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A autonomia das agências reguladoras e a estabilidade de seus dirigentes

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01/02/2004 às 00:00
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4. Considerações acerca dos modelos adotados no exterior

As agências reguladoras despontaram no cenário de abertura da economia brasileira e do processo de reforma do Estado, iniciado no Brasil, nos anos 90 [32]. Esse modelo de administração pública, com variações importantes, vigora em diversos países do chamado primeiro mundo [33].

Com o objetivo de avaliar os papéis dos órgãos reguladores, ministérios e instituições de defesa da concorrência no setor energético foi conduzido o estudo "Desenhos Institucionais de Regulação de Energia", coordenado pelo professor Helder Queiroz Pinto Jr., do Grupo de Economia da Energia, do Instituto de Economia da UFRJ.

Algumas das conclusões desse estudo foram sumarizadas na matéria publicada no jornal O Globo [34] e são transcritas a seguir:

"as agências reguladoras das áreas de energia elétrica, petróleo e gás – o chamado setor energético – têm características bem diversas em outros países. Em alguns, como os Estados Unidos elas têm muita força. Em outros casos, como na Bélgica, são subordinadas a algum ministério. No entanto, todas têm em comum a atribuição de regular, fixar tarifas e fiscalizar o setor energético. Outra característica em comum é que todas, sem exceção, seguem as diretrizes gerais da política energética de seus governos. Países como a Alemanha e o Japão, contudo, não têm agências reguladoras".

"Nenhuma agência nos países pesquisados é independente porque, de uma forma ou de outra, têm que prestar contas ao governo federal ou estadual, seguindo as diretrizes para o setor. Todos os outros países se inspiraram no modelo americano, embora nem todos os órgãos tenham funções dos três poderes".

"Em todos os países pesquisados, independentemente do grau de autonomia que as agências têm, elas seguem as diretrizes da política macroeconômica dos governos federais para os quais prestam contas".

Os comentários acima são suficientes para se concluir que o legislador brasileiro inovou a disciplina das agências reguladoras ao estender a autonomia desses órgãos em relação ao Poder Executivo além dos limites praticados na maior parte dos países pesquisados. O trabalho foi realizado a partir do estudo da legislação de 25 países, dentre os quais se incluem Argentina, Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Japão, França e México.


5. As propostas de alterações legislativas em tramitação no Câmara e no Senado

O saldo de toda essa reflexão, neste momento, aponta, inequivocamente, na direção da necessidade de revisão, ao menos parcial, do modelo de plena autonomia das agências reguladoras.

Nessa linha, mesmo os mais extremados liberais admitem que "ninguém contesta o direito e o dever de o Estado traçar as diretrizes e planejar, a longo prazo, o desenvolvimento dos setores estratégicos" [35], assim como defensores do paradigma em vigor reconhecem que "se couber às agências a determinação integral das políticas públicas do setor regulado, pouco restará ao Chefe do Executivo em termos de competência decisória, valendo lembrar que é ele quem detém a legitimidade democrática, recebida nas eleições, para exercer a função administrativa" [36]. No mesmo compasso, Joaquim Benedito Barbosa Gomes acrescenta:

"advirta-se, contudo, que não basta conferir estabilidade aos dirigentes de uma agência para que ela automaticamente passe a ser "independente". Mesmo nos EUA, onde o Congresso exerce com zelo implacável a atribuição hoje crucial de todo órgão legislativo (a fiscalização e o controle), e em que o sistema de ‘checks and balances’ funciona com razoável eficiência, não são raras as críticas de que as agências, ao invés de atuarem em busca do cumprimento do interesse público, procuram preferencialmente atingir seus próprios interesses e os de lobbies eficazmente incrustados e com atuação concertada, tanto nos comitês do Congresso incumbido de supervisioná-las, quanto no âmbito das atividades privadas que lhes incumbe regulamentar e fiscalizar. (37) Noutras palavras, é sério o risco de, ao se retirar as agências do âmbito de influência da Política, submetê-las ao jugo de forças econômicas poderosas" (38).

Neste contexto, foram apresentados dois projetos de lei no intuito de disciplinar a questão do controle das agências reguladoras.

O Projeto de Lei do Senado nº 38, de 2003, de autoria do Senador Arthur Virgilio, altera a Lei nº9.986, de 18 de julho de 2000, que "dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências", instituindo o controle externo das Agências Reguladoras. O art 1º do referido projeto de lei assim estatui:

"Art. 1º A Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, que "dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras e dá outras providências", passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

Art. 10-A. As Agências Reguladoras terão suas atividades submetidas ao exame e sugestões do órgão competente de controle externo.

Art. 10-B. O controle e fiscalização externos das atividades das Agências Reguladoras serão exercidos pelo Poder Legislativo na forma a ser estabelecida em ato do Congresso Nacional.

§ 1º Integrarão o órgão de controle externo das atividades das Agências Reguladoras os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, assim como o presidente da Comissão de Infra-Estrutura do Senado Federal e o presidente da congênere Comissão Permanente da Câmara dos Deputados.

§ 2º O ato a que se refere o caput deste artigo definirá o funcionamento do órgão de controle e a forma de desenvolvimento dos seus trabalhos com vistas ao controle e fiscalização dos atos decorrentes da execução das atividades das Agências Reguladoras". (39)

Em que pese o mérito da iniciativa, no sentido de estabelecer uma forma de controle externo das agências reguladoras como previsto no art. 70 da Constituição Federal, a regra contida no art. 1º do PL nº 38/2003 do Senado Federal apenas restaura parcialmente o espírito do art. 50 da Constituição Federal, esvaziado pela autonomia das agências reguladoras em face do Poder Executivo, conferida pela regra do art. 9º da Lei 9.986/00. O art. 50 da Constituição Federal permite que a Câmara Federal ou o Senado Federal, suas respectivas Mesas, bem como qualquer de suas Comissões solicitem informações a Ministros de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República, enquanto que o PL nº 38/2003 concede a prerrogativa de controle e fiscalização das atividades das agências reguladoras a apenas uma comissão mista específica do Congresso Nacional.

