O terror está espalhado, como a peste de que Edgard Allan Poe tratava num dos clássicos da literatura universal – A peste vermelha. O escarlate do sangue de cidadãos no Brasil multiplica-se em progressão geométrica. O crime organizado assumiu o controle, ainda que autoridades de direito – sem autoridade de fato – insistam, para consumo público, em dizer o contrário. Basta verificar a incapacidade de controlar um único bandido (condenado e preso) – Fernandinho Beira-Mar –, para se ter uma idéia do grau de deterioração da autoridade do Estado.
A execução recente de dois juizes de varas de execução penal apenas escancarou aquilo que todos viam e ninguém queria enxergar: o país está sendo dominado por organizações criminosas. Enquanto morriam cidadãos comuns, era rotina. Famílias anônimas marchavam para os cemitérios para sepultar pais e filhos, assassinados em um processo que ficou banalizado no cotidiano. Mas, agora, as vítimas ilustres estão aparecendo, o que completa a característica das associações do crime, segundo Leonardo Siascia, em livro que virou filme. Para o autor, a criminalidade de elite se fortalece na medida em que faz, com o mesmo empenho, vítimas anônimas e cadáveres excelentes. É o que passou a acontecer no Brasil.
Conheça-se o que acontece no mundo. Nos Estados Unidos, o fenômeno ganhou proporções com o império da organização Cosa Nostra, atuando no tráfico de drogas, em jogos ilícitos, na prostituição e na extorsão de toda espécie. Por trás, sempre, um lastro de violência e sangue. Na Rússia, propalou-se a Máfia, especializada no tráfico de drogas, armas e material nuclear. Estima-se que ainda hoje a organização reúna três milhões de membros, distribuídos em 5.700 bandos, com atividades criminosas estendidas a, pelo menos, 29 países. As Tríades da China não ficam atrás e agem na prostituição, na extorsão e no tráfico, com braços operacionais fortes nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, Espanha, Austrália, Malásia, Taiwan e Filipinas. A Itália tem a experiência da sua própria Cosa Nostra, ainda presente na rota do tráfico. Sobrevivem pelo menos cinco mil membros, agindo em conexões internacionais. Os Cartéis são a expressão criminosa da Colômbia, dedicada a operar em torno de todo o ciclo da cocaína, da produção à distribuição para o mundo inteiro. E o tradicional Japão apresenta-se nesse cenário do crime com a Yakuza, que mantém operações em parceria com grupos mafiosos, formando um império paralelo que se estende à China e à Coréia do Sul. Nesse universo de terror, o Brasil apresenta-se com três organizações: o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho e a Máfia Capixaba.
"Ao lado da Yakuza do Japão, da Cosa Nostra italiana e dos Cartéis da Colômbia, o Brasil engrossa o espectro de terror com três organizações: o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho e a Máfia Capixaba."
O país precisa reconhecer esse quadro, de gravidade extrema, e mobilizar-se com rapidez e eficiência. O Parlamento do Reino Unido, surpreendido por ação terrorista em 1974, respondeu em apenas 8 dias, editando severa lei. Dentre nós, as discussões se arrastam e as soluções mofam nas gavetas emperradas da burocracia nacional. Petrônio Portela, ministro da Justiça no último governo militar, ao saber do seqüestro do cardeal gaúcho Dom Vicente Scherer, anunciou a resposta do Estado. Isso foi em 1979. Até hoje a resposta não veio. Entraram e saíram ministros, vieram e foram governos, e só o crime se organizou no Brasil.
O crime, compreenda-se, na forma como aparece em nosso país – e a exemplo das associações criminosas que agem no mundo – é uma outra modalidade de terrorismo. Não se trata do simples descontrole da criminalidade, disseminada e sem planejamento. Há, por trás dessas organizações, uma estrutura formatada, com objetivos estratégicos, tal qual em um projeto de revolução armada. No elenco de propósitos, estão a desestabilização do poder de polícia do Estado e a submissão do povo ao terror do banditismo. Portanto, o enfrentamento tem que ser diferenciado, específico, como as reações que tiveram vários países quando acometidos de ondas crescentes de movimentos terroristas. O Código Penal e o Código de Processo Penal do cidadão comum não podem ser os mesmos dos bandidos armados de fuzis, metralhadores e granadas.
