Precatórios:uma delimitação conceitual e ontológica

18/04/2016 às 04:21
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O artigo pretende esclarecer o conceito e fundamento jurídico dos precatórios.

Sumário. Introdução. 2. O que é precatório. 3. Por que inventaram o precatório.  Considerações finais.

INTRODUÇÃO

A expedição de precatório é o último degrau no percurso enfrentado pelo particular para ter adimplido seu crédito fixado em sentença judicial transitada em julgado contra a Fazenda Pública. Contudo, apesar de tão fundamental, justamente ser o resultado do processo de execução fazendária, o conceito e fundamentos jurídicos para instituição do precatório são de certo modo obscuros até mesmo para os estudiosos do direito.

O fomento do estudo do tema se sobreleva a partir da decisão de mérito do Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 4357 e 4425. Tais decisões declararam a inconstitucionalidade da Emenda nº 62 de 2009, responsável

por promover significativas modificações ao regime. Entende-se, contudo, que a compreensão dos efeitos da supracitada decisão e seu impacto nos pagamentos efetuados pela Fazenda Pública pressupõem a nitidez da resposta aos seguintes pontos: o que é e por que existem os precatórios. Tais pontos, por esta importância, são os principais objetos do estudo ora desenvolvido.    

Com vistas a alcançar estes objetivos, dividiu-se o artigo em dois tópicos de desenvolvimento, ambos com o enfoque científico do tema. No primeiro, denominado “O que é precatório?” pretendeu-se esclarecer o conceito do instituto, através da colisão de diversos posicionamentos encontrados na doutrina. Paralelamente, optou-se pelo conceito mais adequado através da comparação do que as normas jurídico- constitucionais e infraconstitucionais dizem ser precatório.

No segundo tópico, procurou-se responder o porquê da invenção dos precatórios, através da premissa segundo a qual o Estado democrático é “produtor” e “objeto” de direito. Diante disto, verificou-se: a) Que o Estado, quando deve, também se submete a uma execução; b) Que esta Execução, por justamente se voltar contra o Estado-devedor, precisa ser diferenciada. Viu-se que a fundamentação para a existência dos precatórios se encontra nos motivos pelos quais a ordem jurídica determina esta diferenciação.

Utilizou-se, para realização do estudo, de uma análise macro e sistemática do sistema jurídico constitucional e infraconstitucional relacionado ao instituto do precatório, além da consulta de livros e artigos da doutrina nacional, centrados, principalmente, nas áreas do Direito Constitucional, Direito Processual Civil e Direito Administrativo.

  1. O QUE É PRECATÓRIO?

            Para Celso Antônio Bandeira de Mello, a noção de responsabilidade civil do Estado é noção “curial no Direito Público”, afinal, “todos os povos, todas as legislações, doutrina e jurisprudência universais reconhecem, em consenso pacífico, o dever estatal de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos” (MELLO, 2012, P. 1009).              

            Contudo, não é curial sequer ao jurista a noção de que o Estado após ser judicialmente responsabilizado a recompor o patrimônio do particular de fato o fará, ou o fará com eficiência. Este verdadeiro distúrbio do Estado democrático de direito brasileiro está intrinsecamente relacionado ao regime de precatórios, responsável por estabelecer o pagamento das condenações por quantia certa impostas à Fazenda Pública.

            Entende-se que para “sanar” (ou tentar fazê-lo) tal distúrbio é necessário, primeiro, evidenciá-lo. Para isto, deve-se explicá-lo cientificamente (KELSEN, 2000, P. 79). Logo, indaga-se: afinal, o que são, de fato, os questionados precatórios e por que surgiram?

