1.O atual conflito do processo executivo
Exemplarmente citado pelo Prof. Humberto Theodoro Jr, Couture bem antecipou o dilema que hoje aflige aos advogados, aos juízes e, principalmente, às partes que vêem no Poder Judiciário a ferramenta capaz de solucionar os conflitos sociais cada vez mais presentes. Disse o incontestável Jurista,
"na ordem jurídica, execução sem conhecimento é arbitrariedade; conhecimento sem possibilidade de executar a decisão significa tornar ilusórios os fins da função jurisdicional."
Uma breve explicação. A execução é a ferramenta do Poder Judiciário de fazer valer o direito de um titular (credor) contra quem deve, mas não cumpre voluntariamente a obrigação ou a satisfação daquele direito. É de se frisar que o direito do credor pode ser aquele declarado pelo Judiciário – e essa é a função do processo de conhecimento: investigar as razões e declarar lato sensu o direito, aplicando a regra legal mais adequada aos fatos – e pode ser também o direito pré-constituído, hábil a dispensar a fase de conhecimento e habilitar seu titular a valer-se da execução forçada. (aqui nesta categoria, estão os títulos executivos extrajudiciais previstos no artigo 585, II, do CPC).
No momento que vivemos, a hipótese mais sensível é a execução por título judicial, em que, afastada a necessidade de declaração do direito, se vê o credor na posição de fazer valer a decisão do Poder Judiciário. Ao lado do credor, já que a execução visa satisfazer aquilo que ele – Julgador – entendeu como o justo à hipótese, está o Poder Judiciário, daí surgir o primeiro princípio: o da efetividade.
Em contra-ponto, há o princípio da menor onerosidade do processo executivo para o devedor. Por ele, v.g., a penhora de dinheiro ou de renda só deveria ser feita nas hipóteses em que isto fosse absolutamente necessário ao alcance da satisfação do credor, sendo vedado adotar tal constrição como ferramenta de coação ao devedor.
Esse é o conflito: como atender ao princípio da efetividade e garantir que as decisões judiciais sejam cumpridas sem abandonar, por completo, a garantia contida no princípio da menor onerosidade da execução para o devedor ?
2. O princípio da efetividade
A execução por título judicial traz em seu bojo um objetivo que se soma à pretensão do credor de ver a satisfação de seu crédito: a necessidade das decisões do Poder Judiciário serem cumpridas, respeitadas e serem, como diz o nomen júris, efetivas. Na linguagem popular, é dito que "decisão judicial não se discute; se cumpre.".
Mas, a rotina das lides forenses tem mostrado, ao longo do tempo, que o processo de execução se afastou – e muito – dos princípios que regulam e norteiam os direitos do credor. Em direção oposta, por uma série de razões que dispensam uma repartição de responsabilidades entre todas as personagens de um processo judicial, a execução produzia no credor a sensação de que, novamente na língua do povo, "se ganha, mas não se leva".
Como, ao contrário do legislador civil, o legislador processual tem preferido reformas pequenas, pontuais e que não produzam choques violentos nas questões em curso (lembre-se que as mudanças processuais atingem, inclusive, os processos em andamento), temos acompanhado, ao longo dos últimos tempos, pequenos ajustes nas regras processuais com o fito de evitar a desmoralização do Judiciário como solucionador de conflitos sociais.
A Lei 10.358 de 27.12.01 é exemplo adequado da movimentação legislativa na ordem processual.
Vejamos um comando inserido na citada Lei.
"Art. 14 – São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
(...)
V – Cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final."
Além das alterações legais, cuja utilização nos casos concretos nem sempre é feita com a velocidade imaginada, há uma efetiva alteração de postura geral das partes envolvidas em um processo.
O Judiciário não tem poupado esforços para tornar efetivas as suas decisões. A penhora on line é um exemplo de concretização desses objetivos.
3. O princípio da menor onerosidade para o devedor
Mas, há outro lado. O lado do devedor. Não de qualquer devedor, mas sim a visão do devedor de boa-fé, assim entendido aquele que, tal como o credor, tenta proteger aquilo que entende ser o seu direito e se vale das regras que o legislador criou.