O DIREITO E O TERRORISMO
Os estudos jurídico-penais relacionados ao fenômeno da violência estremada não são exclusivos dos nossos dias. O final do século XIX experimentou o movimento anarquista na Europa Ocidental, fazendo com que a doutrina viesse a se debruçar na análise e no tratamento do chamado terrorismo, que apresentava uma conotação diversa do conhecido crime político.
Os crimes políticos, na verdade, após a revolução de 1830 na França, ganharam uma condição mais branda que os crimes comuns. A lei de 28 de abril de 1832, que formou o Código Penal atribuiu, com efeito, penas mais benignas aos delitos praticados com objetivo político. Até a pena de morte, prevista para criminosos políticos, foi abolida em 1848, o que também veio a acontecer em Portugal em 1852. Seguiu-se, assim, uma progressiva despenalização do delito político. A Bélgica, em 1833, eliminou da lista de infrações criminais passíveis de extradição, os crimes contra a segurança do Estado. A Suíça, na mesma época, seguiu o modelo.
Essa tendência, todavia, foi interrompida em 1855 quando dois anarquistas franceses atentaram contra a vida de Napoleão III e buscaram refúgio na vizinha Bélgica. Diante a esse quadro, o governo francês solicitou a extradição à Bélgica, cujos tribunais negaram o pedido ao abrigo da legislação em vigor. Esse episódio forçou a elaboração de um Tratado, firmado entre a França e a Bélgica em 22 de março de 1856, estabelecendo uma diferença entre crime político e ato de terrorismo.
"Já em 1856, a Europa passou a estabelecer diferença entre crime político e terrorismo. Para os primeiros, penas mais benignas, para os autores de atos de terror, uma reação à altura da violência praticada."
Abriu-se, dessa forma, espaço para a despolitização da criminalidade decorrente do terrorismo. A lei francesa de 28 de julho de 1894 passou a equiparar as ações terroristas aos crimes comuns e a doutrina ampliou os estudos acerca desse fenômeno. O Instituto de Direito Internacional, reunido em Genebra nessa época, votou uma Resolução segundo a qual não seriam considerados como delitos políticos as ações intentadas na forma de assassinatos, explosões, atentados à propriedade, e outros cometidos à mão armada e com uso de violência.
O TERRORISMO NOS ANOS 60 E 70
O debate jurídico-político em torno da criminalidade terrorista voltou a ser intensificado no final da década de 60, com o aparecimento de ações violentas por parte de grupos extremistas, cujas ações estavam atingindo diretamente populações civis. O massacre levado a cabo por terroristas japoneses no aeroporto israelista de Lod, em 30 de março de 1972, matando 24 pessoas e ferindo 72, renovou a discussão sobre a existência do terrorismo na sociedade democrática. A Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em duas Declarações condenou o método terrorista; e, em 27 de janeiro 1977, os Estados membros do Conselho da Europa firmaram a Convenção Européia para a repressão do terrorismo.
Essas iniciativas não foram suficientes para conter essa forma de violência. O Direito Penal precisou, na Europa Ocidental, admitir essa realidade e estudar mecanismos de contensão. Juristas de nomeada passaram a admitir, então, a restrição dos direitos fundamentais aos indivíduos envolvidos em ações terroristas. "Os direitos fundamentais, enquanto valores constitucionais, não são absolutos e nem ilimitados", diz José Miguel Sardinha [1], advogado português. A partir dessa premissa, é sustentada a idéia de que a proteção de outros bens ou direitos pode depender, em situações extremas, da restrição de garantias que a própria Constituição considera fundamentais.
