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O princípio da coculpabilidade:

a responsabilidade conjunta do Estado nos delitos praticados pelos cidadãos marginalizados

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01/04/2016 às 15:28
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4 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A CONSIDERAÇÃO DA COCULPABILIDADE NA DOSIMETRIA DA PENA

A consideração da coculpabilidade na dosimetria da pena, com o propósito de reduzir o grau de reprovação que será imposto ao indivíduo pelo Estado, possui inúmeros fundamentos legais e principiológicos que autorizam o Poder Judiciário a atribuir ao Poder Público, a culpa compartilhada no momento da individualização da pena.

Um dos mais importantes princípios que pautam as relações jurídicas e sociais é o princípio da isonomia. O célebre jurista Rui Barbosa, em seu discurso Oração aos Moços, proferido na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1920, estabeleceu considerações sobre o princípio da igualdade, as quais se fixaram com a definição exata de isonomia judicial:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. [...] Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. (BARBOSA, 2003, p.19)

Finalmente, o princípio da igualdade consiste em tratar desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades. Na atualidade, baseado no princípio da isonomia, o Poder Judiciário tem promovido importantes mudanças no meio social, como a implantação das cotas raciais em universidades públicas e a emblemática Lei Maria da Penha.

Apesar disso, o princípio da igualdade não vem sendo observado quando essa desigualdade se refere ao meio social. Diante da incapacidade do Estado em promover a igualdade social, cumpre ao Poder Judiciário tomar como base os dizeres de Rui Barbosa, julgando aqueles que tiveram oportunidades de vida desiguais de maneira desigual, a fim de promover verdadeira igualdade. 

É justamente nesse ponto que se ressalta a necessidade de uma individualização da pena voltada para observar que nenhum réu é igual a outro. Quanto ao julgamento de indivíduos inseridos em classes sociais baixas, deve-se levar em consideração que a eles não foram disponibilizadas oportunidades e, diante de suas escassas escolhas, se viram compelidos a praticar os delitos. Se o Estado não cumpriu com sua obrigação de promotor da igualdade de condições, a fim de que tivessem uma livre escolha, cabe ao Poder Judiciário no momento de aplicar o juízo de reprovação de suas condutas, atribui-lhes um menor grau de culpabilidade. 

Frederico Lourenço (2009) destaca a extrema importância da atuação estatal, por meio do Estado-Juiz (judiciário) para recompor o desequilíbrio apresentado concretamente pela violação da norma. Somente por intermédio do Poder Judiciário o cidadão pode se assegurar de que o direito está sendo observado e respeitado, o que pode lhe proporcionar uma sensação de igualdade e de ser integrante da comunidade política.

Ao valorizar a culpabilidade de um cidadão marginalizado de forma igualitária, ou também conferir exclusivamente ao infrator toda a culpa e responsabilidade por seus atos – ainda que consciente que suas escolhas foram drasticamente limitadas pela omissão do próprio Estado - o Judiciário não estará promovendo a verdadeira Justiça.   

Indubitavelmente, essa igualdade real está ligada à ideia de coculpabilidade, tendo-se em vista que o individuo socialmente desfavorecido deve ter sua conduta valorada de forma diferente do juízo de reprovação dirigido àquele que sempre teve uma posição social privilegiada, contando constantemente com benesses da vida, educação e saúde dignas, dentre outros deveres estatais negados às camadas sociais inferiores. Caso sejam apenados os dois – o desfavorecido e o privilegiado - com o juízo de reprovação na mesma intensidade, não há que se falar em igualdade material, mas tão somente em isonomia formal. (DA SILVA; GOMES, 2009, p. 10). 

A desigualdade de oportunidades enseja a desigualdade perante a lei. Como essa equidade não foi alcançada no meio social, cabe ao Poder Judiciário, instituição guardiã e provedora da Justiça, garantir que o princípio da isonomia seja respeitado no momento de julgar o infrator da norma, tratando aqueles que são iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de suas desigualdades. 