O entendimento do precatório depende de conhecimentos prévios de várias áreas, a exemplo do Direito Constitucional, Processual Civil, Administrativo e Orçamentário. Nesse sentido, os cientistas jurídicos, na análise do tema, muitas vezes vacilam já na premissa básica: a conceitual.  Existe, deste modo, evidente dissenso doutrinário na investigação inicial do instituto. Oliveira, por exemplo, entende por precatório a “(...) comunicação emitida pelo chefe do Poder Judiciário ao titular da administração da entidade pública sucumbente em ação de conhecimento e que foi conduzida até as últimas consequências.” (OLIVEIRA, 2005, P. 46)

A mesma perspectiva, ou seja, com vistas a situar o nascimento do precatório à atividade do Presidente do Tribunal cujo juiz da execução formulada contra a Fazenda Pública está vinculado, é adotada por Fernão Borba Franco, segundo o qual:

Importa, na verdade, saber que o precatório, no sentido que se vulgarizou, é uma ordem dirigida ao membro do Poder Executivo responsável pelo pagamento, determinando que seja a verba nele discriminada incluída no orçamento do exercício seguinte, para depósito até o final desse exercício, de modo a satisfazer o crédito do exequente. (FRANCO, 2002, p. 129-130)        

           

            Esta visão, contudo, está contraposta à estrutura conceitual elaborada por outros autores, segundo os quais o nascimento do precatório antecede à atividade do Presidente do Tribunal. Em artigo vanguardista sobre o estudo do tema, Vlamir Souza de Carvalho já citava o alerta de Pontes de Miranda para a necessidade de se enxergar que “Só o Presidente que proferiu a decisão exequenda é constitucionalmente autorizado a expedir ordens de pagamento” (CARVALHO, 1982, p. 12).           

            A logicidade do alerta parte de um destrinchamento da sistemática que envolve a formação dos precatórios, qual seja: emitir ordens de pagamento se distingue – e isto precisa ser evidenciado – de emitir precatórios, pois esta atividade apenas está constitucionalmente autorizada ao juiz que proferiu a sentença no processo de execução. Neste sentido, Vlamir Souza de Carvalho afirma categoricamente no mesmo artigo: “A ordem de pagamento e a requisição não se confundem, embora a primeira ocorra em decorrência da segunda” (CARVALHO, 1982, P. 15).        

            A referida inconfundibilidade é verificada destrinchando-se as fases antecedentes e posteriores à formação do precatório. Francisco Wildo Lacerda Dantas (DANTAS, 1998, P. 16), em valiosa ajuda, lembra que após a prolação da sentença, no processo de execução, deve a Fazenda ser citada (em obediência à regra do art. 652 do CPC) para opor embargos (com processamento descrito pelo artigo 740 do CPC).

            Após o oferecimento, os embargos podem ter o mérito apreciado ou não. Caso a análise de mérito seja desfavorável à Fazenda Pública, aplicar-se-á a regra cujo imperativo submete a sentença ao duplo grau de jurisdição. Contudo, caso os embargos sejam rejeitados liminarmente ou reafirmada a improcedência da sentença pelo órgão Ad quem, será – e este marco é o referencial – requisitado o pagamento de precatório pelo Juiz da Execução ao Tribunal cuja norma lhe vincula.

Parecem mais adequadas à realidade imputada pelo direito positivo as conceituações que se originam desta linha de raciocínio. Neste sentido estão vários autores, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, na seara administrativa:

O mecanismo procedimental de pagamento das dívidas de uma pessoa de direito público, que hajam reconhecidos em juízo, tem início com as determinações, chamadas ‘precatórios’, que os magistrados expedem ordenando ao devedor que inclua na previsão orçamentária do próximo exercício verba necessária para satisfazer os precatórios que hajam sido apresentados até 1º de julho, cujos valores deverão ser corrigidos monetariamente na data do pagamento. (MELLO, 2012, p. 1062.)

            Bruno Espiñeira Lemos, em trabalho específico sobre o tema (LEMOS, 2004, P. 41):

O termo precatório deriva do latim precatorius. É especialmente empregado para indicar a requisição, ou propriamente a carta expedida pelos juízes da execução de sentenças, em que a Fazenda Pública foi condenada a certo pagamento, ao Presidente do Tribunal, a fim de que, por seu intermédio, se autorizem e se expeçam as necessárias ordens de pagamento às respectivas repartições pagadoras. (Grifo nosso)

Além de, no âmbito do Direito Processual Civil, Didier, Carneiro da Cunha, Braga e Oliveira (BRAGA, 2013, P. 725):

Não apresentados os embargos ou vindo a ser rejeitados, o juiz determina a expedição de precatório ao Presidente do respectivo tribunal para que reste consignado à sua ordem o valor do crédito, com requisição às autoridades administrativas para que façam incluir no orçamento geral, a fim de proceder ao pagamento no exercício financeiro subsequente. (Grifo nosso.)

