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Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor

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23/02/2004 às 00:00
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Referida norma, se bem compreendida, leva o leitor à concepção do motivo pelo qual o Diploma consumerista foi criado e, por conseqüência, de sua real importância para a sociedade moderna.

Resumo: Objetiva-se o presente ensaio jurídico a revelar o espírito normativo do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo, como resultado, sua importância funcional para o desvendar de diversos problemas ocorrentes no âmbito das relações de consumo.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. ABORDAGEM HISTÓRICA – 3. MICROSSISTEMA DE DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO – 4. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO NORMA DE ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL – 5. A IMPORTÂNCIA FUNCIONAL DO ARTIGO 1º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR: 5.1. A imutabilidade da Lei 8.078/90 por ato volitivo das partes; 5.2. A aplicação da Lei consumerista; 5.3. A defesa do consumidor como direito e dever individual e coletivo: cláusula pétrea; 5.4. Direito intertemporal; 5.5. O Código de Defesa do Consumidor como norma principiológica e os conflitos ocorrentes entre ele e outras legislações – 6. CONCLUSÕES – 7. BIBLIOGRAFIA

PALAVRAS-CHAVE: Importância – Funcional – Ordem – Pública – Cogente – Aplicação – Intertemporal – Irretroatividade – Conflitos – Consumidor


1. INTRODUÇÃO

Uma leitura desavisada do art. 1º da Lei 8.078/90 [1] poderá conduzir o intérprete à falsa impressão de que o aludido texto normativo, tão-só, retrata um programa, ou melhor, revela uma exposição sumária do objetivo maior do Código de Defesa do Consumidor.

Embora seja este um de seus papéis – enunciar que a Lei 8.078/90 estabelece preceitos de proteção e defesa do consumidor –, sua serventia não se restringe à tal função. Ao contrário, referida norma, se bem compreendida, leva o leitor à concepção do motivo pelo qual o Diploma consumerista foi criado e, por conseqüência, de sua real importância para a sociedade moderna.

Mas não é só isso: o artigo em comento informa ao operador do direito a natureza cogente da Lei 8.078/90; determina questões diretamente relacionadas com sua aplicação no direito pátrio; define sua obrigatoriedade e rigidez como norma imperativa; estabelece regra que soluciona conflitos ocorrentes na esfera do direito intertemporal; e, finalmente, regula, por meio de uma interpretação sistemática com o próprio microssistema consumerista, problemáticas atinentes a conflitos entre leis diversas e o Código de Defesa do Consumidor.

Este, pois, o objetivo do presente ensaio jurídico: revelar o espírito normativo do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo, como resultado, sua importância funcional [2] para o desvendar dos diversos problemas ocorrentes no âmbito das relações de consumo.


2. ABORDAGEM HISTÓRICA

No passado, a autonomia da vontade [3] e a liberdade de contratar se sobrepunham à própria lei. Na concepção clássica do contrato, a lei possuía papel secundário, destinado, unicamente, a permitir e a garantir a autonomia da vontade, a liberdade de contratar, e também os efeitos projetados no contrato pelos indivíduos [4].

Naquela época, os contratos, em sua maioria, eram realizados individualmente; os contratantes sentavam-se e negociavam seus conteúdo e forma antes de redigi-los. Todas as cláusulas contratuais passavam, necessariamente, pelo crivo de ambos os contratantes; todo a substância do negócio era fruto da harmonia de interesses e entendimentos dos indivíduos. Pouco interessavam, à vista disso, as situações econômica e social dos contratantes ou quaisquer desigualdades entre eles existentes. Importante, por outro lado, era garantir a vontade e a liberdade daqueles que contratavam, porquanto qualquer intromissão maior do Estado nas relações interprivadas ia de encontro à concepção liberal e voluntarista do direito contratual. A grande maioria das normas nesta matéria constituíam apenas parâmetros para interpretação dos contratos ou regras supletivas da vontade das partes [5].

Ocorre que, com a Revolução Industrial, deu-se início a um processo de estandardização dos contratos. Os fornecedores, utilizando-se da tecnologia ascendente, desenvolveram a produção em série, atingindo, conseqüentemente, a distribuição e comercialização em massa, reduzindo os custos de produção e buscando, cada vez mais, um maior número de consumidores aptos a adquirir produtos ou contratar serviços.

Aliados ao moderno sistema de produção e distribuição de massa, métodos de contratação mais evoluídos passaram a ser utilizados, destacando-se, nesse ponto, os chamados contratos de adesão. Os contratos paritários de regra passaram a exceção, existindo, hoje, em número limitado e, notadamente, em relações envolvendo particulares.

Os consumidores, então, em vez de negociar cláusulas, passaram a aderir a elas. Os contratos tornaram-se padronizados, literalmente pré-redigidos pelos fornecedores que, mediante tal técnica, adquiriram mais segurança, eficiência, agilidade, economia e praticidade nas negociações.

Ademais, da necessidade de ampliação do contingente de consumidores aptos a adquirir produtos e contratar serviços, nasceu um sistema poderosíssimo de marketing, motivador e persuasivo, capaz de induzir e controlar os consumidores. A partir de então, o consumidor não só comprava visando a atender suas necessidades básicas, mas também com intuito de consumir o que lhe foi imposto pelo marketing exacerbado.

Como resultante "desses dois processos – produtivo e mercadológico – fez-se necessário o desenvolvimento de novas formas de crédito, a fim de que o consumidor pudesse mais fácil e rapidamente adquirir o produto" [6].

O destinatário de todo esse sistema mercadológico deveria, logicamente, figurar como o maior beneficiário das transformações econômicas até então ocorridas, pois é ao consumidor que se destina toda a produção e pensando nele se aprimoram produtos e serviços; todo lucro do fornecedor provém dos consumidores. Todavia, ao revés da situação beneficiá-lo, esse processo produtivo colocou-o em situação de extrema fragilidade em relação ao fornecedor.

A autonomia da vontade e a liberdade de contratar, em razão da novel realidade socioeconômica do século XX, não mais serviam de alicerces à segurança e igualdade dos contratantes. O sistema tradicional, que não impunha limites ou regras às atividades dos fornecedores, limitava-se a garantir a efetivação das negociações firmadas, anulava, literalmente, o equilíbrio das relações ocorrentes no mercado de consumo, porquanto totalmente desarmônico à novel realidade a qual se impunha a toda a comunidade. A destemperança entre o arcaico sistema jurídico e as mudanças ocorridas na sociedade como um todo terminou por disseminar injustiças diversas, sempre em desfavor da parte menos privilegiada e mais vulnerável da relação: o consumidor.

