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Impeachment: Fundamento jurídico, decisão política e impacto social

21/04/2016 às 14:08
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O impeachment é um instituto de natureza mista, jurídica e política, e sua utilização como mero instrumento político o desnatura, criando uma figura sui generis de recall.

Nos dias atuais, em razão do processo de impeachment que envolve a atual Presidente da República, o assunto ganhou amplitude nos mais diversos níveis da sociedade brasileira, assemelhando-se muito aos comentários futebolísticos que permeiam o cotidiano das pessoas comuns: antes técnicos de futebol, agora juristas constitucionalistas. Qualquer discussão é válida, mesmo provenientes de leigos jurídicos e acaloradas de conteúdo ideológico e/ou partidário.

Entretanto, é responsabilidade de todos os operadores do direito e da mídia, seja impressa, sonora ou audiovisual, primar pela qualidade da notícia e, assim, ensejar debates cada vez mais robustos e menos rudimentares entre as pessoas comuns, os eleitores.

Neste ínterim, o presente artigo tem a finalidade de expor, em breves linhas, o instituto do impeachment, sua origem, sua natureza jurídica e suas consequências.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe em seu artigo 85 quais são os crimes que podem ensejar o processo de impeachment e no parágrafo único do mesmo dispositivo determina que os crimes de responsabilidade serão definidos, processados e julgados conforme lei especial a ser elaborada para tais fins, ou seja, determinou o legislador constituinte ao legislador ordinário que legislasse sobre a definição dos crimes, bem como os procedimentos e a forma de julgamento do processo de impeachment.

Ante a inércia do Poder Legislativo, após 28 anos da promulgação da Constituição Federal e 24 anos do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo, o rito de impedimento do presidente da república ainda se ampara na Lei Federal nº 1079/50, sancionada em 10 de abril de 1950, ainda sob a presidência de Eurico Gaspar Dutra, recepcionada pela atual Carta Magna, com alterações pontuais realizadas através da Lei Federal nº 10.028, de 19 de outubro de 2000.

A palavra impeachment deriva da palavra latina impedimentum, que significa impedir, proibir a entrada com os pés, etimologicamente, é a “proibição de entrar”. No inglês, atualmente, o verbo to impeach significa o ato de acusar, por em dúvida, depreciar, incriminar com o objetivo de impedir o indivíduo criminoso de, em razão da função que exerce, agir contra o interesse público.[1]

Quanto a definição e a natureza do instituto do impeachment, há grandes divergências na doutrina especializada, especialmente quanto a natureza política ou mista do processo. Sergio Resende de Barros conceitua impeachment como:

Processo destinado a apurar e punir condutas antiéticas graves, instaurado, processado e julgado por um órgão legislativo, contra um agente público, para impedi-lo de continuar no exercício da função pública, mediante sua remoção do cargo atual e inabilitação para qualquer outro cargo ou função por um certo tempo. Processo jurídico-político previsto na Constituição Federal, pelo qual altas autoridades políticas podem ser processadas e julgadas pelos chamados crimes políticos ou de responsabilidade, passíveis de aplicação de penas políticas, as quais são: a perda do cargo ou função e a inabilitação durante um certo tempo, oito anos, para exercer qualquer outro cargo público ou função[2].

Para Paulo Brossard de Souza Pinto, autor de O Impeachment: aspectos da responsabilidade política do presidente da república[3], o impeachment é um instituto que tem feição política, é instaurado e julgado segundo critérios de ordem política e tem por finalidade resultados políticos. Entende também que o impeachment se encerra com o afastamento provisório do agente processado, sendo apenas uma fase do processo de responsabilidade.

Já para José Cretella Junior[4], o impeachment é uma medida de natureza político-administrativa que objetiva desinvestir todo membro do Governo que perdeu a confiança do povo, em virtude de ter praticado algum crime de responsabilidade nas suas funções públicas.

Independentemente das posições ora expostas, importante destacar que o impeachment é o processo pelo qual altas autoridades públicas são impedidas, são retiradas de suas funções ou cargos públicos em razão da prática de crimes de responsabilidade.

Neste esteio, entendemos que o instituto do impeachment é um processo jurídico, haja vista a necessária tipificação do crime de responsabilidade, razão esta que justifica a instalação da comissão especial na Câmara dos Deputados, com julgamento político, haja vista que o julgamento é realizado exclusivamente pelo Senado Federal, sob a presidência do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, concordamos com o entendimento de que o impedimento do Presidente da República ou outras autoridades sujeitas ao mesmo instituto, possui natureza mista, jurídica-política.

