Justiça Social e Injustiça pessoal, publicado em 18 de setembro 2006. Texto disponível em < http://www.olavodecarvalho.org/semana/060918dc.html> Acesso em: 29 de março de 2016

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Dário ANTISERI; Giovanni REALE. História da Filosofia (vol. I - Filosofia Pagã Antiga), São Paulo: Paulus. 2003

DEL VECCHIO, Giorgio. A justiça. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Saraiva, 1960

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NUSSBAUM, MARTHA. The Fragility of Goodness- Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge, United Kingdom: Eidtora CAMBRIDGE UNIVERSITY PRESS, 2001

RAWLS, John. A THEORY OF JUSTICE- Revised Edition. Estados Unidos da America, massachusetts . Editora harvard university press. 1999

Romanae disputationes. Enrico Berti - La giustizia nella filosofia antica. Disponível em: <http://romanaedisputationes.com/video-lezioni-rd/>. Acesso em: 29 de março de 2016>

SANDEL, Michael. Justiça: O que é fazer a coisa certa.6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 2012

STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. São Paulo: Editora Martin Fontes. 2014

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VOEGELIN, Eric. Order and History, Volume III, Plato and Aristotle. university of missouri press columbia and london, 2000


NOTAS

[1] Excluo da contagem as obras "menores" a "Magna Moralia" e a "Ética a Eudemo". Também não incluo outras em que a Justiça é tratada tangencialmente.  

[2] Como assim o denominou o poeta Dante Alighiere  

[3] É que toda a herança do pensamento grego era centrada na noção do cosmos, da natureza sensível, tomada como o protótipo mesmo da realidade. Mesmo quando falava de realidades espirituais, o filósofo grego tendia a vê-las como uma imagem e semelhança das coisas do mundo sensível. O pensamento grego era fundamente marcado por uma visão objetiva-vista-exterior, e por isto mesmo, quando falava do homem, tendia a fazê-lo nos mesmos termos com que falava das coisas do mundo externo, buscando nele o mesmo tipo de estabilidade e fixidez que o estudo das ciências físicas buscava nas leis da natureza. Para usar o termo genial de Ortega y Gasset, era um pensamento coisista: via o homem à imagem das coisas (CARVALHO,2000, p.162)

[4] Preferi por usar o termo grego, pelo menos por enquanto. A tradução mais usual de Eudaimonia é felicidade. Porém, existe uma problemática em torno da tradução, a qual abordarei mais adiante no artigo, devotando um tópico exclusivo. Acreditem, uma só  palavra pode ter um peso enorme.

[5] Utilizo da tradução e interpretação de Giorgio Del Vecchio das terminologias aristotélicas respectivas a justiça. Enquanto a divisão "padrão" ocorre entre Justiça distributiva e comutativa, o jurista italiano trincha a distinção entre justiça distributiva e sinalagmática. Entende também que a esta se atribui uma divisão nas subespécies de justiça comutativa e justiça judiciária.

[6]  A literatura que entende ser o mérito o critério de justiça distributiva de Aristóteles não é pequena nem insignificante, muito pelo contrário. No entanto, como em seguida somos levados à ideia de meritocracia, termo que já caiu na boca de todos tipos de debates – e reclamações – políticas, é preciso que deixemos o significado de mérito o mais amplo possível, claro, sem deixar os horizontes das palavras de Aristóteles

[7] "In all sciences and arts the end is a good, and the greatest good and in the highest degree a good in the most authoritative of all—this is the political science of which the good is justice, in other words, the common interest"(ARISTOTLE, 1960 , p. 480, Polítics, livro III,12, 1282-b)

[8] Each translation has its disadvantages. The trouble with “flourishing” is that animals and even plants can flourish but eudaimonia is possibly only for rational beings. The trouble with “happiness”, on any contemporary understanding of it uninfluenced by classically trained writers, is that it connotes something which is subjectively determined. It is for me, not for you, to pronounce on whether I am happy, or on whether my life, as a whole, has been a happy one, for, barring, perhaps, advanced cases of self-deception and the suppression of unconscious misery, if I think I am happy then I am—it is not something I can be wrong about. Contrast my being healthy or flourishing. Here we have no difficulty in recognizing that I might think I was healthy, either physically or psychologically, or think that I was flourishing and just be plain wrong. In this respect, “flourishing” is a better translation than “happiness”. It is all too easy for me to be mistaken about whether my life is eudaimon (the adjective from eudaimonia) not simply because it is easy to deceive oneself, but because it is easy to have a mistaken conception of eudaimonia, or of what it is to live well as a human being, believing it to consist largely in physical pleasure or luxury for example.(HURSTHOUSE, 2013))

[9] Assim entende Enrico Berti. Ver: Romanae disputationes. Enrico Berti - La giustizia nella filosofia antica Disponível em: <http://romanaedisputationes.com/video-lezioni-rd/>. Acesso em: 29 de março de 2016>

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Artur Leite. Aristóteles: justiça e eudaimonia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4657, 1 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47812. Acesso em: 27 abr. 2024.

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