Ante essa nova realidade, o Estado alterou sua postura tradicional, com a intenção de eliminar a predominante isonomia aparente, que existia apenas na teoria, para atingir o modelo da igualdade efetiva e real. Com esse objetivo o Direito transmudou-se. Surgiu o Estado social tutelando não só a igualdade e a liberdade dos indivíduos, mas ainda assegurando seus direitos sociais. O Direito, ao perder a função de mero coadjuvante, passou a funcionar como garante da harmonização e equilíbrio das relações [7]. O Estado passou a intervir diretamente nas relações, limitando a autonomia da vontade e a liberdade de contratar, criando instruções (leia-se "regras") de natureza cogente a serem, sempre e obrigatoriamente, observadas e respeitadas pelos contratantes [8]. De mero espectador, passou o Estado a atuar no "papel principal" das contratações, garantindo a justiça e a igualdade das relações entre particulares [9].

No Brasil, mesmo após a segunda grande guerra, em que se aprofundaram as transformações, e levaram os Estados a adotarem posturas voltadas ao social, a tendência de socialização do Direito teve pouca influência legislativa.

Somente com a Constituição Federal de 1988 é que a concepção tradicional do contrato começou a ser desacreditada no País. A Magna Carta incluiu a defesa do consumidor no plano da política constitucional; essa aparece no texto maior, entre os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, XXXII), estando também elevada à categoria de princípio geral da atividade econômica (art. 170, V) [10], e justaposta aos princípios basilares do modelo político/econômico brasileiro, como o da soberania nacional, da propriedade privada e da livre concorrência [11].

Nascido de um comando expresso na Carta Magna (art. 48 do ADCT) e, imbuído de valores constitucionais, o Código de Defesa do Consumidor é aceito como uma das leis mais democráticas editadas até hoje no Brasil, ultrapassando diversas outras legislações alienígenas, no que se refere ao âmbito de aplicabilidade, como também em modernidade e tecnicidade. Suas normas imperativas, que ganharam o campo antes dominado quase totalmente pela autonomia da vontade, têm por finalidade tutelar o consumidor, extirpando a situação de desequilíbrio em que se encontra no mercado de consumo e, por conseqüência, buscar uma realidade social mais justa e real, em conformidade com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, um dos sustentáculos mestres da ossatura do Código de Defesa do Consumidor.


3. O MICROSSISTEMA DE DIREITO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

As grandes codificações do século XX tiveram, à época, sua razão de ser e existir. Conforme preleciona Orlando Gomes, os Códigos traziam como ideal a formulação de um sistema de regras para reger, durável e plenamente, a conduta setorial de sujeitos de direito. O mundo dos Códigos – continua o citado jurista – foi o da segurança, quando os valores do liberalismo podiam ser traduzidos numa seqüência ordenada de artigos, para proteção das liberdades civis do indivíduo na sua vida privada contra as indébitas ingerências do poder político. Dessa necessidade de garantia – conclui o autor retroaludido, transcrevendo as lições de Natalino Irti –, nasceu a idéia da imutabilidade da legislação civil e da perenidade dos institutos jurídicos, principalmente a propriedade e o contrato [12].

Não possuem os Códigos, atualmente, a importância que detiveram outrora. No mundo instável, inseguro e volúvel de hoje, a resposta normativa não pode ser a transposição para um Código das fórmulas conceituais habilmente elaboradas no século passado [13]. Como forma de solucionar os problemas advindos desta novel realidade, surgiram os chamados microssistemas, verdadeiros "universos legislativos" de menor porte, com sua própria filosofia, enraizados em solo irrigado com águas tratadas por outros critérios, influxos e métodos distintos [14].

Nessa trilha, o legislador brasileiro elegeu, para a proteção dos direitos dos consumidores, a criação de um microssistema. É, pois, o Código de Defesa do Consumidor uma Lei com valores e princípios próprios, de feição multidisciplinar, já que se relaciona com todos os ramos do Direito – material e processual –, "ao mesmo tempo em que atualiza e dá nova roupagem a antigos institutos jurídicos." [15]


4. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR COMO NORMA DE ORDEM PÚBLICA E INTERESSE SOCIAL

Normas de ordem pública, também chamadas de coercitivas, imperativas, taxativas ou cogentes, são aquelas que impõem ou proíbem de maneira categórica [16]. Nader conceitua tais normas como aquelas que obrigam independentemente da vontade das partes, isso por resguardarem os interesses fundamentais da sociedade [17].

As normas imperativas, ao contrário das chamadas normas dispositivas – que se referem apenas aos interesses dos particulares, subordinando-se à vontade expressa das partes interessadas –, são, portanto, criadas com o intuito de se preservarem pilares essenciais da sociedade, motivo pelo qual aplicam-se obrigatoriamente às relações por elas reguladas, sendo, ainda, inderrogáveis pela vontade dos contratantes.

Conforme visto, o Código de Defesa do Consumidor surgiu de uma necessidade social. A manutenção das contratações baseada numa idéia liberal já, há tempos, mostrava-se intolerável no País. A produção em série com a conseqüente distribuição e comercialização em massa de produtos e serviços, mediante contratos preestabelecidos (cláusulas impostas em bloco) pelo próprio fornecedor, geraram desequilíbrio, desigualdade e injustiças irremediáveis pela legislação anterior à promulgação da Lei 8.078/90. A imposição de regras por parte dos mais fortes, de maneira unilateral e irreprimível pelo Estado, obrigava os consumidores a aderir e aceitar determinadas situações que, muitas vezes, eram responsáveis pela motivação de danos irreparáveis, porquanto a legislação material, que antes regulava as relações de consumo como um todo, apresenta um panorama de responsabilização civil baseado na idéia da culpa.

As transformações sociais – que, de regra, sempre se sucedem antes da evolução jurídica –, motivaram a inserção do princípio da defesa do consumidor na Carta Magna, e estimularam a própria criação da Lei consumerista, como uma norma taxativa, imperativa de direitos e deveres a serem respeitados pelos partícipes das relações de consumo.

Destarte, quando a Lei 8.078/90 declara, por exemplo, ser direito básico do consumidor "a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem", tal dispositivo deve ser, forçosamente, cumprido por todos os fornecedores que exploram atividades no mercado de consumo, haja vista tratar-se de um mandamento cogente, criado para preservação da incolumidade física, moral e patrimonial do consumidor. Sua inobservância, além de configurar infração penal, poderá gerar sanções administrativas e, quiçá, responsabilidade civil para o fornecedor inadimplente.