Ao contrário do entendimento hoje majoritário, nem sempre aquele que se vê no pólo passivo de uma execução, ainda que por título judicial, ali está com o objetivo de fugir ao cumprimento de sua obrigação.
No campo do Direito Trabalhista, a questão se mostra ainda mais complexa. Antes, uma advertência: que não se enxergue aqui nenhuma crítica às pessoas ou às instituições envolvidas nas matérias trabalhistas.
Mas, não se pode ignorar que, em algumas ocasiões, a verdade real é substituída, por diversas razões, pelo que ouso chamar de verdade processual. A complexidade das questões de prova na Justiça do Trabalho pode produzir – e, sem esforço, exemplos poderiam ser citados – "verdades" constituídas na lide e que não precisam, necessariamente, guardar sintonia com a realidade dos fatos extra-autos.
Nessas hipóteses em especial, mas também em todas as outras que levam ao processo de execução, é preciso que o Julgador jamais perca de vista o princípio contido no artigo 620 do CPC que exige que a execução se faça da forma menos onerosa para o devedor.
Nas palavras do Ministro Teori Albino Zavascki, acompanhado pela C. 1ª Turma do STJ no julgamento do AGA 483.789/MG,
"1. O artigo 620 do CPC expressa típica regra de sobredireito, cuja função é a de orientar a aplicação das demais normas do processo de execução, a fim de evitar a prática de atos executivos desnecessariamente onerosos ao executado. 2. Embora não tenha força para, por si só, comprometer a ordem legal de nomeação dos bens à penhora estabelecida no artigo 11 da Lei no. 6.830/80 e no artigo 655 do Código de Processo Civil, o princípio da menor onerosidade (art. 620 do CPC) pode, em determinadas situações específicas, ser invocado para relativizar seu rigorismo, amoldando-o às peculiaridades do caso concreto. (...)"
4. O equilíbrio.
No ensinamento colhido do RESP 264495/SP, relatado pelo festejado Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira:
Processo Civil. Execução. Penhora de TDAs (Títulos de Dívida Agrária) por Oficial de Justiça. Princípios da Adequação e da Satisfação do Interesse do Credor. Doutrina. Recurso Provido.
(...)
II – Ao escolher os bens para a penhora, o oficial de justiça deve adequar os interesses contrapostos de menor onerosidade para o devedor e de satisfação do interesse do credor, que limitam a sua liberdade de escolha, devendo atentar, sempre que possível, para a gradação legal.
(...)"
No curso do voto, a matéria é exaurida.
"A conciliação desses dois princípios contrapostos é que deve nortear a solução de cada caso concreto e mediar a aplicação dos arts. 655, 656 e 620 do Código de Processo Civil. A respeito, o RESP 1.813-RJ, de que fui relator:
1. O princípio segundo o qual a execução deve realizar-se da forma menos onerosa possível para o devedor não tem o condão de subverter o procedimento contemplado em lei, um dos sustentáculos do devido processo legal.
(...)
E, ainda sobre o tema, o magistério de Enrico Túlio Liebman:
A gradação é estabelecida para facilitar o melhor andamento da execução, dando preferência aos bens que se podem mais facilmente alienar, e com melhores resultados. Mas, na escolha dos bens, os oficiais de justiça devem também procurar conciliar possivelmente os interesses das partes, evitando prejudicar o executado mais do que for necessário. As disputas eventuais deverão ser resolvidas tendo em mente estas finalidades da lei." (Processo de Execução, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1980, no. 61, p.133).
Assim, o que se pede do Judiciário é o equilíbrio, a cautela a e análise de cada caso, pontualmente, evitando que a generalização de uma conduta produza, como acontece, injustiças de difícil tardia recuperação.
A penhora on line é uma ferramenta positiva ? Não se tem a menor dúvida. É ela um instrumento hábil a retirar da sociedade a sensação de injustiça.
Não se pode, porém, esquecer que, muitas vezes, da penhora até a entrega do bem penhorado – ou do resultado de sua alienação – ao credor, muitos anos podem se passar, sem que para isto concorra o devedor.
A posição do Judiciário Trabalhista não é, entretanto, pelo equilíbrio e sim pela imposição, em abandono completo do princípio da menor onerosidade, do princípio da satisfação ou da efetividade.