            Para os limites propostos por este estudo e de acordo com as conceituações acima expostas, entende-se mais coerente definir precatório como: requisição (precatório “adjetivo”, no sentido de “pedido”) emitida pelo juiz prolator da sentença desfavorável à Fazenda Pública no processo de execução (marco temporal), enviada ao Presidente do Tribunal ao qual está vinculado para que este, por sua vez, sob pena de responsabilidade funcional, ordene à entidade devedora a inclusão do valor fixado em sentença na previsão orçamentária para posterior pagamento até o final do exercício financeiro seguinte à apresentação do precatório (precatório “substantivo”, no sentido de ato administrativo cujo mérito traz o quantum devido pela Fazenda)[1].

            Precatório, nestes termos, é fruto do esvaziamento do processo executivo na esfera judicial. Implica, assim, na utilização de formas indiretas de execução (possibilidade de sequestro apenas casos remotos, intervenção federal, responsabilização de servidores), pois –  como se fundamentará adiante - não é possível expropriar os bens das entidades de direito público para satisfazer o credor particular.

Tal cenário, inclusive, é evidenciado por Francisco Wildo Lacerda Dantas, em outro trabalho sobre o tema, com a consideração de que a “(...) única espécie de execução cabível contra a Fazenda Pública é a execução indireta.”, pois esta não prescinde de colaboração do devedor (DANTAS, 2001, p. 4). Vlamir de Souza Carvalho, no mesmo sentido, e com clarividência para os fundamentos – adiante analisados – da opção legislativa ao uso deste tipo de técnica pontua:

O precatório só existe e só é importante porque a administração pública, em geral, só paga seus débitos judiciais por força do precatório, em virtude do controle administrativo que deve recair sobre as importâncias entradas e saídas, e como forma de moralizar o serviço público. (CARVALHO, 1982, p. 19.)

            O conceito deste estudo parece mais adequado, pois se equilibra a imputação pelo direito positivo quanto ao que deve ser precatório. A disciplina do instituto – também aprofundada adiante – encontra-se, em síntese, no artigo 100 da Constituição Federal cujo caput tem texto com a seguinte norma:

Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. (Grifo nosso)

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Também é esse o sentido do art. 910 do Código de Processo Civil (2015):

Art. 910.  Na execução fundada em título extrajudicial, a Fazenda Pública será citada para opor embargos em 30 (trinta) dias.

§ 1o Não opostos embargos ou transitada em julgado a decisão que os rejeitar, expedir-se-á precatório ou requisição de pequeno valor em favor do exequente, observando-se o disposto no art. 100 da Constituição Federal.

§ 2o Nos embargos, a Fazenda Pública poderá alegar qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de conhecimento. (Grifo Nosso)

            Coerente com a premissa segundo a qual cabe à ciência do direito formular proposições jurídicas, sendo distintas das normas, pois estruturam proposições hipotéticas sobre estas (KELSEN, 2000, p. 80-81), não resta dúvida, pela análise do direito positivo, de que o juiz a apresentar o precatório é o responsável pela prolação da sentença. O magistrado “requisitador” é o da execução, além do mais, a atividade do requisitado, ou Juiz presidente do Tribunal, apenas se inicia com a “apresentação dos precatórios. Por fim, é a data de apresentação dos precatórios (ou data da requisição) o ponto de referência para organização da ordem de pagamento.

Logo, precatório assume a natureza jurídica de ato administrativo simples, marco inicial para processo administrativo a transcorrer no Tribunal até o adimplemento do débito. Ato administrativo, pois o juiz da execução, quando requisita ao Presidente do Tribunal a emissão de ordem para pagamento de precatório o faz despojado de seu manto jurisdicional. Além disso, há, com o ato, inauguração de processo (conjunto de vários outros atos) não jurisdicional no órgão ad quem objetivando formalizar e controlar o pagamento do débito público.