O juiz deixará de ser mero espectador da realidade desigual que aflige o cenário brasileiro e passará, portanto, a atuar de modo efetivo com fins de peritir que o almejado princípio da igualdade norteie à aplicação da pena. Assim sendo, o princípio da coculpabilidade constituirá o meio pelo qual o juiz atingirá o princípio da igualdade e, na verdade, a própria justiça. (MARÇAL; SOARES FILHO, 2011, p. 11).

Saindo do campo dos princípios e adentrando no campo das leis positivadas, a primeira previsão legal que abre espaço para a efetivação concreta da teoria da coculpabilidade consta no artigo 59 do Código Penal, que autoriza o magistrado medir a culpabilidade do agente no momento da fixação da pena.

Nesse momento, o juiz, se atentando para a culpabilidade compartilhada entre o infrator, o Estado e a sociedade, reduziria a pena a ser aplicada ao caso concreto, fixando a pena base no mínimo legal. Inclusive, a inserção da coculpabilidade como circunstância judicial é proposta no anteprojeto de reforma do código penal, apesar de que não seja defendida com grande afinco. 

A lei penal também abre espaço para a consideração da coculpabilidade para diminuição da condenação, ao determinar no artigo 66 do Código Penal que: “a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei (BRASIL, 1940)”.

Dessa forma, o magistrado poderá considerar como circunstâncias relevantes para atenuar a pena, as condições sociais do infrator e a influência do meio social na autodeterminação do indivíduo, comprometendo sua capacidade de escolha diante de suas oportunidades reduzidas. A positivação da coculpabilidade como circunstância atenuante também vem sendo considerada pelos juristas, mediante sua inserção no artigo 65 do Código Penal como atenuante genérica da pena. Para Grégore Moura (2006), essa é uma proposta mais audaz, uma vez que a previsão expressa da coculpabilidade como atenuante genérica reforçaria a necessidade de sua aplicação, bem como limitaria o poder de deliberação e interpretação do juiz, sendo mais ampla caso a previsão constasse no art. 59 do mesmo diploma legal. Porém, ainda que o legislador fizesse a opção ora mencionada, segundo a maior parte da doutrina e da jurisprudência, até assim, não poderia trazer pena aquém do mínimo legal.

Outra hipótese muito mais audaciosa consistiria em incluir no artigo 29 do Código Penal uma previsão para que, dependendo das condições sociais e econômicas do agente, caso este se encontrasse em estado de miséria, sua pena seria diminuída de um a dois terços (1/3 a 2/3), desde que tais circunstâncias o tivessem influenciado e fossem compatíveis com o delito praticado. A partir dessa previsão, quanto maior a coculpabilidade do Estado, ou seja, quanto pior as condições socioeconômicas do infrator, menor seria sua pena.

 De acordo com Grégore Moura (2006), essa é a melhor hipótese para a positivação da coculpabilidade, uma vez que permite uma maior individualização da pena aplicada, além de permitir a redução da condenação aquém do mínimo legal. Posicionamentos mais radicais defendem a existência de uma quarta hipótese de positivação, na qual a coculpabilidade seria elencada como uma das causas extintivas da punibilidade. Entretanto, tal previsão foge dos conceitos embrionários do princípio, qual seja o compartilhamento da responsabilidade entre o infrator e o Estado, transferindo como consequência, toda a culpabilidade para o Poder Público, o que não seria correto. 

Embora o infrator esteja inserido em um estado de miserabilidade, sua autodeterminação não se encontra completamente anulada, mas sim reduzida. Compactuar com a extinção de punibilidade, nesses casos, seria uma forma de incentivo à criminalidade, tendo em vista que inúmeros cidadãos encontram-se em situações de miséria e, até assim, não optam pela criminalidade.

