Em 05 de abril de 2016, fomos surpreendidos com a decisão do Ministro Marco Aurélio Mello do Supremo Tribunal Federal - STF que “determinou”, ou melhor, impôs ao presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que receba o pedido de impeachment do vice-presidente Michel Temer e o envie para análise de uma comissão especial a ser formada na respectiva Casa.
A decisão foi provocada pelo advogado Mariel Márley Marra, de Minas Gerais, que recorreu ao STF para questionar o mérito da decisão de Cunha que entendeu não haver crime de responsabilidade e consequentemente arquivou um processo que o mesmo apresentou contra Temer, em dezembro do ano passado.
O advogado defende a ocorrência de crimes de responsabilidade por parte do Vice-Presidente tendo em vista que Temer editou decretos no ano de 2015, abrindo créditos suplementares incompatíveis com a meta do superávit primário e sem autorização do Congresso.
Em sua visão, como foi esse o principal argumento de Eduardo Cunha para instaurar o processo de impeachment contra Dilma, restaria mais que comprovada à ofensa ao princípio da isonomia entre as duas ações.
A presente discussão aqui em debate não se trata do mérito do impeachment por atos praticados pelo vice-presidente ao longo de seu mandato, mas se o STF teria legitimidade de impor tal decisão ao Poder Legislativo.
I - DO TEOR DA DECISÃO
Fazendo-se uma síntese dos fundamentos expostos, o Ministro do STF manda que Cunha decida da mesma forma como procedeu com o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em dezembro do ano passado.
Marco Aurélio entende que o recebimento de um processo por crime de responsabilidade pelo presidente da Câmara deve tratar apenas de aspectos formais e não analisar o mérito das acusações. Na peça, o ministro diz que Cunha apreciou o mérito da acusação, “queimando etapas que, em última análise, consubstanciam questões de essencialidade maior”.
Os documentos que instruem a peça primeira permitem concluir pelo desrespeito aos parâmetros relativos à atuação do Presidente da Casa Legislativa, pois, embora tenha reconhecido, de maneira expressa, a regularidade formal da denúncia, procedeu a verdadeiro julgamento singular de mérito, no que consignou a ausência de crime de responsabilidade praticado pelo Vice-Presidente da República, desbordando, até mesmo, de simples apreciação de justa causa
Em sua decisão, Marco Aurélio diz que não “está a emitir qualquer compreensão quanto à conduta do Vice-Presidente da República, revelada na edição dos decretos mencionados”. “No caso, a controvérsia envolve controle procedimental de atividade atípica do Poder Legislativo”, completou.
II - DO PRINCIPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
O tema da separação de poderes tem sido objeto de considerações ao longo da história por grandes pensadores e jurisconsultos, dentre os quais podemos citar Platão, Aristóteles, Locke, Montesquieu, entre outros, que culminaram no modelo tripartite conhecido atualmente, inclusive como princípio constitucional no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 2º da CF/88.
Inicialmente, precisamos buscar as acepções desse princípio fortemente inspirado na teoria da separação dos poderes escrito no livro “O espírito das Leis’ de Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, mais conhecido como Monstesquieu, atualmente consagrada em muitas das modernas constituições internacionais.
A regra da teoria tripartite dos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário vem sendo observada em todas as constituições federais brasileiras com a exceção da de 1824, que estipulava o Poder Moderador como uma forma de centralizar o Poder nas mãos do Imperador.
Para evitar ocorrer ou, pelo menos, amenizar o choque de competências, conflitos, interesses e prestígios, a nossa Constituição de 1988 tratou por detalhar analiticamente os limites de cada Poder para uma melhor harmonia entre as esferas, visando sempre à imparcialidade.
Funciona como uma ferramenta expressamente detalhada ao longo do texto constitucional, sendo denominada no ordenamento jurídico brasileiro de teoria dos freios e contrapesos ou mais conhecida como checks and balances, na doutrina norte-americana, objetivando evitar excessos dos Poderes ou exorbitância de competências.
O sistema de freios e contrapesos consiste na garantia de manutenção do equilíbrio constitucional entre os Poderes do Estado, sendo certo que, em face de determinada ação ou omissão do Executivo, Legislativo ou Judiciário, o contraste constitucional que um poder exercer para contê-lo (freio) ou para restabelecer o equilíbrio (contrapeso) constitui um freio ou contrapeso ao dito Poder.
Dessa forma, todo Poder pela teoria dos pesos e contrapesos executa um controle sobre os atos dos demais para evitar os excessos como, por exemplo, o Executivo exerce controle sobre o Legislativo quando realiza: (i) medidas provisórias, (ii) iniciativa de leis, (iii) veto, (iv) delegação legislativa; e sobre o Judiciário quando: (i) concessão de indulto e comutação de penas, (ii) nomeação dos membros do STF, STJ, STM, TRFs, TRTs, TREs.