No que tange ao interesse social da norma, valem as palavras bem colocadas de Filomeno, ao asseverar que a Lei 8.078/90 "visa a resgatar a imensa coletividade de consumidores da marginalização não apenas em face do poder econômico, como também dotá-la de instrumentos adequados para o acesso à justiça do ponto de vista individual e, sobretudo, coletivo." [18]

Em verdade, a expressão "interesse social" funciona como um complemento, um reforço legislativo à proposição "ordem pública". Trata-se de uma maneira encontrada pelo legislador de robustecer a importância e necessária aplicação do Código de Defesa do Consumidor a situações que envolvam as chamadas relações de consumo [19].


5. A IMPORTÂNCIA FUNCIONAL DO ARTIGO 1º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Adiante, analisar-se-á o ponto nevrálgico do presente ensaio, qual seja, a tentativa de delimitar os aspectos funcionais do art. 1º da Lei 8.078/90, para, após, estudá-los um a um. Tais estudos serão divididos em subcapítulos próprios, evitando, assim, confusões textuais, conforme manda a melhor técnica didática.

Tendo em vista tal perspectiva, vislumbra-se, no texto normativo em comento, relevância funcional no que se refere:

a)à imutabilidade das normas do Código de Defesa do Consumidor por ato volitivo dos contratantes;

b)à aplicação da Lei 8.078/90;

c)à inviolabilidade do microssistema consumerista;

d)ao direito intertemporal; e

e) à superioridade da Lei 8.078/90, como norma principiológica, quando em conflito com outras legislações.

5.1 A imutabilidade da Lei 8.078/90 por ato volitivo das partes

Em razão de sua natureza cogente (norma de ordem pública), a Lei 8.078/90 deve ser observada e respeitada, de forma indeclinável, por todos os partícipes da relação de consumo.

O Diploma consumerista se impõe sobre a própria vontade dos contratantes, ditando regras e estabelecendo obrigações imutáveis, [20] excepcionando-se, apenas, alguns aspectos de natureza patrimonial (arts. 107 e 51, I, da Lei 8.078/90).

O Código de Defesa do Consumidor estabelece uma discriminação positiva, conferindo privilégios aos consumidores, tratando com desigualdade os desiguais, com o intuito único de alcançar uma igualdade efetiva entre os que participam da relação de consumo [21].

Nesse passo, a retroaludida legislação nada mais faz do que impor desigualdades de direito como maneira de afastar as desigualdades de fato existentes entre fornecedores e consumidores e, por conseqüência, promover a justiça social. A natureza cogente da norma – e isso é importante – impossibilita concessões legais, mesmo que expressas, do consumidor ao fornecedor; os ditames impostos pela Lei 8.078/90 deverão ser, inevitavelmente, observados, porquanto é essa a vontade do Estado, sob pena de nulidade daqueles atos praticados em desconformidade com o estabelecido pela norma de ordem pública e de função social [22].

5.2 A aplicação da Lei consumerista

O magistrado poderá aplicar as regras insertas no Código de Defesa do Consumidor ex officio, isto é, independentemente do requerimento ou queixa das partes [23], (24). Tal ocorre em razão do caráter social da norma, alicerçada num dos fundamentos da República Federativa do Brasil – a dignidade da pessoa humana –, bem como numa cláusula pétrea e, ainda, no princípio basilar constitucional da defesa do consumidor.

A saber, é perfeitamente aceitável, pois, que um juiz declare de ofício nula cláusula de eleição de foro de determinado contrato, ao fundamento de que estaria ela a dificultar o acesso do consumidor ao Judiciário, prejudicando, assim, seu direito à ampla defesa. Isso ocorre porque o caráter de norma de ordem pública implica conceber como absoluta a competência do foro do domicílio do consumidor [25], (26).

De igual maneira, poderá o juiz, ou até mesmo o Tribunal, conceder antecipação de tutela – se convencido da existência dos pressupostos necessários para tanto –, em casos que envolvam interesses amparados pela Lei 8.078/90, independentemente de pedido formulado pelo consumidor. Não é novidade que a antecipação, total ou parcial da tutela, está vinculada ao requerimento da parte, em evidente correlação com o princípio dispositivo [27], (28). Ocorre que, por ser o Código de Defesa do Consumidor uma norma de ordem pública, o princípio dispositivo é excetuado daqueles casos que importam relação de consumo, podendo o órgão judicante pronunciar-se sem se sujeitar ao pedido.

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É interessante ainda observar que as normas de ordem pública não são atingidas pela preclusão [29].

Conforme ensina Cretella Neto, "preclusão é o perecimento da pretensão de qualquer das partes à tutela jurisdicional, em virtude da perda de uma faculdade, de um poder ou de um direito processual que lhe caberia." [30] Diante da preclusão não poderá o órgão judicante decidir questões já deliberadas nos autos, seja em decisões interlocutórias, seja na própria sentença. Noutras palavras, ultrapassado o momento procedimental próprio (fase procedimental) para a prática de determinado ato, ou tendo esse já sido realizado, ou, ainda, sendo incompatível com outro anteriormente consumado, diz-se que ocorreu a preclusão [31].

Como as normas de ordem pública não são atingidas pela preclusão – afinal resguardam interesses fundamentais da sociedade –, não estará o magistrado impossibilitado de decidir acerca das questões reguladas pela Lei 8.078/90 não resolvidas em momento apropriado, isso a acontecer, necessariamente, antes ou no momento de ser proferida a sentença de mérito, porque, cumprido o ofício jurisdicional (art. 463 do CPC) impossível é ao juiz o reexame do processo. De igual forma, é crível que o órgão colegiado reexamine ex officio tais questões (atinentes ao Código de Defesa do Consumidor), por não se sujeitar aos efeitos preclusivos das decisões monocráticas, pouco importando haver ou não a parte interposto agravo retido; poderá, ainda, examinar, independentemente de impulso dos litigantes, questões não deliberadas – embora suscitadas no processo – pelo juízo unipessoal.

5.3 A defesa do consumidor como direito e dever individual e coletivo: cláusula pétrea

Recentemente, baixou-se no País Medida Provisória destinada a afastar a incidência de artigos do Código de Defesa do Consumidor para o fornecimento de serviço essencial de energia elétrica. Referido texto normativo, no que toca à parte que buscava frustrar a aplicação da Lei consumerista, foi, logo depois de sua publicação, tornado sem efeito, haja vista as incessantes manifestações da opinião pública em desfavor da verdadeira afronta à Constituição Federal que ele representava [32].