            Por fim, os pontos trazidos acima estão em perfeita simetria com as normas da Resolução nº 115 do Conselho Nacional de Justiça, responsável por dispor – em uma tentativa de uniformização nos Tribunais do país – a gestão de precatórios no âmbito do Poder Judiciário.

A Resolução, lastreada na competência do CNJ para exercer “(...) o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, bem como zelar pela observância do art. 37 da Carta Constitucional (CF, Art. 103-B, § 4º, caput e inciso II)”, determina, no artigo o artigo 4º:

Art. 4º Para efeito do disposto no ‘caput’ do art. 100 da Constituição Federal, considera-se como momento de apresentação do precatório o do recebimento do ofício perante o Tribunal ao qual se vincula o juízo da execução.

§ 1º No caso de devolução do ofício ao juízo da execução, por fornecimento incompleto de dados ou documentos, a data de apresentação será aquela do protocolo do ofício com as informações e documentação completas. (...). (Grifo nosso)

            Fixado o conceito mais adequado de precatório, segue-se à análise dos motivos e fundamentos de sua utilização.

2.POR QUE INVENTARAM O PRECATÓRIO?

É importante agora, em um aspecto mais generalista, entender o pressuposto básico para a existência dos precatórios, qual seja: a compreensão do Estado como “produtor” e “objeto” do Direito.

Após conjecturá-lo como comunidade social, e, por consequência, comunidade social normativamente definida, Kelsen definiu o Estado ”como uma ordem jurídica relativamente centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência, soberana ou imediata relativamente ao Direito Internacional e que é, globalmente ou de um modo geral, eficaz” (KELSEN, 2000, p. 321). Também afirmou ser o Estado uma Corporação (KELSEN, 2000, p. 140-141), “(...) isto é, uma comunidade constituída por uma ordem normativa que institui órgãos funcionando segundo princípio da divisão do trabalho, órgãos esses que são providos na sua função mediata ou imediatamente.” (KELSEN, 2000, p. 321).

Entender o Estado tanto como “ordem jurídica” quanto como “coorporação” inerente a uma comunidade regulada é lhe dar a possibilidade de ser sujeito de direitos com obrigações limitadas – ainda que de maneira exorbitantes em alguns casos (a exemplo da “Supremacia do interesse público sobre o privado”) – pela ordem jurídica cuja representação, a depender da abordagem conceitual ou prática, pode se lhe incumbir.

Este passo teórico, portanto, é imprescindível para a noção hoje totalmente assimilável (ou “curial” conforme o início do capítulo) de Estado ”responsável”. Se o Estado, por exemplo, assume as dívidas contraídas, subtende-se que deve pagá-las, logo, tem um dever jurídico correlato, por consequência, a uma responsabilidade. Categóricas, nesta linha, são as palavras de Kelsen: “Dizer que uma pessoa é juridicamente responsável por certa conduta ou que ela arca com a responsabilidade por essa conduta significa que ela está sujeita a sanção em caso de conduta contrária.” (KELSEN, 2000, p. 93).

O ponto chave, nesta construção é o seguinte: o dever jurídico eventualmente imputado ao Estado, e a responsabilidade correlata, são determinados pelo ordenamento jurídico, este – fechando a fórmula que se pretende evidenciar – é emoldurado (formulado\produzido) também pelo Estado (através do processo legislativo). Logo, a “fórmula” do Estado de direito é o ponto chave para compreensão da possibilidade de se executar a Fazenda pública (análise generalista) através do procedimento estabelecido por precatórios (análise específica).

