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Um enfoque sobre o erro médico

09/02/2004 às 00:00
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Com o advento do Código de Defesa do Consumidor1 (Lei 8.078/90) e a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais2 para o julgamento das infrações de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95), houve significativa dinamização das relações jurídicas sob a égide desses dois diplomas legais, seja facultando ao juiz a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (art. 6º, VIII do CDC), seja facilitando o acesso à justiça – sem a obrigatoriedade de advogado em alguns casos, art. 9º caput e § 1º da Lei 9.099/95 – ou utilizando-se de um procedimento mais célere no julgamento das demandas (art. 2º caput, Lei 9.099/95) o que, inegavelmente, influenciou o surgimento de um novo perfil de cidadão: o cidadão consciente, que luta pelos seus direitos. Nesse contexto e, com o enfoque cada vez mais ativo da mídia sobre as questões sociais, toma corpo um novo tema: o erro médico.

Atualmente, o problema se apresenta nos seguintes termos: de um lado a classe médica assustada e insegura diante do "fantasma" de uma ação judicial ou administrativa decorrente de erro médico; de outro, inúmeras vítimas buscando amenizar seu sofrimento em demandas judiciais. Cabe, antes de tudo, diferençar o erro médico do acidente profissional ou erro profissional: Naquele, o médico, no exercício da profissão, atua com culpa em qualquer de suas modalidades: imprudência, negligência ou imperícia. Já este último ocorre quando, mesmo empregados os procedimentos indicados pela Medicina chega o médico a uma conclusão errada no diagnóstico, intervenção cirúrgica, etc. Embora possa haver naturais divergências numa área ainda tão incipiente para o nosso Direito, uma coisa é certa: só se pode falar em erro médico se houver dano. A responsabilidade médica, isto é, o dever de responder pelo dano causado, pode se dar nas áreas: civil, criminal e administrativa, isolada ou concomitantemente.

O primeiro ato médico para o restabelecimento da saúde do paciente é o diagnóstico, que consiste na identificação da(s) moléstia(s) que acomete(m) o indivíduo para, então, eleger-se a terapia melhor indicada pela ciência médica ao caso. Ocorrendo erro no diagnóstico, deve-se levar em consideração dois fatores: as condições materiais de atendimento de que dispunha o profissional para identificar a enfermidade e as condições pessoais do paciente, ou seja, as reações adversas apresentadas pelo organismo deste diante de recurso comumente adotado a pacientes em situação semelhante. Evidentemente que a falta de moderna aparelhagem, a super lotação do hospital/clínica em caso de acidentes de grandes proporções, aliados à urgência de atendimento, são particularidades que devem ser levadas em conta pelo julgador na avaliação da responsabilidade médica em eventual resultado adverso oriundo de atendimento em tais circunstâncias. Não raras vezes, pacientes atingidos pela mesma enfermidade, são submetidos ao mesmo tratamento apresentando reações absolutamente contrárias: um a cura, outro o agravamento de seu estado de saúde. Ao fortuito deve ser atribuído esse resultado não desejado, e, a nós cabe entender que, apesar dos reconhecidos avanços da Medicina, ela encontra desafios tão grandiosos quanto à causa que abraçou.

Em que pese o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil3 (Lei 10.406/2002) terem previsto hipóteses de responsabilidade objetiva na qual a reparação do dano é posta em primeiro plano prescindindo-se da pesquisa sobre a culpa do agente, bastando seja este o responsável pela atividade causadora de prejuízo a terceiro, a regra, no que se refere à responsabilidade dos profissionais liberais, continua sendo a da responsabilidade subjetiva, que leva em conta o aspecto subjetivo da conduta para a avaliação da culpa, isto é, se o agente agiu com dolo ou culpa, para, posteriormente, buscar-se mensurar a extensão do dano para a compensação patrimonial e/ou moral. Assim, o art. 14, §4º do CDC: "A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa".

A responsabilidade médica civil, criminal ou ética se arrima no nexo de causalidade, isto é, na relação de subordinação, ou de dependência, que deve haver entre o resultado danoso ao paciente e a ação ou omissão do profissional. Significa dizer que o dever de responder pelo dano surge quando resta demonstrado, inequivocamente no processo, que o comportamento passivo ou ativo do médico foi determinante para prejudicar a saúde da pessoa sob seus cuidados.