Uma rápida leitura do artigo inaugural do Código de Defesa do Consumidor induz o leitor à inarredável conclusão de que esta Cartilha legal está enraizada na Constituição Federal, verdadeiramente entrelaçada a ela.

É de se saber que a exegese de uma lei infraconstitucional deve, indubitavelmente, ser executada com verticalidade, isto é, à luz dos valores e princípios impostos pela Magna Carta, principalmente quando a legislação a ser interpretada possui domicílio certo em cômodos – privilegiados, diga-se – constitucionais.

Com efeito, a defesa do consumidor foi erigida pela atual Constituição Federal à categoria de direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º, XXXII), fator esse que garante sua condição de cláusula pétrea, conforme se depreende da leitura do art. 60, § 4º, IV, do mesmo Diploma legislativo.

É clara, à vista disso, a preocupação do legislador constituinte com as modernas relações de consumo e com a necessidade de proteção do hipossuficiente [33]. Isto porque, estar entre o rol de direitos e garantias fundamentais significa ter função valorativa, servindo-se como vetor para soluções interpretativas; exprime, outrossim, o reconhecimento de valores e motivações que serviram de inspiração às aspirações dos constituintes originários [34]. Eis, aí, os motivos pelos quais o legislador constitucional declarou, expressamente, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Com tal medida, o Poder Constituinte originário objetivou assegurar a inteireza da Constituição, impossibilitando que futuras reformas em seu texto comprometam ou fraturem sua ossatura normativa.

Nesse sentido, preleciona Mendes – citado por Martins em trabalho de peso –, tratando sobre o Direito alemão, que as chamadas cláusulas pétreas traduzem, em verdade, "um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade. É que, como ensina Hesse, a Constituição contribui para a continuidade da ordem jurídica fundamental, na medida em que impede a efetivação de um suicídio do Estado de Direito democrático sob a forma da legalidade." [35]

É importante observar: a limitação provém da própria Constituição Federal, ou seja, é ela que determina a impossibilidade de deliberação de propostas tendentes a abolir quaisquer direitos e garantias individuais. Na melhor interpretação, isso significa que seja qual for a "alteração", ela implicará abolição do dispositivo reestruturado [36]. Portanto, e trazendo a discussão para o campo do tema proposto neste trabalho, é impossível, no ordenamento jurídico brasileiro, a instituição de textos normativos que tenham por fim afastar ou impedir a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor em questões que envolvam relações de consumo – como, aliás, pretendeu a Medida Provisória aludida no primeiro parágrafo deste tópico. Isto porque a Lei 8.078/90 nasceu de expressa disposição constitucional, para dar concretude às regras e princípios inerentes à defesa do consumidor preceituados na Carta Magna. Afastar a aplicação da Lei consumerista – seja por meio de medidas provisórias, leis, portarias, tratados ou convenções internacionais, etc. – é, pois, negar vigência a uma cláusula pétrea: a defesa do consumidor [37], (38). Daí Farias afirmar que, em se tratando de verdadeira garantia constitucional a proteção do consumidor, sobreleva concluir que está fulminada de morte, inquinada de inconstitucionalidade, qualquer norma ou situação jurídica que viole ou mesmo que apenas tenha a possibilidade de consistir em óbice à defesa do consumidor [39].

5.4 Direito intertemporal

A colisão da lei nova com a anterior, algumas vezes, gera problemas. Isso porque determinadas circunstâncias estabelecidas pela lei antiga podem permanecer sob a vigência da nova lei; ou, por outro lado, situações outras que foram criadas pela lei velha já não vão encontrar guarida na novel legislação. Destarte, conforme leciona Paupério, há que se estudar até que ponto a lei antiga pode gerar efeitos e até que ponto a lei nova não pode impedir esses efeitos da lei antiga [40], (41).

Esse estudo, necessário para o desatar de problemas jurídicos de apreço, recebe as denominações de conflito de leis no tempo, retroatividade ou não-retroatividade das leis, aplicação do direito em relação ao tempo, supervivência da lei no tempo, direito transitório e, com tendência a prevalecer sobre as demais, direito intertemporal [42].

A problemática do conflito de leis no tempo possui duas facetas, igualmente, relevantes. Em primeiro plano, a admissão da retroatividade da lei, [43] como princípio absoluto, geraria situações inaceitáveis, haja vista a situação de insegurança que pairaria sobre a sociedade. Aceitando-se, sem restrição, tal postura, situações anômalas ao atual regime democrático e mais aproximadas à ditadura e ao despotismo, propagar-se-iam no sistema social, atentando contra a própria estabilidade jurídica. A confiança na lei e em sua autoridade estariam prejudicadas; relações jurídicas já concretizadas estariam fragilizadas diante do perigo da publicação de novas leis prontamente hábeis para alterá-las.

Por outro norte, é aceitável admitir que a preponderância do interesse público sobre as conveniências dos cidadãos – como conseqüência proveniente da soberania da lei –, justifica, antes de qualquer consideração, sua aplicação a todos os fatos por ela regulados. Para que a legislação mais moderna possa realizar inteiramente sua finalidade benéfica, o interesse social exige seja aplicada tão completamente quanto possível [44]. Nesse sentido e parafraseando Paiva Pitta, se a lei nova tiver de respeitar a sua razão de ser no passado, restringindo o seu império somente ao que se fizer depois da sua promulgação, ver-se-á caminhar, paralelamente, o pretérito com o presente, o desengano com a esperança, a saudade com o gozo, a sombra com a luz, enfim, as velhas com as novas instituições [45].

Pergunta-se, pois, qual será a solução adequada aos problemas de conflitos de lei no tempo. Dever-se-á dar privilégio à estabilidade jurídica e à paz social, impedindo a lei nova de abraçar situações concretamente abrangidas por leis anteriores ou, ao invés, evitar a estagnação social, buscando, sempre, o progresso do legislativo ante a aceitação do princípio da retrooperância da lei?

Não se pode duvidar de que a intenção da atual Carta Magna foi adotar, como regra geral do sistema, o princípio da não-retroatividade da lei, admitindo-se, por outro lado, a sua retroatividade como exceção. Assim o fez ao prescrever que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" (art. 5º, XXXVI). Não outro o sentido imposto pelo comando legal constante do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil: "A lei terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada."