É assim, por exemplo, o conceito contido no Provimento 1/2003 da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho que diz, logo em seu parágrafo primeiro, que:
Art. 1º – Tratando-se de execução definitiva, o sistema BACEN JUD deve ser utilizado com prioridade sobre outras modalidades de constrição judicial.
Mais uma vez, vemos normas administrativas revogarem a lei. Pelo Provimento citado, vazio restou o artigo 652 do CPC que dispõe que o devedor poderá nomear os bens que espera sejam penhorados para que ele possa embargar à execução. O artigo 655 complementa e, estabelecendo uma relação preferencial de bens, diz que o devedor no ato de nomeação de bens observará a ordem ali elencada.
No mesmo arrastão de modificação da lei processual, vai por terra o artigo 656 do CPC que, independentemente da ordem, permite que a nomeação seja válida se for da conveniência do credor.
A rotina é diferente e as conseqüências são terríveis para o setor produtivo, atropelado por decisões judiciais que produzem graves injustiças e causam danos aos que, embora inseridos no pólo passivo de uma execução, nada mais pretendem do que defender seus direitos.
Ninguém melhor para descrever parte dos danos do que a própria Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho. Leia-se parte do mais recente Provimento – o de no. 3/2003 – que dispõe textualmente:
"CONSIDERANDO o pedido de providência no. PP-96.588/2003, formulado pela Companhia Brasileira de Distribuição (Grupo Pão de Açúcar);
(...)
CONSIDERANDO que até o momento não existe sistema informatizado de resposta on line das entidades financeiras, o que retarda consideravelmente o desbloqueio das ordens constritivas cumpridas em excesso, pois as agências bancárias respondem por ofício ao Juiz bloqueador;
CONSIDERANDO que apesar disso é necessário manter o sistema dos bloqueios indiscriminados, diante do comportamento delituoso de alguns gerentes de bancos, que solicitam ao correntista a retirada dos depósitos para evitar a concretização da constrição sobre a conta bancária do cliente;
CONSIDERANDO que é possível evitar os males do bloqueio múltiplo e indesejado, ensejando-se que as empresas de grande porte, estabelecidas em várias localidades do território nacional, e que, em razão disso, mantenham contas bancárias e aplicações em várias instituições financeiras do país, possam indicar uma conta principal, apta a sofrer os bloqueios do sistema BACEN JUD, contanto que se obriguem a manter fundos suficientes em tal conta, suplementando-os imediatamente em caso de que tais fundos sejam insuficientes para suportar o bloqueio, e sujeitando-se, na hipótese de impossibilidade de concretização da constrição da constrição sobre a conta indicada, a suportar a demora dos desbloqueios."
Em outras palavras. Abandona-se o equilíbrio e a análise de cada caso que é o esperado da atuação da Justiça do Trabalho, se rasgam as leis processuais, e se impõe ao devedor os ônus da penhora on line, inclusive o do bloqueio múltiplo (quando o mesmo valor executado é penhorado em todas as contas que tenha o devedor) e, ainda mais, o da demora do desbloqueio, quando feito em excesso.
Se há na Constituição direitos fundamentais a serem respeitados, a sistema escolhida para fazer valer o elogiável instituto da penhora on line é manifestamente contrário à Lei Magna e é preciso, mais do que ações isoladas, uma atuação do setor produtivo do país para que, conjuntamente, possamos alcançar com o Judiciário o equilíbrio e a ponderação recomendados pelo Superior Tribunal de Justiça.
Impor a alguém que faça algo diferente do previsto em Lei, ameaçando-lhe de causar mal maior, é atitude incompatível com o sistema democrático, indigna da nossa tradição de vanguarda no mundo do Direito e que, certamente, no momento oportuno, será rechaçada pelo próprio Poder Judiciário.
A penhora on line veio para ficar, já que é positiva, e nosso esforço deve ser para que a sua operação se faça dentro dos limites do respeito à Lei e até que isso aconteça, não devemos abrir mão do uso de todos os recursos previstos na CF/88 e na legislação ordinária que tenham por escopo coibir arbitrariedades, evitar violação a direitos e inibir abusos de quem quer que seja.