Este aspecto do Estado de Direito é verificado nas seguintes palavras de Canotilho (CANOTILHO, 2003, p. 243):

O princípio do estado de direito é, fundamentalmente, um princípio constitutivo, de natureza material, procedimental e formal (a doutrina alemã refere-se a material verfahrenmassiges Formprinzip), que visa dar resposta ao problema do conteúdo, extensão e modo de proceder da actividade do Estado Ao decidir-se por um estado de direito a constituição visa conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito. Mas o que significa direito neste contexto? (...) O direito compreende-se como meio de ordenação racional e vinculativa de uma comunidade organizada e, para cumprir esta função ordenadora, o direito estabelece regras e medidas, prescreve formas e procedimentos e cria instituições. Articulando medidas e regras materiais com formas e procedimentos, o direito é, simultaneamente, medida material e forma de vida colectiva (K. Hesse). (Grifo nosso)

 Celso Antônio Bandeira de Mello (MELLO, 2014, p. 1015), na mesma linha, relembra que “(...) um dos pilares do moderno Direito Constitucional é, exatamente, a sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, aos quadros da ordem jurídica (...)”. No Brasil esta “fórmula” pode ser lida no artigo 1º da Constituição Federal de 1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político. (Grifo nosso)

Verifica-se, pelo exposto, a possibilidade de se imputar dever, responsabilizar e executar o Estado (“Fazenda Pública”). Indaga-se neste momento, sobre os motivos desta execução ser tão diferenciada da imposta ao particular. Neste sentido Kelsen, mais uma vez, esclarece que “A diferença deve ser encontrada na ordem normativa que constitui a corporação do Estado” (KELSEN, 2005, P. 261-262).

A ordem normativa brasileira, por sua vez, assenta-se nos seguintes fundamentos jurídicos para a execução diferenciada da Fazenda Pública: a) Respeito à regra da impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens públicos (Cf. Arts. 20, 26 e 225 § 1º, 231 § 4º da Constituição Federal de 1988, Arts. 100, 101 e 1.420 do Código Civil de 2002, Art. 649, I do Código de Processo Civil,  Art. 17 da Lei 8.666 de 1993); b) Respeito ao princípio da continuidade dos serviços públicos (Art. 6º da Lei 8.987 de 1995); c) Respeito ao princípio da Separação dos poderes (Arts. 2º, 60 § 4º, III CF); por fim, c) Respeito ao princípio da moralidade administrativa (Art. 37, caput CF). 

A referência Constitucional aos bens públicos (tópico “a”) está presente nos artigos 20 (pertencentes à União), 26 (pertencentes aos Estados), artigo 225, segundo o qual “todos tem direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo (...)” e artigo 231, que se refere às terras indígenas.  O Código Civil de 2002, por sua vez, conceitua bens públicos, no artigo 98 como “(...) os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.”

Neste passo, importante a lembrança de Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem “A noção de bem público, tal qual qualquer outra noção em Direito, só interessa se for correlata a um dado regime jurídico” (MELLO, 2014, p. 932). Logo, os bens públicos, no ordenamento jurídico brasileiro, são; (a) inalienáveis; pois assim determina o artigo 100 do Código Civil de 2002; (b) impenhoráveis; de acordo com a disciplina do artigo 100 da Constituição Federal (adiante esmiuçada), ademais, pelo pressuposto, estabelecido pelo artigo 649, I do Código de Processo civil, pelo qual não se pode penhorar bens inalienáveis; e, também, (c) Imprescritíveis; diante da vigência do artigo 102 do Código Civil e art. 200 do Decreto-Lei 9.760, de 5.9.1946 que regula o domínio público federal.

A ordem jurídica normativa brasileira, portanto, delimitou um regime jurídico específico para o tratamento certos bens submetidos ao domínio público que, segundo Hely Lopes Meirelles (MEIRELLES, 2014, P. 596), é expressão designativa ora do “(...) poder que o Estado exerce sobre os bens próprios e alheios, ora designa a condição desses bens.” A exteriorização deste domínio, frise-se, demonstra-se em poderes de Soberania Interna e direitos de propriedade. No que tange ao patrimônio estatal, o domínio público se evidencia por um direito de propriedade que, segundo o alerta de Meirelles, “(...) é de propriedade pública, sujeito a um regime administrativo especial.” (MEIRELLES, 2014, P. 596).