Paul Roubier, um dos maiores defensores da teoria da não-retroatividade, considera as três etapas do tempo (passado, presente e futuro), entendendo que elas condicionam três possibilidades de aplicação da lei: a) se a lei se aplica ao passado, diz-se que seu efeito é retroativo; b) se a lei aplica-se ao presente, diz-se imediato seu efeito; e c) se a lei aplica-se ao futuro, seu efeito será deferido [46].

Como mencionado, a regra é a da irretroatividade da lei [47]. Noutros dizeres, no ordenamento jurídico brasileiro, a irretroatividade é preceito constitucional (art. 5º, XXXVI) [48]. Aplica-se, por esse motivo, como norma imperativa a todos os ramos do direito, a todas as espécies de normas – leis, decretos, resoluções, portarias, etc. –, e a todas as esferas do poder público, federal, estadual e municipal [49]. Trata-se de uma conquista do mundo moderno contra a ditadura e o despotismo da antigüidade.

Conforme ensina Paupério, a lei nova poderá, entretanto, ser capaz de aplicar-se aos efeitos futuros das relações jurídicas presentes e anteriores, originadas sob a égide e o império da lei precedente, por ela revogada [50]. Nada obstante, não se deve desprezar que os efeitos já produzidos pela antiga lei deverão ser preservados e respeitados. Os novos efeitos é que serão submetidos à força da novel legislação.

Nesse ponto, é de importância elementar a distinção entre efeito retroativo e imediato da lei. E o próprio ordenamento jurídico brasileiro, pelos precisos termos do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, discrimina-os, de modo capital, ao dispor: "A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Isso revela que não só as situações não definitivamente constituídas (facta pendentia), como também os efeitos presentes e futuros dos fatos já consumados (facta praeterita), serão abarcados pela novel legislação. Não significa tal aplicação, portanto, efeito retroativo, mas, sim, imediato [51], (52), (53).

Pauperio, em lição precisa, esclarece que nos "próprios contratos em curso, subordinados antes, até mesmo para os efeitos futuros, à lei antiga, a não ser que a lei nova estabelecesse o contrário, tem lugar o efeito imediato, que não significa, sem dúvida alguma, efeito retroativo. Só aos momentos anteriores de uma situação em curso é que não poderia a lei nova aplicar-se sem retroatividade" [54], (55)

Veja-se, como exemplo, uma situação que evidencia fielmente a distinção entre o efeito retroativo e imediato: a Lei 9.032/95 extinguiu a possibilidade de concessão de pensão às pessoas que foram designadas como dependentes por segurados da previdência social. Há, porém, quem sustente a existência de direito adquirido à pensão, para pessoas designadas até a data da Lei 9.032/95. Ocorre que somente há o direito à pensão com o evento morte. Antes da morte do segurado, não há direito à pensão, mas, sim, uma mera expectativa de direito. Poder-se-ia falar em fato consumado se, antes da publicação da Lei 9.032/95, ocorresse a morte do segurado. Nesse caso, estaria presente o direito adquirido, visto que todos o requisitos para o recebimento da pensão foram satisfeitos (dependente designado + morte antes da publicação da Lei 9.032/95), pouco importando a falta de diligência do dependente em pleitear seu direito à pensão, anos depois da publicação da referida Legislação. A Lei 9.032/95 não poderá, nesse caso, retroagir, alterando os fatos já concretizados e perfeitamente consumados na vigência da lei anterior, sob pena de ferir direito adquirido. Ao contrário, mesmo aquelas pessoas designadas dependentes antes da publicação da Lei 9.032/95, não terão direito à pensão se o segurado veio a falecer em momento posterior à publicação da retromencionada legislação, exatamente porque lhes falta um requisito para sua aquisição: a morte do segurado na vigência da Lei anterior. A Lei nova, nessa situação, aplicar-se-á imediatamente, já que não existe aqui a figura do fato consumado ou do direito adquirido. Nesses termos, a decisão do Superior Tribunal de Justiça, na ocasião do julgamento do EREsp n. 190.193/RN, em 14/06/2000, publicado em 07/08/2000:

"O fato gerador para a concessão da pensão por morte é o óbito do segurado instituidor do benefício. A pensão deve ser concedida com base na legislação vigente à época da ocorrência do óbito. Falecido o segurado, sob a égide da Lei 9.032/95, não há direito adquirido ao dependente designado anteriormente" [56]

Outro exemplo elucida bem a questão da incidência imediata da lei nova: discutiu-se, há algum tempo, se a Lei 8.009/90, a qual proibira a incidência da penhora aos bens que guarnecem a residência do devedor, teria efeito naquelas situações em que a penhora já se efetivara, antes do nascimento da retroaludida legislação. A questão poderia ser colocada nos seguintes termos: a penhora, ocorrida momentos antes da edição da Lei 8.009/90, corresponderia a um verdadeiro direito adquirido, sendo, pois, regida pela Lei vigente ao tempo de sua ocorrência ou, ao contrário, o Diploma novel, ao entrar em vigência, aplicar-se-ia imediatamente, desconstituindo a penhora realizada anteriormente à sua publicação? Acertadamente pacificou-se na jurisprudência o entendimento de que a Lei 8.009/90, ao entrar em vigência, produziu, de imediato, efeito sobre o processo em andamento, do qual a penhora é ato necessário. Isto é, admitindo-se que a penhora é simplesmente um ato executivo (ato do processo de execução), cuja finalidade é a individuação e preservação dos bens a serem submetidos ao processo de execução, a jurisprudência orientou-se pela desconstituição da penhora ocorrida antes do nascimento da Lei 8.009/90. A penhora, portanto, não corresponde a um direito adquirido, mas, sim, a mera expectativa de direito; ela não cria direito real. A penhora não importa transferência de propriedade. Embora onerado, o bem continua no patrimônio do devedor; é ato do processo de execução que tende a obter a expropriação do bem do devedor com o objetivo de efetuar o pagamento do credor. Particulariza-se, no patrimônio do executado, o bem a ser futuramente alienado. A penhora é, pois, um ato preparatório da expropriação do bem e do conseqüente pagamento do credor. Como a penhora visa a futura alienação do bem, após a Lei 8.009/90, que estabeleceu que os bem móveis que guarnecem a residência do devedor não responderão pela dívida, a alienação de tais bens torna-se juridicamente impossível. Mesmo que se prosseguisse a execução, mantendo-se a constrição que antecedeu a nova Lei, impossível seria, no futuro, a alienação do bem penhorado por absoluta proibição legal [57]. Tal exemplo, como dito acima, refere-se à aplicação imediata da lei e não à sua retroatividade, porquanto não atingiu situações já perfeitamente acabadas e consumadas pela lei anterior vigente [58].

