A tese da inexistência dos atos administrativos e o Supremo Tribunal Federal

Waldir Maranhão (PP/MA) poderia ter barrado o impeachment

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A jurisprudência do STF não reconhece a distinção entre atos nulos e inexistentes (RE 99936); e o fundamento de Maranhão, baseado na extensão da prerrogativa dos líderes de bancada, insuscetível de revisão judicial (questão "interna corporis").

Alvo de gracejo, a decisão de Waldir Maranhão (PP/MA), que anulou de forma monocrática o processo de “impeachment”, era a chance mais concreta de evitar o afastamento da Presidenta Dilma. A tese: a jurisprudência do STF não reconhece a distinção entre atos nulos e inexistentes (RE 99936, Rel. Ministro Moreira Alves, DJ de 16.03.83); assim, o Presidente do Senado Federal não poderia simplesmente desprezar a decisão do parlamentar; e a desconstituição da decisão do presidente interino da Câmara dependeria de pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. A grande jogada é o fundamento de Maranhão, baseado na extensão da prerrogativa dos líderes de bancada – questão eminentemente regimental – enquanto a jurisprudência da Corte, por sua vez, é contrária ao reexame de questão “interna corporis”.

A tese da inexistência foi gestada no direito privado, e sua necessidade é controversa mesmo nesse ramo. Para Pontes de Miranda, a autonomia do ato inexistente desafia a lógica. Embora estanques, o plano da eficácia pressupõe o da existência. Prossegue Pontes: “(...)não existir, estando no mundo jurídico, seria absurdo, não se pode raciocinar, em qualquer ciência, sem respeitar o que é lógico, o que é matemático e o que é físico”[i].  Sua utilidade, para o jurista, seria de pouco relevo. Ainda segundo o autor, a inexistência limita-se a separar o jurídico do não-jurídico, comparando sua importância ao interesse do nadador de saber onde acaba a piscina.

O gênio de sua criação remonta ao civilista alemão Karl Salomo Zachariae, que pretendia resolver controvérsia relativa aos efeitos do casamento putativo em que ausente a vontade de um dos nubentes, embora chancelado por autoridade competente. O defeito era no suporte fático, afetando a existência do ato. Todavia, o timbre estatal atribuía efeitos incontestáveis ao ato, o que, correlata à tipicidade das nulidades (“numerus clausus”), forçou a criação da supernulidade, alcunhada de “teoria da inexistência”. Sua utilidade: evitar a irradiação de efeitos imutáveis a terceiros de boa-fé (casamento putativo), o que se fez com o toque de midas da inexistência, caso em que a sentença declaratória expungiria todo e qualquer efeito decorrente do ato. Entender pela nulidade preservaria os efeitos até a desconstituição do ato aos filhos (herdeiros de boa-fé) – enunciado que permanece, mutatis mutandis, no art. 1561 do Código Civil de 2002.

O transplante da teoria da inexistência para o Direito Público é negado pela maioria dos administrativistas. Marcelo Caetano entende pela desnecessidade de categoria autônoma, pontuando que a reação do ordenamento será a mesma prevista para os atos nulos[ii]. Mesmo os defensores do instituto limitam sua incidência aos comportamentos correspondentes a condutas criminosas. Para Celso Antônio, o interesse do Direito Público na distinção entre atos nulos cinge-se à convalidação, sendo suficientes as categorias nulo/anulável. Pontua Bandeira de Mello, os atos inexistentes seriam reservados aos atos que configuram também crime, àqueles que:

“(...) assistem no campo do impossível jurídico, como tal entendida a esfera abrangente dos comportamentos que o Direito radicalmente inadmite, isto é, dos crimes, valendo como exemplo as hipóteses, já referidas, de “instruções” baixadas por autoridade policial para que subordinados torturem presos, autorização para que agentes administrativos saqueiem estabelecimentos de devedores do fisco ou para que alguém explore trabalho escravo etc.”[iii]