Complexa é a prova do nexo causal quando este provém de múltiplos fatores. Nestes casos, Jaime Santos Briz ensina que se deve levar em conta que causa é a eficiente ou decisiva, que, por suas circunstâncias, determina o dano5.

O art. 13, caput, segunda parte, do Código Penal Brasileiro, define causa como "a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido4," adotando claramente a teoria da equivalência das condições ou conditio sine qua non para se determinar a causação do resultado. Convém ressaltar que esta teoria encontra seus limites no elemento subjetivo do tipo, qual seja, dolo ou culpa, não regredindo, como objetam alguns, numa cadeia infinita a incriminar condutas sem qualquer ligação direta com o evento final.

Surgindo concausas – causas que, ligadas à primeira, concorrem para o surgimento do resultado – que podem ser preexistentes, concomitantes ou supervenientes, adverte Mirabete que apenas estas últimas têm o condão de desfazer a relação de causalidade: "se estiver ela – a causa superveniente – fora do desdobramento físico necessário, normal, o agente não é punido pelo resultado; se estiver dentro desse desdobramento necessário, o agente é responsável pelo evento"7. Como exemplo cita o caso de morte da vítima em decorrência de cirurgia facial, que não tinha por objetivo afastar perigo de vida provocado pela lesão, mas tão só corrigir o defeito por esta causado.

A nosso ver as considerações feitas pelo ilustre penalista, relativamente às concausas, também devem repercutir em âmbito cível, já que o critério para a identificação da causa responsável pelo dano, entre as várias concorrentes, se mostra extremamente eficaz para a solução do problema, afastando tudo aquilo que, por si só, não conseguiria desencadear o resultado indesejado.

Jaime Santos Briz, no entanto, adota postura um tanto quanto radical: "para a existência da relação de causalidade entre a ação ou omissão e o resultado danoso é irrelevante a hierarquia da causa, posto que a condição posta pelo agente não necessita ser a única, a última ou a mais imediata e próxima ao evento danoso. Provado o ato inicial culposo do agente, surge a responsabilidade, qualquer que tenha sido a causa que desencadeou o dano".

Como dirimentes da responsabilidade do médico, podem ser citados: a culpa da vítima, exclusiva ou concorrente, o caso fortuito e o fato de terceiro não imputável ao médico. Sempre que a vítima, voluntariamente, não segue as recomendações médicas, transgredindo o regime alimentar imposto, não tomando os medicamentos da forma prescrita pelo médico ou adotando qualquer outro comportamento a prejudicar seu estado de saúde é exclusivamente responsável pelos danos que porventura ocorrerem. Em havendo culpa concorrente entre paciente e médico, há um abatimento no valor da indenização proporcional à culpa da vítima. Diferentemente, na responsabilidade penal, não há compensação de culpas e cada um responde na medida de sua culpabilidade.

O caso fortuito é um fato ligado à pessoa que tem como característica principal a imprevisibilidade, como por exemplo, a hemorragia expulsiva, que pode ocorrer durante a cirurgia de catarata devido ao aumento repentino dos níveis de pressão intraocular, o que provoca a expulsão de todo o conteúdo do globo ocular através das incisões cirúrgicas causando a perda total da visão do olho atingido.

Por último, a enfermeira que deixa de esterilizar o material cirúrgico e, em virtude disso, instala-se infecção generalizada que causa a morte do paciente. Para efeito de responsabilidade civil configura-se a solidariedade passiva entre médico, enfermeira e até mesmo o hospital, com base nos arts.932, III, 933 e 942, do Código Civil de 2002 e arts. 14, caput, 25, §1º e 34 do CDC. Ao paciente caberá escolher contra quem intentar a indenizatória, e, ao demandado, restará fazer uso da ação regressiva correspondente. Em matéria criminal resolve-se tal questão com recurso ao princípio da confiança, segundo o qual, em qualquer atividade compartilhada, cada um mantém a confiança de que o outro se comportará conforme o dever objetivo de cuidado, enquanto não tenha razão suficiente para acreditar no contrário. Se ao médico não era possível desconfiar do desvio de conduta de sua auxiliar, sobre esta repousa a culpa pelo dano ao paciente. Caso contrário, estar-se-á diante de uma hipótese de concurso de pessoas (co-autoria) em crime culposo: imperícia da enfermeira e negligência do médico, por exemplo.