No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, não restam dúvidas da sua aplicação imediata naquelas situações não definitivamente concluídas ou nos efeitos presentes e futuros decorrentes de fatos já consumados [59]. Advirta-se mais uma vez: não se tratará, nessas hipóteses, de efeito retroativo da lei, senão da imediata aplicação dela. Surgem, todavia, as seguintes indagações: a legislação de ordem pública, em função de sua natureza, enquadra-se nas hipóteses excepcionais que permitem sua aplicação retroativa? O Código de Defesa do Consumidor, por ser uma Lei de ordem pública, aplica-se retroativamente àquelas situações já consumadas?

Bento de Faria, referindo-se às normas de ordem pública, assenta que "na esfera do direito público há de sempre prevalecer a vontade do Estado, orientada, é bem de ver, pelo menor sacrifício dos direitos subjetivos." O mesmo autor, escorando, agora, seu posicionamento nas lições de Planiol, sustenta a aplicação retroativa e integral das leis de direito público: "O princípio que torna aplicável a lei nova a todos os fatos posteriores à sua promulgação rege, sem nenhuma exceção nem reservas, todas as leis de direito público ou de caráter público." [60] Igual entendimento é adotado por Lafayette: "É um princípio fundamental de direito – que as leis de administração e ordem pública têm efeito retroativo, isto é, são aplicáveis aos atos anteriores à sua promulgação, contanto que esses atos não tenham sido objeto de demandas e que não estejam sob o selo da coisa julgada." [61] Diniz, aduzindo posição semelhante, esclarece que os "direitos adquiridos devem ceder ao interesse da ordem pública; logo as normas de ordem pública serão retroativas, desde que expressas e sem que haja desequilíbrio jurídico-social." [62]

A tese da retroatividade das normas de ordem pública é fundamentada, como se vê, pela prevalência dos interesses da coletividade contra os interesses individuais. Os particulares devem, segundo esse entendimento, subordinar-se às mudanças legais reclamadas naquele momento social, em razão de sua conveniência. Com efeito, tratando-se de normas de ordem pública – argumentam os defensores da sua aplicação, retrooperante – seria ilícito pretender direitos, como irrevogavelmente adquiridos, contrários à ordem pública. A retroatividade, em tais casos, justificar-se-ia pelo interesse essencial da sociedade, mas sem a possibilidade de determinar perturbações de caráter geral, simplesmente porque importaria ofensa à mesma ordem pública invocada como fundamento da retroação [63].

Seguindo entendimento diametralmente oposto, Caio Mário Pereira, evidencia:

"Costuma-se dizer que as leis de ordem pública são retroativas. Há uma distorção de princípio nesta afirmativa. Quando a regra da não-retroatividade é de mera política legislativa, sem fundamento constitucional, o legislador, que tem o poder de votar leis retroativas, não encontra limites ultralegais à sua ação, e, portanto, tem a liberdade de estatuir o efeito retrooperante para a norma de ordem pública, sob o fundamento de que esta se sobrepõe ao interesse individual. Mas, quando o princípio da não-retroatividade é dirigido ao próprio legislador, marcando os confins da atividade legislativa, é atentatória da constituição a lei que venha ferir direitos adquiridos, ainda que sob inspiração da ordem pública. A tese contrária encontra-se defendida por escritores franceses ou italianos, precisamente porque, naqueles sistemas jurídicos, o princípio da irretroatividade é dirigido ao juiz e não ao legislador." [64]

Ao que tudo indica, conforme deixa entrever o mestre supracitado, existe uma forte confusão entre efeito retroativo e imediato da lei [65]. A lei nova, seja ela de ordem pública ou não, sempre terá aplicação imediata e geral. Como esclarecido alhures, aquelas situações não definitivamente constituídas, bem como os efeitos presentes e futuros dos fatos já consumados serão abarcados pela autoridade da nova lei. A lei retroativa, ao contrário, é aquela que se aplica a situações já acabadas e perfeitas [66]. O sistema jurídico brasileiro, v.g., admite a aplicação retroativa da lei penal sempre que esta beneficiar o réu, mas isso em razão de expressa previsão constitucional (art. 5º, XL, da Constituição Federal) [67].

É apropriado ressaltar novamente que a Constituição Federal ao declarar, imperativamente, que a lei nova não atingirá o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, adotou o princípio da não-retroatividade da lei como regra geral do ordenamento jurídico. A irretroatividade das leis, dependendo da forma em que é regulamentada num sistema, pode ser mais ou menos flexível em sua aplicação. Conforme a bem posta lição de Azevedo, nos países em que é proclamado pelo legislador ordinário, não passa de uma prescrição imposta ao poder judiciário, e o legislador reserva-se o direito de abrir-lhe exceções, aparentemente justificadas pelos invocados preceitos da moral e do direito filosófico, ou pelas exigências da ordem social. Quando, porém, o princípio da irretroatividade apresenta-se como máxima constitucional – como é o caso do Brasil –, não se há de fazer-lhe exceções; o legislador fica preso, maniatado, nunca se lhe poderá atribuir legalidade a sua intenção de dominar, mediante as novas leis, os fatos pretéritos já consumados; os juizes, outrossim, são obrigados a esta regra de interpretação que decorre do próprio sistema de direito.