O princípio da continuidade dos serviços públicos (tópico “b”) “promove um estado ideal de coisas” (ÁVILA, 2003, p. 70) ao alicerçar, de modo diretamente assimilável, as regras descritivas do regime dos contratos administrativos e exercício da função pública. Isto, pois fundamenta, em relação aos contratos, o reconhecimento de privilégios para a Administração, e, quanto ao exercício de função pública a utilização de normas que exigem a permanência do servidor na atividade.

 Entendendo como dever imediato do princípio da continuidade dos serviços públicos a promoção de “estado ideal de coisas”, qual seja, a não paralisação dos serviços juridicamente (isto é, delimitados pela Constituição Federal) considerados públicos, infere-se que um dos deveres mediatos do mesmo, ou seja, conduta necessária ao alcance deste “estado ideal de coisas” é a preservação\proteção aos bens públicos. Daí a relação do princípio à execução diferenciada contra a Fazenda Pública e pressuposto/fundamento também, para inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade positivamente estabelecidas aos bens do Estado.

Através de uma análise histórica da execução contra a Fazenda Pública, pode-se afirmar que até 1934, com a constitucionalização do sistema de pagamento por precatórios, predominava no cenário brasileiro a ordem cronológica estabelecida e impulsionada por uma melhor “advocacia administrativa” (LEMOS, 2004, p. 49). A aparente “subordinação” do Poder Judiciário – que definia o “quantum” devido pela Fazenda Pública – ao Poder Legislativo – responsável pela votação das verbas destinadas ao pagamento – parecia indicar uma desequilibrada predominância dos interesses do Poder Executivo, ou, em termos processuais; Fazenda Pública ré provadamente devedora.

A mudança na forma de pagamento, percebida ao longo do amadurecimento do instituto, fundamentou-se, também, na necessidade de se coroar o Princípio da Separação dos Poderes (tópico “c”), disposto no Art. 2º da CFRB de 1988. Este princípio, cujo aspecto engloba a separação como divisão, controle e limitação do poder, além de constitucionalização, ordenação e organização do poder do Estado tendente a decisões funcionalmente eficazes e materialmente justas, assegura, nas palavras de Canotilho “(...) uma medida jurídica ao poder do Estado e, consequentemente, serve para garantir e proteger a esfera jurídico-subjetiva dos indivíduos e evitar a concentração de poder.” (CANOTILHO, 2003, p. 250)

O mesmo cenário é fonte da afirmação segundo a qual o pagamento através de precatórios representa conduta necessária para o estado ideal de moralidade  preconizado como princípio da Administração Pública no artigo 37 da Constituição Federal de 1988.  Tal princípio, de acordo com Leonardo José Carneiro da Cunha, “(...) relaciona-se, como se percebe, com a confiança legítima que se deve ter em frente aos atos públicos” (CUNHA, 2010, p. 359). Confiança esta ligada à boa-fé do credor em ter seus débitos adimplidos de acordo com um devido processo legal, teoricamente ínsito ao sistema de precatórios. 

As normas acima explicitadas, que fundamentam a necessidade de se diferenciar a execução contra a Fazenda Pública, derivam da mesma fonte que atribui certo patrimônio ao Estado. Frisa-se que a execução estatal diferenciada afeta, como relembra Kelsen, este mesmo patrimônio, pois: “(...) o Estado responde com o seu patrimônio pelo ilícito que um indivíduo cometeu pelo não-cumprimento do dever que, na sua qualidade de órgão do Estado, deveria ter cumprido” (KELSEN, 2000, p. 341)

Percebe-se, portanto, que esta responsabilização patrimonial está equalizada juridicamente com os fundamentos/ prerrogativas concedidas ao Estado (Sujeito de direito) pela mesma ordem “atributiva” (Estado produtor de Direito) que o cria e adjetiva.

3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Extrai-se, do presente artigo, as seguintes proposições normativas:

1. Não é curial sequer ao jurista a noção de que o Estado após ser judicialmente responsabilizado a recompor o patrimônio do particular de fato o fará, ou o fará com eficiência. Este verdadeiro distúrbio do Estado democrático de direito brasileiro está intrinsecamente relacionado ao regime de precatórios, responsável por estabelecer o pagamento das condenações por quantia certa impostas à Fazenda Pública.