O Supremo Tribunal Federal analisou o tema de forma minudente no RE 99936/RS. No caso, pretendia-se desconstituir ato de aposentação maculado de falso ideológico. Ultrapassado o lustro prescricional entre o ato e a inicial na origem (art. 1º do Decreto 20910/32), postularam o reconhecimento da inexistência, forte no caráter criminoso que motivou o ato e diante da imprescritibilidade das ações declaratórias. A tese foi rechaçada pela Corte. Além do desvio lógico da tese da inexistência, por admitir ato inexistente eficaz, na senda de Pontes, o Ministro Moreira Alves realçou que o parágrafo único do art. 2º da Lei 4717/65 (Lei da Ação Popular) não faz distinção entre nulo e inexistente, considerando inclusive o desvio de poder e incompetência sancionáveis com a nulidade. Desse modo, ainda que proveniente de ato criminoso, entendeu a Corte que, na hipótese, o ato da aposentação produziu todos os seus efeitos correspondentes, sendo sua desconstituição vedado, por ter sido ultrapassado cinco anos da prática do ato. A tese da inexistência foi rechaçada pela Corte, mesmo em se tratando de ato administrativo criminoso.

Aplicando o mesmo entendimento ao caso Maranhão, não poderia o Presidente do Senado Federal, antes da revogação, simplesmente desconsiderar a decisão do Presidente interino da Câmara. Ainda que alegasse ato criminoso, o ato era existente, dependendo a desconstituição dos seus efeitos de ato anulatório.

Diga-se de passagem, a anulação da decisão do Presidente da Câmara demandaria descomunal ônus argumentantivo. Afinal, a boa-fé consubstancia princípio geral de direito (Dworkin), razão por que a má-fé, como fundamento anulatório, dependeria de prova, além de motivação, por decorrer de reexame de ofício (art. 50, VI, da Lei 9784/99).  Demais disso, ainda que o recurso da AGU fosse intempestivo, não caberia desconsiderá-lo. A imperar a lógica do precedente legislativo, daqui em diante, os presidentes de tribunais simplesmente rasgariam recursos extemporâneos, sendo despiciendo qualquer manifestação a respeito. O absurdo da conclusão comprova o da premissa: afinal, o direito regula o ingresso e a retirada do sistema, regra válida em qualquer de seus subsistemas (ordenamento dinâmico de Kelsen).

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Sem embargo, é discutível sequer a ocorrência de preclusão no caso, pelo menos no sentido jurídico (de perda de faculdade, por ônus não cumprido). Hierárquica não houve, por conta da igualdade entre as Casas. Consumativa menos, porque é dever do Presidente da Câmara, ao admitir a instauração do processo contra Presidente da República, por crime de responsabilidade, comunicar o Presidente do Senado Federal dentro de suas sessões, sem nenhuma decisão saneadora (art. 218, § 9º, do RICD). De notar, ainda, que a faculdade recursal, na Câmara Baixa, é limitada aos parlamentares (arts. 95, § 8º, 80, § 1º, 164, § 2º, 141, todos do RICD). Enfim, a interposição de “recurso”, pela defesa técnica do processado, contra decisão de abertura de “impeachment”, não tem prazo regimental. Ainda que falseável a tese da inocorrência de preclusão, a propositura de “recurso”, após a comunicação ao Presidente do Senado Federal, não caracteriza nulidade patente, ainda mais com o timbre de inexistência – o que é inadmissível, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

De todo modo, admitir a existência da decisão de Waldir – e, por consectário, sua eficácia – implicaria sua imutabilidade. Conseguiu, por ato formal, o que era impossível à defesa técnica, barrar o “impeachment”.  Embora a tese defensiva da Presidenta – engenhada pelo preclaro José Eduardo Cardozo – fosse convincente, o reconhecimento de vício no procedimento pelo judiciário, avançando o dique da preliminar de conhecimento, era praticamente impossível. O Presidente de Câmara inverteu o jogo. Com sua decisão, era o Supremo Tribunal Federal que não poderia reexaminar os fundamentos do ato administrativo, todos regimentais, como a prerrogativa dos líderes de orientar a bancada na decisão de admissibilidade do processamento de “impeachment”. Trata-se de questão “interna corporis”, cujo reexame é vedado ao STF, por conta de jurisprudência centenária da Corte. Enfim, Maranhão tinha tudo para atravancar o processo de impeachment, mas retrocedeu. Tinha um “royal straight flush” na manga, mas resolveu sair do jogo.


[i] MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015 (coleção tratado de direito privado; 60), p. 14

[ii] CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Tomo I. Coimbra: Almedina, 1997, p. 321

[iii] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 210

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Sobre o autor
João Paulo Rodrigues de Castro

Defensor Público Federal

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