1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca dispor sobre a seletividade presente no processo de criminalização do sistema penal. Para explicar tal fenômeno, mister se fez a elucidação da teoria do etiquetamento de Howard Becker, que muito bem explicou a forma como os grupos sociais, a partir da definição de quais comportamentos são certos e errados em determinado momento e espaço, etiquetam ou estigmatizam certos indivíduos que não vivem de acordo com as regras estabelecidas na sociedade.
Essa seletividade, segundo Alessandro Baratta, ocorre porque as classes sociais dominantes, na definição das condutas que devem ser tipificadas como crime, imprimem sua ideologia e dirigem o processo de criminalização para comportamentos típicos das camadas sociais subalternas, dos socialmente marginalizados.
Entretanto, esse Direito Penal que no mundo fático revela-se estigmatizador e reprodutor das desigualdades sociais, contradiz totalmente o dever ser igualitário intrínseco à noção de justiça.
Dessa forma é possível perceber que apesar do nosso ordenamento jurídico ser pautado no princípio da isonomia, estabelecido constitucionalmente no Art. 5º da Constituição Federal, no sistema penal esse discurso éuma falácia.
Teoria do etiquetamento
Howard Becker, pensador da escola positivista, defendeu no seu livro "Outsiders" que o processo de formação da seletividade penal se dá através da teoria do “labelling approach” ou teoria do etiquetamento, segundo o qual é a sociedade que atribui a etiqueta de “delinquentes” a certos indivíduos. Em outras palavras, os grupos sociais buscam traçar linhas de comportamentos para definir o certo e o errado e, a partir disso, os indivíduos que transgridem o comportamento definido como certo é considerado um “outsider” (alguém que não viveu de acordo com as regras estabelecidas). Sergio Salomão Shecaira, interpretando a teoria de Becker diz que o “outsider” passa a ser estigmatizado como uma pessoa não confiável para a vivência em grupo.
Para fundamentar tal teoria foi realizado um estudo do fenômeno conhecido como cifra negra, que representa o número de crimes que de fato são praticados mas que não aparecem nas estatísticas oficiais, o que demonstra que apesar da maioria das pessoas já terem cometido algum tipo de crime durante a vida, apenas uma ínfima parcela dos delitos serão investigados e levarão a um processo judicial que repercute em uma condenação criminal. Isso demonstra que, o risco de ser etiquetado não depende da conduta, mas da situação do agente na pirâmide social.
O princípio da isonomia
Nosso ordenamento jurídico constitucional prevê em seu artigo 5º o princípio da igualdade ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros os mesmos direitos e garantias.
Segundo as teorias que tentam legitimar o sistema penal, existem bens jurídicos, tutelados pelo Direito, que devem ser universalmente protegidos; e uma eventual conduta que viole esses bens, praticada por quem quer que seja, deve ser igualmente punida.
Dessa forma, percebe-se que na análise doordenamento jurídico brasileiro como um todo, pelo menos teoricamente, ele é pautado no princípio da isonomia, ou seja, na aplicação da lei sem qualquer distinção de raça, cor, religião ou sexo.
Entretanto, na prática da vida diária, muitos autores coadunam com a ideia de que apesar do nossa Carta Maior balizar-se no princípio da igualdade, no Sistema Penal prevalece o etiquetamento social preconizado por Becker.
A relação entre a Teoria do etiquetamento e o Princípio da isonomia
O discurso isonômico no sistema penal é uma falácia. Conforme denuncia Alessandro Baratta, o Direito Penal, como instrumento do discurso de (re)produção de poder, possui uma forte tendência a privilegiar os interesses das classes sociais dominantes, imunizando de sua intervenção condutas características de seus integrantes, e dirigindo o processo de criminalização para comportamentos típicos das camadas sociais subalternas, dos socialmente marginalizados
Contradizendo o dever ser igualitário intrínseco à noção de justiça, no mundo fático, o Direito Penal revela-se estigmatizador e reprodutor das desigualdades sociais. O Direito Penal é seletivo e possui uma clientela bem definida.
É possível notar essa seletividade em dois níveis distintos. Primeiramente, de forma abstrata, ao analisar as condutas que são escolhidas pelo legislador para serem tipificadas como crime (seletividade primária). E em um segundo momento, ao analisar o tratamento diferenciado utilizado pelas instâncias oficiais de controle e combate à criminalidade, aos indivíduos delituosos a depender de sua classe social (seletividade secundaria).