Assim, o Código de Defesa do Consumidor aplica-se, por exemplo, àqueles contratos assinados antes de sua vigência, anulando cláusulas leoninas ou abusivas cuja eficácia prática ocorreria agora, ou no futuro – os chamados contratos de trato sucessivo [68] –, ferindo a nova ordem de valores imposta pela legislação consumerista. Nesse ponto não há lesão alguma ao princípio da irretroatividade das leis, pelo simples fato de inexistir direito adquirido ou ato jurídico perfeito [69], (70) Não há se falar aqui em retroatividade da lei, mas, sim, em sua aplicação imediata, uma vez que a cláusula passível de anulação não se consumou ou se exauriu antes da publicação da Lei 8.078/90; embora constituído o contrato, algumas de suas cláusulas, agora abusivas, não se consumaram [71]. Marques assevera, com pena de ouro, que "o ato jurídico pode ser assinado e não ser juridicamente perfeito. Como ensinava Clóvis Bevilacqua: "Já ficou dito que o direito adquirido pressupõe um fato capaz de produzi-lo, segundo as determinações da lei" (então vigente). "A segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido, pela proteção concedida ao seu elemento gerador." Um ato assinado pode não ser gerador de direitos adquiridos, mas pode ser gerador de efeitos já consumados, agora intocáveis, por isso mesmo a definição do art. 6º, §1º, da LICC prioriza a expressão "consumado", para frisar sua diferente função em relação ao direito adquirido." [72]

Posto isso, conclui-se que o Código de Defesa do Consumidor não tem efeito retroativo pelo mero fato de ser uma norma de ordem pública [73]. O texto constitucional, ao preceituar que a lei nova não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, não faz distinção entre legislações de ordem pública e outras que não possuem essa natureza. Quisesse o ordenamento jurídico nacional recepcionar a retroatividade das leis de ordem pública, deveria, como fez com questões envolvendo a lei penal benéfica ao réu, excepcionar, expressamente, tal situação na própria Constituição Federal. Destarte, os fatos já consumados, perfeitamente concluídos na vigência de normas anteriores à Lei consumerista, não são, de maneira alguma, atingidos por sua força e autoridade legislativa. Poderão, por outro lado, ter significativa influência do Código de Defesa do Consumidor (efeito imediato) aquelas situações não definitivamente concluídas ou os efeitos presentes e futuros decorrentes de fatos já consumados, sempre que disserem respeito a relações de consumo [74].

5.5 O Código de Defesa do Consumidor como norma principiológica e os conflitos ocorrentes entre ele e outras legislações [75]

Questão tormentosa, ainda pouco explorada pela doutrina nacional, diz respeito aos múltiplos conflitos surgidos entre as leis contidas no sistema jurídico, sejam elas comuns ou especiais, nacionais ou internacionais, e o Código de Defesa do Consumidor.

Vale dizer que a análise do contexto histórico que levou à criação do Código de Defesa do Consumidor, feita no segundo capítulo deste trabalho, reporta, necessariamente, ao estudo do presente tópico neste ensaio, sem, contudo, desconsiderar o necessário exame do art. 7º do referido Diploma Legal, tendo em vista sua íntima relação com o assunto ora em comento.

Não são raras as situações de conflitos envolvendo o Código de Defesa do Consumidor e outras legislações. São exemplos de leis que, dia-a-dia, incitam, no Judiciário, discussões envolvendo tais conflitos: a Lei n. 3.071/16 (revogado); a Lei n. 556/50 (revogado); a Lei n. 7.565/86 (Código Brasileiro da Aeronáutica); a Convenção de Varsóvia, recebida pelo ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 20.704/31 e sua posterior modificação no Protocolo de Haia, introduzido pelo Decreto 56.463/65 [76]; a Lei n. 7.357/85 (Lei do Cheque); a Lei n. 8.245/91 (dispõe sobre as locações dos imóveis urbanos) [77]; a Lei n. 4.591/64 (dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias); Lei 4.595/64 (Lei do Sistema Financeiro Nacional); Decreto-Lei 911/69 (dispõe sobre normas de processo sobre alienação fiduciária) [78]; dentre outras.

Induvidosamente, trata-se de tema merecedor de trabalho específico em razão de sua complexidade e importância. Complexidade porque não se apresenta tarefa fácil compreender como uma legislação – a Lei 8.078/90 – possui um poder de ingerência tamanho, capaz, inclusive, de derrogar ou, até mesmo, desestruturar, por completo, outros microssistemas criados para regular situações jurídicas peculiares. Importância em função das adaptações legais que o Código de Defesa do Consumidor imputa a outros diplomas normativos, fazendo com que esses últimos se adaptem ou, até mesmo, anulem-se em face dos princípios e comandos impostos pelo primeiro.

A percepção da atual importância e supremacia da Lei consumerista deve ser construída mediante bases sólidas, notadamente alicerçadas: a) na compreensão da evolução da visão individualista do Direito para uma visão social do Direito; e b) na própria Constituição Federal.

Conforme exposto alhures, os contratos, no século XIX, eram formalizados sob a égide da autonomia da vontade. A liberdade de contratar e a vontade dos contratantes prevaleciam sobre a própria lei, porquanto se acreditava que o "contrato traria em si uma natural eqüidade, proporcionaria a harmonia social e econômica, se fosse assegurada a liberdade contratual." [79]

A lei funcionava, tão-somente, como garantidora das relações contratuais, consentindo e assegurando a plena satisfação das vontades dos indivíduos em suas relações contratuais. Conforme a lição de Marques, "a função das leis referentes a contratos era, portanto, somente a de proteger esta vontade criadora e de assegurar a realização dos efeitos queridos pelos contratantes. A tutela jurídica limita-se a possibilitar a estruturação pelos indivíduos destas relações jurídicas próprias assegurando uma teórica autonomia, igualdade e liberdade no momento de contratar, e desconsiderando por completo a situação econômica e social dos contraentes." [80]

No entanto, em razão da evolução, a produção, distribuição e contratação de produtos e serviços – antes individuados e personalizados – passaram a operar-se de modo massificado e estandardizado; o consumidor, diante dessa recente conjuntura, tornou-se um mero número. As relações contratuais despersonalizaram-se, adaptando-se à novel realidade de mercado – alterada em virtude do desenvolvimento industrial e tecnológico corrente –, nascendo, daí, métodos de contratação padronizados (contratos de adesão e as condições gerais dos contratos).

Como resultado, considerada a recorrência das relações econômicas nas sociedades de massa e a sua inserção nos mecanismos de circulação de riquezas do mercado de consumo, revelou-se, mesmo sob apreciação sumária, a indispensabilidade de uma intervenção hierárquica para o fim de salvaguardar o equilíbrio social, dentro de condições mínimas e/ou máximas [81]. Percebeu-se, nesse momento, que a concepção tradicional do contrato não mais se adequava à nova realidade econômica.

Passaram, então, os Estados de todo o mundo, uns com maior, outros com menor intento, a intervir nas relações de consumo, objetivando regulá-las, isto é, equilibrar as forças entre os partícipes de tal relação e, como conseqüência, harmonizar o funcionamento econômico na macroestrutura [82]. Deu-se um tratamento desigual aos desiguais, buscando restabelecer a harmonia e o equilíbrio de forças entre os pólos da relação de consumo. Concluiu-se, portanto, que somente assim seria possível o alcance do equilíbrio e da harmonia social.