Com o mesmo propósito do PL nº 38/2003 do Senado Federal, qual seja o de criar mecanismos de controle para as agências reguladoras, porém com solução e pressupostos absolutamente distintos, foi apresentado o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 413/2003, de autoria da Deputada Telma de Souza, cujo art. 3º é reproduzido a seguir:

"Art. 3º - O art. 9º da lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 9º - A exoneração dos Conselheiros e dos Diretores poderá ser promovida pelo Chefe do Poder Executivo em qualquer época, observado o disposto neste artigo.

§ 1º - Constituem motivos para a exoneração de dirigentes das Agências, em qualquer época a prática de ato de improbidade administrativa; a condenação penal transitada em julgado, o descumprimento injustificado do contrato de gestão, e a não observância das políticas determinadas pelo Ministério ou Órgão Superior.

§2º - A lei de criação da Agência poderá prever outras condições para a perda do mandato" [40].

Na Justificativa do PL nº 413/2003 da Câmara dos Deputados, elaborada com a contribuição de Eros Roberto Grau, sustenta-se que a ausência de subordinação hierárquica das agências reguladoras constitui afronta ao art. 84, II da Constituição Federal [41].

Em síntese, o PL nº 413/2003 da Câmara dos Deputados, se tornado lei, limitará a autonomia das agências reguladoras, sem contudo restabelecer a possibilidade da demissão ad nutum de seus dirigentes por parte do Chefe do Poder Executivo, o que, a rigor, é garantido pela dicção do art. 37, II da Constituição Federal, como discutido acima. Assim, a par das hipóteses previstas na norma contida no art. 9º da Lei 9.986/00 – renúncia, condenação penal transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar – os conselheiros e os diretores serão exonerados, em qualquer época, em caso de descumprimento injustificado do contrato de gestão ou de não observância das políticas determinadas pelo Ministério ou Órgão superior.


6. Conclusão

Se, por um lado, é forçoso admitir que "as agências reguladoras tornaram-se peças fundamentais no ambicioso projeto nacional de melhoria da qualidade dos serviços públicos e de sua universalização, integrando ao consumo, à cidadania e à vida civilizada enormes contingentes mantidos à margem do progresso material" [42], é importante verificar também, que a adoção do modelo de autonomia irrestrita dessas entidades conduz ao paradoxo da coexistência de "administrações paralelas", no âmbito da Administração Pública [43].

Fundamental, também, a reflexão acerca da ponderação de Carlos Ari Sundfeld sobre o tema [44]:

"É inevitável reconhecer que a defesa apaixonada de um modelo de agências independentes pode carregar, no mínimo, uma forte carga de ingenuidade. Protótipos abstratos costumam gerar monstrengos no mundo real, cujas complexidades com freqüência se encarregam de distorcer, mesmo sem negá-los explicitamente, todos os belos princípios de que se partiu. Sonhar com autoridades equilibradas, imparciais, tecnicamente preparadas, democráticas, comprometidas com os interesses gerais, respeitadoras do Direito etc., em nada garante que a realidade vá se ajustar aos sonhos".

Por fim, é importante assinalar que a garantia de estabilidade dos dirigentes dessas agências, sustentada pela regra contida no art. 9º da Lei 9.986/00, vai de encontro aos seguintes dispositivos da Constituição Federal:

a) art. 2º: "São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário."

b) art. 37, II: "a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;"

c) art. 70 (parte final): "A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder."

d) art. 84, II: "Compete privativamente ao Presidente da República exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;"

e) art. 84, VI: "Compete privativamente ao Presidente da República dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;"

f) art. 87, parágrafo único, I: "Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;"

Adicionalmente, a autonomia das agências reguladoras, garantida pela estabilidade de seus dirigentes nos termos do art. 9º da lei 9.986/00, torna inócuas, em relação às atividades abrangidas por estes órgãos, as regras contidas nos seguintes dispositivos constitucionais:

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a) Art. 50: "A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, ou qualquer de suas Comissões, poderão convocar Ministro de Estado ou quaisquer titulares de órgãos diretamente subordinados à Presidência da República para prestarem, pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando em crime de responsabilidade a ausência sem justificação adequada."

b) Art. 50, § 2º: "As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal poderão encaminhar pedidos escritos de informação a Ministros de Estado ou a qualquer das pessoas referidas no caput deste artigo, importando em crime de responsabilidade a recusa, ou o não atendimento, no prazo de trinta dias, bem como a prestação de informações falsas."

Nesse contexto, as alterações propostas têm o mérito de restaurar o respeito ao princípio da separação dos Poderes e dos demais dispositivos constitucionais acima relacionados, ao mesmo tempo em que preservam, dentro de um critério de razoabilidade, elevado grau de autonomia das agências reguladoras, desejável para o bom desempenho das funções para as quais foram criadas.


Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
José Alberto Bucheb

advogado no Rio de Janeiro (RJ), mestre em Direito Internacional e Integração Econômica pela UERJ/FDIR, doutorando em Legislação do Petróleo pela UERJ/FGEL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUCHEB, José Alberto. A autonomia das agências reguladoras e a estabilidade de seus dirigentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 210, 1 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4783. Acesso em: 23 dez. 2024.

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