O Legislativo exerce controle sobre o Judiciário quando: (i) aprecia as propostas orçamentárias, (ii) disciplina a organização judiciária, (iii) cria, transforma e extingue cargos, (iv) aprova a escolha dos membros do STF, STJ, TST, STM;
Como também exerce controle sob o Executivo quando: (i) aprova pelo Congresso Nacional tratados internacionais, (ii) susta atos normativos que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa, (iii) impeachment, (iv) aprova escolha dos titulares de certos cargos públicos [art. 52, III, CF], (v) criação de CPI´s, (vi) rejeita o veto.
O Controle do Poder Judiciário sobre o Executivo e Legislativo se baseia no controle de constitucionalidade de leis e atos normativos, embasado no princípio da inafastabilidade de jurisdição previsto no artigo 5º, inciso XXXV.
No que pertine ao exercício das funções constitucionais de cada poder, calcada no princípio da especialidade, é interessante escrever o que preleciona Alexandre de Moraes em seu livro Direito Constitucional[1]:
A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de poderes”, que consiste em distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem ser atribuídas a três órgão autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade, foi esboçada pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política”, detalhada posteriormente, por John Locke, no Segundo Tratado de Governo Civil, que também reconheceu três funções distintas, entre elas a executiva, consistente em aplicar a força pública no interno, para assegurar a ordem e o direito, e a federativa, consistente em manter relações com outros Estados, especialmente por meio de alianças. E, finalmente, consagrada na obra de Montesquieu O Espírito das Leis, a quem devemos a divisão e distribuição clássicas, tornando-se princípio fundamental da organização política liberal e transformando-se em dogma pelo art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e é prevista no art. 2º de nossa Constituição Federal
Dessa forma, todo Poder possui sua função típica e sua função atípica conforme o quadro abaixo:
ÓRGÃO |
FUNÇÃO TÍPICA |
FUNÇÃO ATÍPICA |
LEGISLATIVO |
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EXECUTIVO |
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JUDICIÁRIO |
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Pode-se inferir que uma das regras básicas deste Princípio é a harmonia entre os poderes. A partir desse norte, não se admite a interferência de um Poder sobre o outro, nem, em regra, o exercício de uma função de um Poder por outro, muito menos a desobediência por um Poder ao que foi instituído ou efetivado por outro Poder dentro de sua competência Constitucional.
Neste contexto, não cabe ao Poder Executivo e ao Legislativo desobedecer ordem do Poder Judicial, nem a este e aquele descumprirem as leis instituídas pelo Poder Legislativo, nem estes dois últimos interferirem no regular exercício das funções reservadas ao Poder Executivo.
III - DA NÍTIDA OFENSA
Tendo por base o princípio da separação dos poderes, a Câmara dos Deputados enviou parecer ao STF afirmando que a Corte “nunca, jamais” poderia determinar o início de um processo de impeachment, em substituição ao presidente da Casa.
Em um trecho do parecer divulgado, a Câmara se refere a uma efetiva ordem do Supremo para obrigar a Casa a iniciar um impeachment:
Nunca, jamais, pode se admitir tamanha intervenção em ato próprio de outro Poder da República, a ponto de autorizar a substituição da competência do órgão legislativo por decisão judicial,
No parecer, a Câmara argumenta que só cabe ao presidente da Casa analisar as denúncias por crime de responsabilidade contra presidentes, vices e ministros e que o Judiciário não pode rever tal exame, a não ser “em situações excepcionais, quando presente induvidosa ilegalidade e abuso do poder, aferível a partir de fatos absolutamente certos e inequívocos”.
Mesmo assim, alega a Câmara, o máximo que o STF poderia fazer em tal situação seria determinar que fosse feita nova análise de um pedido de impeachment pelo presidente da Câmara.
O próprio STF, revendo seus julgados sobre o rito de impeachment adotado em 1992 contra o ex-presidente Collor, manteve seus entendimentos conforme as recentes jurisprudências:
Denúncia contra a Presidente da República. Princípio da livre denunciabilidade popular (lei nº 1.079/50, art. 14). Imputação de crime de responsabilidade à chefe do Poder Executivo da União. Negativa de seguimento por parte do presidente da Câmara dos Deputados. Recurso do cidadão denunciante ao plenário dessa Casa Legislativa. Deliberação que deixa de admitir referida manifestação recursal. Impugnação mandamental a esse ato emanado do presidente da Câmara dos deputados. Reconhecimento, na espécie, da competência originária do Supremo Tribunal Federal para o processo e o julgamento da causa mandamental. Precedentes. A questão do judicial review e o princípio da separação de poderes. Atos interna corporis e discussões de natureza regimental: apreciação vedada ao poder judiciário, por tratar-se de tema que deve ser resolvido na esfera de atuação do próprio congresso nacional ou das casas legislativas que o compõem. Precedentes. Parecer da Procuradoria-Geral da República pelo não provimento do agravo. Motivação per relationem. Legitimidade jurídico-constitucional dessa técnica de fundamentação.” (MS 33.558- AgR, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 25-11-2015, Plenário, DJE 21-3-2016.).