      2. Há um evidente dissenso doutrinário na investigação inicial do instituto. Autores como Oliveira e Fernão Borba Franco adotam perspectiva que situa o nascimento do precatório à atividade do Presidente do Tribunal cujo juiz da execução formulada contra a Fazenda Pública está vinculado.

      3. Contudo, outros autores, a exemplo de Vlamir de Souza Carvalho, Celso Antônio Bandeira de Melo, Bruno Espiñeira Lemos, Didier, Carneiro da Cunha, Braga, Oliveira, Além de Pontes de entendem que o nascimento do precatório antecede à atividade do Presidente do Tribunal. Para estes doutrinadores, o precatório é expedido pelo juiz da execução responsável por prolatar sentença desfavorável à Fazenda Pública. 

      4. Através de uma colisão dos conceitos doutrinariamente expostos, fixou o estudo desenvolvido no presente artigo que precatório é: requisição (precatório “adjetivo”, no sentido de “pedido”) emitida pelo juiz prolator da sentença desfavorável à Fazenda Pública no processo de execução (marco temporal), enviada ao Presidente do Tribunal ao qual está vinculado para que este, por sua vez, sob pena de responsabilidade funcional, ordene à entidade devedora a inclusão do valor fixado em sentença na previsão orçamentária para posterior pagamento até o final do exercício financeiro seguinte à apresentação do precatório (precatório “substantivo”, no sentido de ato administrativo cujo mérito traz o quantum devido pela Fazenda).

      5. O conceito proposto pelo estudo parece mais adequado, pois se equilibra a imputação pelo direito positivo quanto ao que deve ser precatório, através da análise do caput do artigo 100 da Constituição, Artigo 910 do Novo Código de Processo Civil em vigor e artigo 4º da Resolução nº 115 do Conselho Nacional de Justiça. 

      6.  Os entendimentos de Hans Kelsen segundo o qual o Estado é uma “ordem jurídica” e “corporação” foram utilizado como pressuposto para compreensão dos fundamentos jurídicos para existência dos precatórios. Isto, pois, entender o Estado de acordo com estas duas vertentes é lhe dar a possibilidade de ser sujeito de direitos com obrigações limitadas pela ordem jurídica cuja representação, a depender da abordagem conceitual ou prática, pode se lhe incumbir.

7. Neste sentido, o dever jurídico eventualmente imputado ao Estado, e a responsabilidade correlata, são determinados pelo ordenamento jurídico, este – fechando a fórmula que se pretende evidenciar – é emoldurado (formulado\produzido) também pelo Estado (através do processo legislativo).

8. A ordem normativa brasileira, por sua vez, assenta-se nos seguintes fundamentos jurídicos para a execução diferenciada da Fazenda Pública: a) Respeito à regra da impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens públicos; b) Respeito ao princípio da continuidade dos serviços públicos; c) Respeito ao princípio da Separação dos poderes; por fim, c) Respeito ao princípio da moralidade administrativa.

9. Viu-se que as normas acima explicitadas derivam da mesma fonte que atribui certo patrimônio ao Estado. Portanto, a responsabilização patrimonial do Estado está equalizada juridicamente com os fundamentos/ prerrogativas concedidas ao mesmo pela ordem “atributiva” que o cria e adjetiva.

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[1] Esclarece-se que a subdivisão do conceito de precatório em sentido “adjetivo” e “substantivo” inspira-se nas considerações de Vlamir de Souza Carvalho, em estudo inicial sobre o tema. Em interessante análise, o autor divide precatório sob o aspecto gramatical e processual. Na aferição gramatical entende que pode o precatório assumir a função de adjetivo, indicando algo que se pede, ou de substantivo, quando empregado para indicar a requisição ou a carta expedida pelos juízes de execução ao presidente do tribunal. Cf. CARVALHO, Vlamir Souza de. Iniciação ao Estudo do Precatório. separata da Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, ano 19, n 76, out-dez 1982, p. 10.

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Sobre a autora
Priscila Peixinho Maia

Advogada. Pós graduanda em Direito Público e em Direito e prática previdenciária.

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