Provavelmente, a face mais injusta da guerra fiscal é a conduta dos Estados que, visando anular os efeitos dos incentivos ficais irregularmente concedidos por outros, usam determinados mecanismos que transferem diretamente todo o ônus para o contribuinte, sem que este tenha qualquer culpa. Muitos Estados, mesmo antes de uma declaração de inconstitucionalidade do benefício fiscal a que se refere, passaram a vedar a utilização de crédito fiscal de mercadorias adquiridas de outra unidade da federação, de fornecedores que receberam benefício fiscal sem permissão no CONFAZ (VASCONCELLOS, 2014). Vale lembrar que o ICMS segue a sistemática da não cumulatividade, dessa forma, se o contribuinte não pode abater o crédito da operação anterior, ele vai arcar com esse valor. Aliás, esse imposto, por ser um tributo indireto, em regra, transfere toda a carga tributária para o consumidor, chamado “contribuinte de fato”, sendo ele atingido com qualquer efeito na tributação. Nesse raciocínio, a doutrina critica duramente essa conduta por parte dos Estados, como se pode ver nas palavras de CARRAZZA:
As vantagens no campo do ICMS, obtidas enquanto a legislação estadual não for declarada inconstitucional, devem ser preservadas. Afinal, as empresas não podem ser punidas, justamente por haverem se norteado na bússola da legislação da própria entidade tributante.
Nunca é demais insistir que o Estado deve inspirar confiança nas pessoas e, portanto, não pode punir os que, munidos de boa-fé, agem em consonância com o que a lei estabelece. Ainda que esta venha a ser declarada inconstitucional (CARRAZZA, 2011, p.401 apud VASCONCELLOS, 2014, p. 139).
O mais indigno dessa prática é que a maior parte ou, talvez, todos os Estados concedem incentivos fiscais e, justamente os mesmos, estabelecem regras vedando a utilização de créditos fiscais de mercadorias advindas de outros entes federados quando há a concessão do mesmo incentivo. Ou seja, é uma violação clara ao princípio da Moralidade, que “deveria” nortear a conduta da Administração Pública. Sendo uma enorme hipocrisia que um estado estimule a violação do Ordenamento Jurídico, concedendo benefícios fiscais ao arrepio da Lei e, concomitantemente, determine que seus servidores lavrem autos de infração e de lançamento de ICMS para sancionar os contribuintes que seguem leis equivalentes às suas, só que emanadas por outros entes (OLIVEIRA; MATTA, 2009).
Conforme enfatiza José Soares de Melo, torna-se dificílima a situação dos destinatários de mercadoria originadas de outras unidades federativas, tendo que escolher entre dois caminhos complicados: ou adquirem as mercadorias de outros Estados, aceitando o risco de sofrerem todas as consequências de uma possível ação fiscal (cancelamento de créditos fiscais, penalidades, representações criminais, etc.); ou deixam de adquirir mercadorias advindas de outros entes, tendo problemas relativos aos fornecimentos, acarretando a dificuldade de suprimento de seus produtos. Ou seja, os estados além de estarem criando um verdadeiro caos, sob o domínio da total insegurança jurídica, estão interferindo drasticamente no mercado, distorcendo completamente a concorrência (MELO, 2008).
Outro doutrinador que discorre magistralmente sobre o assunto é Paulo de Barros Carvalho. Segundo ele, a Constituição de 1988 atribui aos estados o direito de proporem, por meio de seus governadores, ADI perante o STF visando desarraigar do ordenamento jurídico as normas que prevejam a concessão de benefícios fiscais unilateralmente. Portanto, é totalmente inaceitável que qualquer desses entes federados busque neutralizar os efeitos da concessão de benefícios fiscais que considera indevidos, por meio de vedação de créditos fiscais, estabelecendo o contribuinte como um “inimigo”, e não o Estado que teria editado a norma inconstitucional. Ademais, o adquirente das mercadorias e serviços, estando amparado pelo documento que contenha todos os elementos da operação comercial, “não tem a obrigação nem as condições necessárias para pesquisar eventual existência de incentivo fiscal concedido ao fornecedor” (CARVALHO, 2006, P. 683-684 apud OLIVEIRA; MATTA, 2009, p.552)
REFERÊNCIAS:
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BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11° ed. atualizada por Mizabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 27ª ed., São Paulo: Malheiros, 2010.
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro, 1940- Curso de direito tributário brasileiro/ Sacha Calmon Coêlho – 14° ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
CASSONE, Vittorio. Direito tributário: fundamentos constitucionais da tributação, definição dos tributos e suas espécies, conceito e classificação dos impostos, doutrina, prática e jurisprudência. Vittorio Cassone; prefácio de Ives Gandra da Silva Martins – 18. Ed – São Paulo: Atlas, 2007.
OLIVEIRA, Julio M. de; MATTA, Soraia Monteiro da. “Guerra fiscal e glosa de créditos”, Sistema Tributário Brasileiro e a crise atual. VI Congresso Nacional de Estudos Tributários – IBET- Editora Noesis, 2009
SABBAG, Eduardo. Manual de direito tributário / Eduardo Sabbag. – 8. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016.
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SANTI, Eurico Marcos Diniz de; SORRENTINO, Thiago Buschinelli. Guerra Fiscal e a aplicação do princípio da proporcionalidade. JOTA, 3 de maio de 2015. Disponível em: http://jota.uol.com.br/depois-da-pauta-11-e-12-de-marco Acesso em 1 de maio de 2016.
VASCONCELLOS, Mônica Pereira Coelho de. ICMS: distorções e medidas de reforma/ Mônica Pereira Coelho de Vasconcellos – Vol XIII - São Paulo: Quartier Latin, 2014