Enfim, independentemente se a coculpabilidade será positivada ou se o magistrado, utilizando-se de sua discricionariedade, irá aplicá-la a partir das disposições legais já existentes, o importante é que se reconheça que diante da desigualdade social, os homens não podem ser julgados como iguais, devendo as desigualdades ser descontadas na hora de medir o grau de reprovabilidade. 

Reduzir a criminalização de sujeitos penalizados permanentemente pelas condições de vida é realizar de fato uma justiça mais justa, porque considera desigualmente sujeitos concretamente desiguais: que o direito realmente iguale os que considerem desigualmente indivíduos concretamente desiguais. (SANTOS, 1985, p. 214).

Se o sujeito se torna devedor do Estado ao infringir a norma, por outro lado, é também credor, tendo em vista que o Poder Público deixou de cumprir com seus deveres em relação a ele. Então, devemos entender que o Poder Judiciário, atuando como Estado-Juiz deve descontar da pena a ser aplicada, a sua parcela de responsabilidade no delito cometido, por não cumprir o seu papel de propiciar condições de vida digna a todos. 


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um momento em que a inserção positivada da coculpabilidade ainda é objeto de luta de muitos juristas, é imperioso que os magistrados tomem consciência da existência da culpabilidade compartilhada, bem como da parcela de responsabilidade do Estado nos delitos cometidos por aqueles que foram desamparados pelo Poder Público.

A culpabilidade sobre a conduta não pode recair exclusivamente sobre o infrator da norma, sem se atentar que o Estado, como sujeito de deveres, descumpre inúmeras obrigações estimuladas constitucionalmente, sem que tenha maiores consequências. Entretanto, basta o mínimo deslize de um cidadão para que este seja punido sem se analisar se nas circunstâncias sociais em que estava inserido, uma conduta diversa teria tamanha exigibilidade. 

O conceito de legalidade e o conceito de justiça não são idênticos, tampouco inteiramente diferentes. Há inúmeros casos em que a legalidade está de acordo com a justiça – no sentido de uma justiça melhor, que diga respeito a uma sociedade melhor – então, nesses casos, deve-se seguir e obedecer à lei, mas também obrigar o Estado a obedecer à lei, e obrigar as grandes corporações a obedecerem à lei, e obrigar a polícia a obedecer à lei. E, naqueles pontos em que o sistema legal não expressa uma justiça melhor, então, um ser humano razoável deve desconsiderá-las e opor-se a elas (CHOMSKY, 2014). 

Nesses casos em particular, ainda que o infrator tenha descumprido a lei, o reconhecimento da coculpabilidade se refere a uma questão de justiça. Não é justo que o Estado exija, com amplo grau de reprovabilidade, que o cidadão cumpra as normas legais, quando ele próprio não as cumpriu, desamparando-o à própria sorte, não lhe garantindo meios para que, de forma legal e lícita, sustentasse uma vida digna.

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Certamente nunca será possível a criação de um sistema de justiça ideal, assim como a criação uma sociedade ideal. Isso porque os seres humanos são muito limitados e demasiadamente tendenciosos, além de uma série de outros fatores. Mas são capazes – e devem agir como seres humanos sensíveis e responsáveis a partir dessa capacidade – de imaginar e de agir visando à criação de uma sociedade melhor (CHOMSKY, 2014). 

Só existe justiça em um julgamento igualitário quando impera igualdade na sociedade, sendo a lei cumprida por todos os cidadãos, inclusive pelo próprio Estado. Contudo, diante da imperativa desigualdade social existente, a luta pelo reconhecimento da coculpabilidade representa a luta por uma sociedade mais justa.


REFERÊNCIAS

 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Martin Claret: São Paulo, 2003.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DAVID, Rebeca Paula Almeida. O princípio da coculpabilidade:: a responsabilidade conjunta do Estado nos delitos praticados pelos cidadãos marginalizados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4657, 1 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47845. Acesso em: 5 nov. 2024.

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