No Brasil – conforme frisado em momento anterior –, a crise da concepção clássica do contrato somente teve uma solução na década de oitenta, mais especificamente com a edição da Constituição Federal de 1988, que incluiu a defesa do consumidor no plano da política constitucional [83].

Tais considerações – feitas no início deste estudo e agora sumaria e necessariamente repisadas –, além de evidenciarem o Código de Defesa do Consumidor como lei incomum, estabelecem diretamente seu âmbito de aplicabilidade.

Conforme já dito, a defesa do consumidor foi erigida pela atual Carta Magna a princípio constitucional da atividade econômica (art. 170, V); não bastasse isso, foi inserida no rol dos direitos e garantias individuais do citado Diploma Legal (art. 5º, XXXII). A efetiva tutela do consumidor brasileiro, por sua vez, é realizada por intermédio de uma legislação – a Lei 8.078/90 – criada, outrossim, com base em um comando constitucional (art. 48 do ADTC) [84].

Destarte, a efetividade do princípio constitucional, que prevê a defesa do consumidor, é exercida por meio da Lei consumerista. Por meio de tal legislação é que se torna possível a aplicação funcional do princípio constitucional de defesa do consumidor no caso concreto. Negar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações de consumo é, por conseqüência, repudiar vigência a valores e princípios constitucionais expressos. Nesse sentido, a expressão cunhada por Nery Júnior – norma principiológica –, muito em voga atualmente [85].

Em verdade, a Lei das relações de consumo fez um corte horizontal em toda a extensão da ordem jurídica existente, permeando a sua disciplina por todos os ramos do direito – público e privado, contratual e extracontratual, material e processual. Estabeleceu uma disciplina única e uniforme para todas as relações de consumo, devendo ser aplicada em toda e qualquer área do Direito em que elas ocorrem [86]. Fazendo uso das lições certeiras de Benjamin, pode-se dizer que o Código de Defesa do Consumidor pertence àquela categoria de leis denominadas horizontais, cujo campo de aplicação invade, por assim dizer, todas as disciplinas jurídicas: do Direito Bancário ao Direito de Seguros, do Direito Imobiliário ao Direito Aeronáutico, do Direito Penal ao Direito Processual Civil. São normas que têm por função não regrar uma determinada matéria, mas proteger sujeitos particulares, mesmo que estejam eles igualmente abrangidos por outros regimes jurídicos. Daí o caráter especialíssimo do Direito do Consumidor [87].

Deparando-se o intérprete com situações concretas em que, aparentemente, existam conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e outras leis (sejam elas gerais ou especiais, nacionais ou provenientes da ordem internacional) [88], (89), deverá buscar a solução no próprio sistema normativo consumerista, haja vista sua supremacia legal.

Destarte, em primeiro lugar, deve-se tentar, com harmonia, adequar a lei supostamente conflitante ao microssistema das relações de consumo; quando isso é possível nenhum problema surgirá, porquanto tal lei continuará em vigência naquele caso sob análise sendo, apenas, complementada e melhorada pelos princípios, normas e novos valores positivados pelo Código de Defesa do Consumidor, em conformidade com o prescrito no art. 7º da Lei 8.078/90. Como ensina o eminente Cavalieri Filho, "os institutos e contratos continuam regidos pelas normas e princípios que lhe são próprios, mas sempre que gerarem relações de consumo, ficam também sujeitos à disciplina do Código de Defesa do Consumidor." [90] Essa é a lógica da Lei 8.078/90: a compatibilização do microssistema consumerista com a norma supostamente com ela conflitante, sempre que possível.

Por outro lado, diante de um caso concreto, se determinada norma de uma lei realmente contrapor-se à Lei 8.078/90 – ou, conforme prefere Marques, existindo na situação sob análise uma antinomia real –, aquela deverá, necessariamente, sucumbir perante esta. Se possível, a lei conflitante não terá sua aplicação afastada no todo, mas, apenas, aqueles preceitos nela inseridos que estiverem em desarmonia com o Código de Defesa do Consumidor [91], (92).

Convém ainda registrar: não é correto falar em revogação de normas ou leis pelo Código de Defesa do Consumidor em se tratando de tema referente a conflitos de legislações. Revogar é impedir a aplicação da norma no mundo jurídico; é literalmente aniquilá-la, fulminando sua essência legal. A Lei 8.078/90 somente afasta o emprego de uma norma com ela conflitante no momento da aplicação do Direito para a solução de um caso concreto. Aquela norma ou lei afastada da aplicação naquele caso concreto poderá, novamente, ser utilizada em casos outros, em que se entender não caracterizada uma relação de consumo ou não importar tutela de consumidores. Sua existência e validade não serão afetadas mas, tão-só, sua vigência naquele caso específico sob análise [93].

Desimportante para o intérprete, em casos de conflitos normativos, que uma lei especial reguladora de determinada matéria surja após o Código de Defesa do Consumidor – ou mesmo que se trate de lei geral. A Lei 8.078/90 possui a função única de regular as relações de consumo e tutelar um grupo específico de entes – os consumidores –, tendo seu âmbito de aplicação expressamente delimitado em seu texto normativo (arts. 2º, parágrafo único, 3º, 17 e 29). Tudo que disser respeito à proteção dos consumidores – sejam relações de origem administrativa, bancária, civil ou criminal –, será, inevitavelmente, regulado pela Lei consumerista, pouco importando existir norma especial [94], nascida antes ou após o advento daquela, dispondo de maneira diversa, sobre a matéria controvertida. Definida a relação de consumo, suas regras deverão ser observadas, sem exceção [95].

Ao cabo das considerações a que se procedeu e, utilizando-se das louváveis expressões amoedadas pela professora Marques, conclui-se que o Código de Defesa do Consumidor é uma lei especial-subjetiva, hierarquicamente superior (ou principiológica), complementar a um mandamento constitucional, e de ordem pública (lei de função social). [96] Tais posturas asseguram-lhe a robustez legal necessária ao cumprimento de sua função de revitalizar as diversas situações ocorrentes no mercado de consumo envolvendo consumidores e fornecedores. Dão-lhe, ainda, a autoridade necessária para, se conflitante com outra legislação, impor-se a ela e, efetivamente, regular e desvendar o embate de interesses sob a apreciação do Judiciário.

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Sobre o autor
Lúcio Delfino

advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 230, 23 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4832. Acesso em: 25 abr. 2024.

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