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Cautelaridade sem comodidade

24/02/2004 às 00:00
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No âmbito do processo penal temos nos deparado, não raramente, com procedimentos que, apesar de mascararem uma situação aparentemente validada pela dogmática jurídica, tratam-se, na verdade de verdadeiros arbítrios, vez que, devidamente analisados, virão a demonstrar não guardarem coerência com os princípios que norteiam a sistemática jurídico-penal, por trazerem em seu bojo, à guisa de pressupostos, falsas premissas que servem de vassalas a questionáveis configurações dos dois elementos que, conjugados, autorizam a manifestação do poder judicial de cautela, quais seja: o fumus boni juris e o periculum in mora. Exemplo disso são os inúmeros casos de decretos de prisões provisórias que têm origem num equivocado entendimento de que a regra do art. 366, do Código de Processo Penal, após versar acerca da suspensão, tanto do processo, quanto da prescrição, viria, em seguida, a permitir a decretação da prisão preventiva obrigatória, ou abrisse uma nova margem para a sua admissibilidade, o que é totalmente incorreto, mormente se se estiver atento à ressalva "se for o caso", destacada no dispositivo.

No que pese o caráter restritivo explícito na norma, continua sendo praxe dos julgadores ultrapassar o comando legal para utilizar o instituto da custódia preventiva não como inferência lógica, isto é, no sentido/alcance de sua finalidade, mas sim como ferramenta (imprópria) para fazer trazer o acusado revel ao processo, sem que tal medida se mostre de fato necessária: ou porque seja prescindível sua presença para o deslinde da questão, ou - o que é mais grave - não esteja em jogo ameaça à ordem pública, à instrução criminal, nem tampouco à eficácia de aplicação da lei penal.

Nesse contexto, ocorre que, em uma gama de delitos situados na órbita de alcance do benefício instituído pelo art. 89, da lei n° 9.099/95, como o furto simples, ou mais apropriadamente no estelionato, onde o agente, no lapso temporal por vezes bastante longo entre a ocorrência fato-inquérito-citação, já não mais residia no endereço fornecido à autoridade policial, têm-se por resultado o seu chamamento ficto ao processo e, por conseqüência, a decretação de sua revelia. Feito isto, sem que ao menos seja aventurada uma análise, por mais rasa, acerca das circunstâncias fáticas ou de critérios de ordem subjetiva, muitos juízes não hesitam em decretar a custódia preventiva, com respaldo em fundamento emprestado por aresto do STF, baseado em que "a simples fuga do distrito da culpa autoriza a custódia cautelar". É mais uma vez o genérico aplicado ao particular, prática que vem sendo repelida pelos juristas mais conscientes, principalmente aqueles que vêm alertando para o perigo da (re)produção do Direito de uma forma estereotipada e standartizada (súmula vinculante).

Bem recentemente, em ação penal em trâmite no foro do Recife, tendo por tema estelionato por mediante emissão de cheque sem fundos, o acusado – um comerciante -, após ser considerado revel, teve sua prisão preventiva decretada, decorridos já quatro anos da ocorrência do fato e – pasmem – encontrando-se nos autos sua folha de antecedentes criminais (atualizada), sem registro de qualquer outro evento senão o em tratamento, o que revela que o real motivo da medida extrema não coincide com os pressupostos legalmente estabelecidos, desvelando, portanto, sua utilização unicamente como veículo de condução do acusado ao processo, ou seja, como mera desaprovação de sua situação processual; melhor dizendo, por mera comodidade, haja vista não se divisar nenhum fim útil e racional para a utilização da medida.

Como observamos, o emprego automatizado de entendimentos dessa natureza, de cunho eminentemente positivista, continua dificultando a coexistência pacífica de um princípio e uma norma - aparentemente antagônicos - que se utilizados na devida proporção, de forma coerente e sistemática, dão-se espaço, dirimindo o conflito que, em tese, se estabeleceria. É o que se dá, por exemplo, quando em palco a presunção de inocência e o confinamento provisório. Antes de nos ater ao que parece ser uma evidente rota de colisão, temos de considerar que estes dois institutos jurídicos vêm previstos na Constituição; assim sendo, ambos têm espaço e tempo de aplicabilidade, dependendo, logicamente, da situação vivenciada, envolvendo elementos fáticos e jurídicos, que demandarão um tratamento axiológico, estabelecido este pelo ordenamento jurídico quando determina o modo de mediação (os pressupostos e fundamentos) que servirá justamente de fronteira (e de balança) indicando qual o caminho a ser tomado, conformando ao fato o instituto que deverá ser utilizado. Com isso, não mais haverá de se falar de colisão.

Apesar da polêmica inicialmente estabelecida, o certo é que já paira um consenso entre os juristas no sentido de que entre a presunção de inocência e a prisão provisória haverá colidência, desde que, a medida de exceção venha estritamente conformada, somente se instaurando o atrito, no caso de ausência dos pressupostos e fundamentos legais que lhe dão base, pois, ai sim, faltando seu elemento de maior peso - periculum in mora - não poderá haver convivência harmônica, conforme leciona Capez, citando Flávio Gomes, e não poderá subsistir, em virtude disso, o decreto de rigor, por constituir tão somente uma desautorizada e inaceitável antecipação de pena.

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O problema ainda desperta preocupações, pois vem ferindo direitos, apesar de termos constatado uma sensível mudança no atuar dos operadores/aplicadores do Direito, à medida em que vem ganhando forças as novas teorias epistemológicas, possibilitado vir à tona propostas inovadoras, que se contrapõem a velhos paradigmas, atualmente assentados e ainda prevalentes, e que necessitam ser superados, vez que já não garantem nem condizem com as múltiplas necessidades do homem pós-moderno, razão pela qual deu-se ensejo à crise hoje enfrentada no mundo jurídico. Oxalá, com o multiplicar dessas novas vertentes, que apontam para uma forma mais consciente de produção/aplicação do Direito, possa este vir a tomar novos rumor, derivando da objetivação expoentizada em suas atuais diretrizes, de fundo conservador e já ultrapassado, inspirado pela filosofia da consciência, para que possamos ouvir, de novo, o memorável e esperançoso brado: "Ainda há juízes em Berlin"...

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Sobre o autor
Júlio Santa Cruz

Defensor Público – Recife/Pe

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTA CRUZ, Júlio. Cautelaridade sem comodidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 231, 24 fev. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4881. Acesso em: 27 abr. 2024.

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