3.1 Seletividade primária
O sistema punitivo estatal elege determinadas condutas para rotular de criminosas e, consequentemente, exclui outros comportamentos. Dessa forma, crime pode ser definido como aquelas figuras escolhidas pelo legislador para compor a legislação penal.
É nesse momento de eleição dos tipos tidos como delitivos que opera a chamada seletividade primária. A escolha de certas condutas em detrimento de outras assume um viés ideológico pois o legislador traz para a regulação da vida social seus valores e concepções para a definição do que merece ser punido pelo Estado. A organização social também será definitiva para determinar quais condutas serão tipificadas como criminosas em determinado tempo e lugar, pois o delito é uma entidade variável no tempo e no espaço. Desse modo, crime pode ser entendido como o comportamento humano que os detentores do poder social decidiram que merecia ser punido.
É possível vislumbrar a relatividade que a noção de delito carrega no caso do adultério, que em determinado tempo e lugar é punido e em outros não. O que é delito hoje futuramente pode deixar de ser. Tal constatação reafirma a inexistência de delitos naturais, ou seja, fatos que carregam em si a natureza de crime.
Para Alessandro Baratta a seletividade estrutural do sistema penal é evidente no fenômeno da eleição dos delitos, pois tal sistema tende a imunizar condutas típicas das classes sociais mais abastadas e a criminalizar condutas características das camadas sociais menos favorecidas. Assim, basta observar o tratamento dispensado à criminalidade da classe tida como elite, que embora por vezes seja de grande danosidade ao meio social, tende a ser mais suave que a dispensada à média da população. Exemplo disso é o tratamento que é dado aos crimes econômico-financeiros, nitidamente mais benéficos para o infrator que o dispensado à criminalidade comum.
3.2 Seletividade secundária
A possibilidade da chamada seletividade secundária surge a partir da do momento em que a lei penal entra em vigor, pois é o momento em que o Estado concretizará o jus puniendi, ao investigar, processar e, finalmente, condenar ao cumprimento de uma pena o transgressor da norma penal incriminadora.
É nesse momento que o caráter seletivo do Direito Penal fica evidenciado, fazendo desaparecer o ideal de igualdade preconizado na Constituição Federal. Na prática é possível observar que os que são severamente punidos pelo sistema repressivo estatal são, predominantemente, integrantes das classes sociais inferiores.
Alessandro Baratta assegura que a igualdade no Direito Penal é um mito, pois esse pune os indivíduos de maneira desigual e fragmentária. Afirma ainda que a estigmatização de criminoso no meio social é distribuído de maneira desigual, a depender, sobretudo, da classe a que pertencem.
Nas palavras de Rogério Greco:
“O processo de seleção surge desde o instante em que a lei penal é editada. Valores de determinados grupos sociais, tidos como dominantes prevalecem em detrimento da classe dominada. Em seguida, já quando vigente a lei penal, surge novo processo de seleção. Quem deverá ser punido? A resposta a essa indagação deveria ser simples, ou seja, todos aqueles que descumprirem a lei penal, afrontando a autoridade do Estado/Administração. Contudo, sabemos que isso não acontece. O Direito Penal tem cheiro, cor, raça; enfim, há um grupo de escolhidos, sobre os quais haverá a manifestação da força do Estado”
Assim, consoante aduzem Eugenio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, no sistema penal “O princípio constitucional da isonomia é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela”. É evidente que, o sistema penal ao ter como alvo preferencial de punição as classes menos favorecidas socialmente, faz ruir todo o ideal de igualdade apregoado constitucionalmente.
Conclusão
Embora o Direito Penal fundamente-se em um discurso de igualdade, na vida prática esse discurso demonstra-se falacioso pois ele é, na verdade, excludente e possui uma clientela própria. Tanto na criação de leis, como no momento da operacionalização prática, as classes menos favorecidas possuem tratamento e punições diferenciados. A seletividade nesse sistema deve-se principalmente a fatores socioeconômicos.
Dessa forma, fica evidenciado a necessidade de uma releitura do sistema penal à luz da Constituição e do princípio de igualdade apregoado pelo nosso ordenamento jurídico.
Somente dessa forma, quando a aplicação das normas penais incidirem de forma isonômica sobre os indivíduos sociais, sem distinção de cor, raça, sexo ou cultura, é que nossa sociedade se aproximará do ideal de justiça.