E não poderia ser diferente. Se considerado somente um processo jurídico, este deveria necessariamente ser julgado pela máxima corte judiciária do país, o Supremo Tribunal Federal, e, de igual sorte, se considero somente um processo político, estaríamos diante de um recall político, instituto pelo qual o processo pode ser baseado estritamente em acusações políticas.

Corroborando com a posição de natureza mista do impeachment, o mestre José Frederico Marques manifesta que:

Uma vez que o julgamento do Senado é condição para o processo do Presidente da República pela justiça ordinária, no tocante aos crimes de responsabilidade que motivaram o impeachment, parece-nos evidente que esse juízo político tem também conteúdo criminal. Se a absolvição pelo Senado impedirá, conforme ensina a doutrina, processo ulterior pela justiça ordinária para aplicação do direito penal comum, é evidente que o julgamento do Senado não é apenas político, por envolver implicitamente uma condição de procedibilidade de natureza penal. A absolvição do Presidente da República pelo crime de responsabilidade, no juízo político, impedirá a propositura de qualquer processo ou ação penal, na justiça comum, em relação aos fatos que foram objeto do impeachment.[5]

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Desse modo, resta cristalino que o pedido de impedimento das autoridades sujeitas a tal instituto deve estar fundamentado estritamente nos crimes de responsabilidade, que, segundo determina o artigo 85, caput, são aqueles atos que atentem contra a Constituição Federal, e o parecer elaborado e votado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados deve estar adstrito à legalidade do pedido, análise estritamente jurídica e não política, cabendo neste estágio, inclusive, a tutela jurisdicional caso configurada a lesão ou ameaça de grave lesão aos direitos da autoridade acusada, inclusive o cerceamento ao contraditório e a ampla defesa.

Ainda sob o aspecto estritamente jurídico, o decreto de acusação enviado pela Câmara dos Deputados será recebido pelo Senado Federal, que designará ao acusado o amplo acesso ao libelo acusatório e designará o dia do julgamento, com a leitura da peça acusatória e os artigos de defesa, iniciando-se, assim, o julgamento e a posterior votação nominal, a qual tratar-se-á de fase estritamente política, não cabendo ao resultado da lide posterior apreciação do Judiciário.

No que se refere aos impactos do impedimento de um Presidente da República, fato notório é que tal ato deve ser considerado uma excepcionalidade em um Estado Democrático de Direito consolidado, haja vista os impactos sociais e econômicos que tal medida traz à nação, pois diferentemente de um recall político, o impeachment está (ou em regra deve estar) baseado em crimes cometidos pela autoridade máxima do país, o que, por si só, macula a história de uma nação, mesmo que tal procedimento reforce seus aspectos democráticos e a solidez de suas instituições.

Prova maior disso é que o instituto do impeachment, mesmo previsto em quase todas as grandes democracias do planeta, possui poucos registros de sua efetiva utilização em toda nossa história contemporânea, pois, como mencionado, em que pese exaltar o aspecto democrático da nação, também desnuda as fragilidades do sistema político-administrativo nacional.

Assim, com a brevidade que tal instrumento requer, sem a intenção de esgotar a matéria, entendemos que o Impeachment é um instituto de natureza mista, ou seja, de natureza jurídica e política, e que sua utilização como mero instrumento político o desnatura como instituto, criando uma figura sui generis de recall político.


BIBLIOGRAFIA

CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 1997.

NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

PINTO, Paulo Brossard de Souza. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República, 1992.

RICCITELLI, Antonio. Impeachment à brasileira: instrumento de controle parlamentar? - Barueri: Minha Editora, 2006.


Notas

[1] RICCITELLI, Antonio. Impeachment à brasileira: instrumento de controle parlamentar? - Barueri: Minha Editora, 2006, p. 01

[2] BARROS, S.R. Noções sobre impeachment, 2005 como citado em RICCITELLI, Antonio. Impeachment à brasileira: instrumento de controle parlamentar?, Minha Editora, 2006, p. 2.

[3] PINTO, P.B.S. O impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República, 1992, p. 76.

[4] CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 1997, p. 2571

[5] MARQUES, J.F. Da competência em matéria penal, 1952, p. 155

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Sobre o autor
Daniel Carvalho

Advogado especializado em Direito Público e Eleitoral. Conselheiro Estadual de Trânsito no Estado de São Paulo na gestão 2012/14. Ampla experiência em Administração Pública, especialmente nas áreas de Transportes e Trânsito. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP, Pós-graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Daniel. Impeachment: Fundamento jurídico, decisão política e impacto social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4677, 21 abr. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48317. Acesso em: 25 abr. 2024.

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