A Constituição espanhola de 1978 tratou dessas restrições. Na medida que o terrorismo representava, na Espanha, uma séria ameaça à segurança do regime democrático, a sua Carta Política consagrou, no art. 55, nº 2, a possibilidade de alguns direitos fundamentais serem restringidos no combate à criminalidade terrorista e na preservação do Estado de Direito. A questão foi levada a tal ponto que chegou-se a subverter o tradicional princípio de que todo cidadão se presume inocente até prova em contrário. A autorização estampada na Lei Maior espanhola de 1978 estendeu-se à possibilidade de escutas telefônicas, controle de correspondências e invasão de domicílios. Nessas situações, a intervenção do juiz ocorria a posteriori, no sentido de fiscalizar a legalidade da atuação das forças de segurança. Carmem Lamarca Peres, na obra Tratamento jurídico del terrorismo, caracterizou esse quadro como "uma cessão dos poderes judiciais em favor das ações de governo" [2].
A então República Federal da Alemanha tratou igualmente da matéria no seu sistema constitucional. A Lei Fundamental de Bona consagrou várias disposições fortemente limitativas dos direitos fundamentais, o que levou Streitbaren Demokratie a desenvolver o conceito de democracia militante, segundo o qual a democracia tem o dever de adotar uma posição de defesa e não uma indiferença política em relação à violência organizada [3].
A Constituição da velha Alemanha Ocidental acolhia, dessa forma, a teoria funcionalista dos direitos fundamentais. De acordo com ela, essas garantias são concebidas ao cidadão para que o seu exercício seja realizado em favor da comunidade a que pertence. Estampa-se, assim, o caráter público dos direitos fundamentais, com o que se justificou a intervenção do Estado nas ocasiões em que esses direitos fossem utilizados de forma abusiva.
"De acordo com a teoria funcionalista, os direitos fundamentais são concebidos ao cidadão para que o seu exercício seja realizado em favor da comunidade a que pertence. Estampa-se, assim, o caráter público desses direitos, com o que se justificou, na Europa, a intervenção do Estado nas ocasiões em que essas garantias fossem utilizadas de forma abusiva."
A Itália também precisou atuar com rigor. A Lei de 6 de fevereiro de 1980 estabeleceu "medidas urgentes para a tutela da Ordem Democrática e da Segurança Pública". Foram alteradas disposições do Código Penal; e em sede de Processo Penal foram limitados direitos de suspeitos de envolvimento em atividades criminosas. Deu-se à autoridade policial o poder de detenção de suspeitos, de investigação sumária, de retenção dos detidos para investigações. A autoridade judicial viria na seqüência, com conhecimento e controle dessas atuações.
O Reino Unido não ficou de fora de medidas excepcionais. Diante a uma seqüência de ações terroristas ocorridas em pubs de Birmingham, em 21 de novembro de 1974, causando a morte de 20 pessoas e ferindo outras 180, o Parlamento veio a aprovar imediatamente – em 29 de novembro de 1974 – a "The Prevention of Terrorism (Temporary Provisions) Act of 1974". Esse diploma sofreu alterações em 1976 e em 1979, mas sempre assegurando, entre outras medidas, a possibilidade de detenção de suspeitos. Em relação à Irlanda do Norte, uma lei de 1973, concede largos poderes ao exército e à polícia em matéria de restrição de direitos de suspeitos de terrorismo.
A Constituição da República Portuguesa não ficou fora dessa questão. Segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho [4], a restrição dos direitos fundamentais depende de quatro condições:
a)que a restrição esteja expressamente admitida na Constituição;
b)que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido;
c)que a restrição exigida por esta salvaguarda seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objetivo;
d)que não atinja o núcleo essencial do direito em causa.
SITUAÇÃO ATUAL
A questão da restrição dos direitos fundamentais, tratada originalmente em torno do modelo tradicional de terrorismo, precisa ser atualizada diante a um fenômeno que, já tendo comprometido a organização do Estado italiano, ganha espaço nas grandes cidades do Brasil: o crime organizado. Se o direito chegou a contemplar a limitação de direitos a terroristas, com motivação política, deve também analisar essa possibilidade, ao nosso juízo mais forte, no enfrentamento do banditismo sem causa. Ou com uma causa que atende exclusivamente aos interesses das associações criminosas.