Cumpre salientar que não se confundem imperícia e inobservância de regra técnica. Na primeira há deficiência de conhecimentos técnicos, falta de habilidade prática; já na segunda não há desconhecimento de regra, porém, seu descumprimento, o que conduz a uma circunstância de aumento da pena em um terço tanto no homicídio culposo (art. 121, §4º primeira parte, do Código Penal) quanto na lesão corporal culposa (art. 129, §7º do Código Penal), provocados por erro médico.

Para ter seu pedido acolhido pelo julgador, o autor da demanda deverá fazer prova de seu direito (art. 333, I da Lei 5.869/73). Não obstante essa regra geral da lei processual civil brasileira, em processos de difícil cognição, como o são os de erro médico, a Lei 8.078/90 (art. 6º, VIII do CDC) faculta ao juiz a inversão do ônus da prova em favor do consumidor (o paciente), em virtude de sua hipossuficiência não só econômica, mas sobretudo, técnica. O Código de Processo Penal, por sua vez, não flexibiliza a regra do ônus da prova e, no art. 156 primeira parte dispõe: "a prova da alegação incumbirá a quem a fizer".

A deficiência do aparelho formador; o acúmulo de trabalho por parte dos médicos; a falta de condições adequadas de atendimento nos hospitais e clínicas; a descontinuidade de atualização profissional e o abandono, pelo médico, do compromisso ético para com a profissão6, despontam, sem sombra de dúvida, como as principais causas da eclosão do erro médico no Brasil. Diante do aumento significativo do número de casos de erros médicos no Brasil, o Conselho Federal deve avocar função pedagógica através de campanhas educativas junto aos Conselhos Regionais e estes, junto a seus filiados. A punição dos infratores, a cargo dos Conselhos Regionais, deve também ter papel conscientizador.

Paralelamente ao desenvolvimento das inúmeras áreas do conhecimento humano, o Poder Judiciário, tanto quanto os outros Poderes constitucionalmente instituídos, haverá de especializar-se a fim de que possa sanear as múltiplas e complexas formas de litígio que hão de se estabelecer. Assim, os processos oriundos de erro médico, poderão trazer resultados satisfatórios à sociedade, a partir do momento em que se implantar uma política de atendimento direcionada ao tema, partindo-se inicialmente pela criação de varas especializadas em litígios da área de saúde.

A Medicina é a mais sublime atividade profissional desenvolvida pelo homem em todos os tempos, onde a valorização da vida e da saúde humanas atinge o seu ápice. Deve ser exercida com responsabilidade, sinceridade de propósitos e respeito ao ser humano.

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Ao Direito cumpre o papel de gerir todas as relações que se desenvolvem e que têm reflexo na vida do homem. Ambas as ciências devem caminhar juntas, pois que indispensáveis à ventura humana, mantendo sempre o equilíbrio que se fizer necessário, cada qual respeitando o papel que lhe fora incumbido, desempenhando irrefutavelmente a manutenção da vida em todas as suas dimensões.


NOTAS

1. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor

e dá outras providências.

2. BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais

Cíveis e Criminais e dá outras providências.

3. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

4. BRASIL, Código penal, Código de processo penal, Constituição Federal/Coordenadora

Anne Joyce Angler. 2. ed. São Paulo: Rideel, 2001.

5. BRIZ, Jaime Santos. La Responsabilidad Civil, p. 222 e ss. apud KFOURI NETO, Miguel.

Responsabilidade Civil do Médico. 3. ed. 1998, p. 98 e 99.

6. GOMES, Júlio César Meirelles. DRUMOND, José Geraldo de. FRANÇA, Genival Veloso

de. Erro médico. 3.ed. Montes Claros: Editora Unimontes, 2002, p.85 e ss.

7. MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2001, p. 114.


BIBLIOGRAFIA

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Sobre o autor
Eduardo Sena Farias

advogado em Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Eduardo Sena. Um enfoque sobre o erro médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 218, 9 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4810. Acesso em: 23 dez. 2024.

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