Apresentada denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade, compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (art. 51, I, da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento da denúncia. (...) Há três ordens de argumentos que justificam esse entendimento. Em primeiro lugar, esta é a única interpretação possível à luz da Constituição de 1988, por qualquer enfoque que se dê: literal, histórico, lógico ou sistemático. Em segundo lugar, é a interpretação que foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal em 1992, quando atuou no impeachment do então Presidente Fernando Collor de Mello, de modo que a segurança jurídica reforça a sua reiteração pela Corte na presente ADPF. E, em terceiro e último lugar, trata-se de entendimento que, mesmo não tendo sido proferido pelo STF com força vinculante e erga omnes, foi, em alguma medida, incorporado à ordem jurídica brasileira. Dessa forma, modificá-lo, estando em curso denúncia contra a Presidente da República, representaria uma violação ainda mais grave à segurança jurídica, que afetaria a própria exigência democrática de definição prévia das regras do jogo político. Partindo das premissas acima, depreende-se que não foram recepcionados pela CF/1988 os arts. 23, §§ 1º, 4º e 5º; 80, 1ª parte (que define a Câmara dos Deputados como tribunal de pronúncia); e 81, todos da Lei nº 1.079/1950, porque incompatíveis com os arts. 51, I; 52, I; e 86, § 1º, II, todos da CF/1988. (...) O rito do impeachment perante a Câmara, previsto na Lei nº 1.079/1950, partia do pressuposto de que a tal Casa caberia, nos termos da CF/1946, pronunciar-se sobre o mérito da acusação. Em razão disso, estabeleciam-se duas deliberações pelo Plenário da Câmara: a primeira quanto à admissibilidade da denúncia e a segunda quanto à sua procedência ou não. Havia, entre elas, exigência de dilação probatória. Essa sistemática foi, em parte, revogada pela Constituição de 1988, que, conforme indicado acima, alterou o papel institucional da Câmara no impeachment do Presidente da República. Conforme indicado pelo STF e efetivamente seguido no caso Collor, o Plenário da Câmara deve deliberar uma única vez, por maioria qualificada de seus integrantes, sem necessitar, porém, desincumbir-se de grande ônus probatório. Afinal, compete a esta Casa Legislativa apenas autorizar ou não a instauração do processo (condição de procedibilidade). A ampla defesa do acusado no rito da Câmara dos Deputados deve ser exercida no prazo de dez sessões (RI/CD, art. 218, § 4º), tal como decidido pelo STF no caso Collor (MS 21.564, Rel. para o acórdão Min. Carlos Velloso).” (ADPF 378-MC, rel. p/ o ac. min.Roberto Barroso, julgamento em 16-12-2015, Plenário, DJE de 8-3-2016)
Como se pode perceber da simples leitura dos julgados a respeito do entendimento do Supremo, a decisão do Ministro Marco Aurélio vai de encontro à jurisprudência pacífica recentemente reconfirmada pelo Colendo Pretório Excelso.
Está perfeitamente configurada a ofensa direta ao texto constitucional pelo guardião da constituição, aquele que mais deve zelar pelo fiel cumprimento e interpretação das leis, uma vez que trata-se de um juízo político pelo Poder Legislativo, tanto a abertura do procedimento pela Câmara quanto o seu julgamento pelo Senado, não podendo o Supremo invadir esfera de competência que foi delegada expressamente pelo legislador originário ao Poder Legislativo.
Agindo desse modo, o STF acaba por exercer uma espécie de controle hierárquico ilegal, fruto de um “Poder Hierárquico Putativo Hipotético”, daí poderiam se legitimar as faculdades de supervisão, coordenação, orientação, fiscalização, aprovação, revisão e avocação das atividades do Poder Legislativo e consequentemente a imposição da abertura do processo de impeachment.
Pois o correto seria apenas um controle de legalidade, sem fundamento hierárquico, uma vez que não há o que se falar em subordinação entre os Poderes. Como bem se expressou o parecer da Câmara, jamais em um Estado Democrático de Direito alguém poderia “rasgar” as garantias assecuratórias previstas constitucionalmente, ainda mais quando se trata do agente, Guardião, de zelar pela correta interpretação e aplicação da Lei.
IV – REFERÊNCIAS
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Correio do Estado, STF manda cunha dar andamento a pedido de impeachment de Temer, disponível em: <http://www.correiodoestado.com.br/politica/stf-manda-cunha-dar-andamento-a-pedido-de-impeachment-de-temer/274852/> acessado em 05 de abril de 2016.
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COUCEIRO, Julio Cezar. Princípio da Separação de Poderes em corrente tripartite. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 94, nov 2011. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?artigo_id=10678&n_link=revista_artigos_leitura>. Acesso em abr 2016.
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Planalto, Constituição Federal, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>, acessado em 05 de abril de 2016.
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SOUZA, José Alves de. O Princípio da separação de poderes/funções na Constituição de 1.988. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 abr. 2014. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.47764&seo=1>. Acesso em: 05 abr. 2016.
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STF, A Constituição e o Supremo, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=11>, acessado em 05 de abril de 2016.
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STF, A Constituição e o Supremo, disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=678>, acessado em 05 de abril de 2016.
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Wikipédia, Montesquieu, disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Montesquieu> acessado em 05 de abril de 2016.
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 385