Vale ressaltar a lição de José Miguel Sardinha, em obra citada: os direitos fundamentais têm um caráter público e não podem servir de escudo para proteger a ação de bandidos. O autor português explica que essas garantias são conferidas ao cidadão de bem e estão atreladas à obrigação de uma conduta de acordo com os valores da sociedade.
A LIMITAÇÃO DO DIREITO DE DEFESA NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PORTUGUÊS
O Código de Processo Penal em Portugal não chega a trazer restrições ao direito de defesa do chamado argüido. Porém, razões relacionadas à periculosidade de certos indivíduos fizeram com que adotasse algumas medidas que, a princípio, parecem restritivas a esse direito. Nessa linha, a lei dispõe que a comunicação entre o preso e o seu advogado, em casos especiais, ocorrerá à vista de um funcionário da vigilância; possibilidade de o Juiz de Instrução intervir nos contatos entre o réu e o seu defensor, quando tiver fundadas razões para crer que tal intervenção se afigura necessária para o esclarecimento da verdade; a possibilidade de o Juiz, em situações necessárias, autorizar ou ordenar a apreensão da correspondência entre o réu e o advogado.
No Brasil, todos sabem que alguns advogados, lamentavelmente, prestam-se ao ofício de pombos-correio, estabelecendo a comunicação entre o chefe da quadrilha preso e os comparsas em ação no lado de fora. Há quem sirva de transportador de drogas, telefones celulares e dinheiro a ser utilizado no suborno de agentes penitenciários. Prerrogativas dadas ao profissional, para serem usadas na contemplação da dignidade da advocacia, não podem servir para a facilitação do crime. Portanto, o legislador português, mais célere que o acadêmico brasileiro, prontamente legitimou exceções.
O CRIME NAS DEMOCRACIAS
Curiosamente o crime encontra maior espaço nas grandes democracias. Como observa Paul Wilkinson [5], nas democracias o Estado está impossibilitado de exercer, por imperativo legal, intromissões na esfera privadas dos cidadãos. É um Estado preso à legalidade, às condutas éticas, às garantias dos indivíduos. Os criminosos, por seu turno, não têm esse compromisso e abusam das suas liberdades para atropelar os direitos, mesmo fundamentais, como o da vida, dos demais cidadãos. Diante a isso, é hora de renovar o questionamento sobre o papel do Estado face a essa realidade. Ou o Estado protege indiscriminadamente a todos e, neste caso, corre o risco de desassistir os honestos; ou limita os direitos dos marginais em nome da segurança da maioria do povo.
No quadro de terror como o que vivemos, o bem jurídico merecedor da tutela está vinculado aos cidadãos honestos, aos que honram com seus deveres e que precisam das garantias públicas. O princípio da proporcionalidade, aliás, tem lugar nesse contexto. Borges de Pinho [6] considera, a propósito, que a alta criminalidade não ofende apenas valores do Estado, mas sim, e fundamentalmente, valores e interesses da vida em comunidade. Figueiredo Dias, ao tratar das associações criminosas, também é da opinião que é preciso tutelar a paz pública para garantir as condições da existência em sociedade. Portanto, as autoridades no Brasil – que cada vez mais perdem a autoridade – precisam eleger valores. E, aqui, são dois lados, a escolher: o dos cidadãos honestos e o dos bandidos da pior estirpe.
NOTAS
01. "O terrorismo e a restrição dos direitos fundamentais", Coimbra Editora, Portugal, 1989.
02. Centro de Publicaciones del Ministerio de Justicia, Madrid, 1985.
03. MIKLOS K, RADVANYI, "Anti-terrorist legislation in the Federal Republic of Germany", Washington D.C. Library of Congress, Law Library, 1979, pág. 55.
04. GOMES CANTILHO e VITAL MOREIRA, "Constituição Anotada", pág. 167.
05 "Terrorism and the liberal State", Macmillan Education Ltd., pág. 103.
06. "Dos crimes contra o patrimônio e contra o Estado no novo Código Penal", Braga, 1983, pág. 11.