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Por uma reconfiguração do espaço geográfico:

uma análise dos impactos da globalização nos territórios

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24/03/2004 às 00:00
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Entendendo a globalização como um fenômeno não somente econômico, procuraremos ver quais os impactos da mesma na configuração geográfica dos territórios, tentando investigar os efeitos de tal processo na configuração interna e externa dos antigos Estados-Nações.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; I – "ADMIRÁVEL MUNDO NOVO", 1.1– Globalização: a abertura de infinitas possibilidades, 1.2. - "Por uma outra globalização";II – A REMODELAÇÃO DO ESPAÇO GEOGRÁFICO,2.1 – A tendência de descentralização nas diversas formas de Estado: federal, unitário e regional,2.2 – Panacéia de todos os males?;CONCLUSÃO;BIBLIOGRAFIA


INTRODUÇÃO

Globalização é uma palavra muito utilizada nas sociedades atuais, um termo que está na moda e que por isso mesmo não é suficientemente problematizado, tendo-se tornado senso comum a idéia de que tal fenômeno é primordialmente econômico, configurando-se assim um discurso único cujo abandono é improvável, haja vista a idéia difusa da irreversibilidade de tal processo que, bem ou mal, acham-se inseridos todos aqueles que de uma forma ou de outra ingressaram no mercado mundial.

De fato, a internacionalização dos mercados não é característica exclusiva da configuração econômica atual, o que se pode comprovar com a integração da África e da América no comércio mundial como colônias de Portugal e Espanha a partir do século XV, dando início ao mercantilismo. Como afirma Paul Singer, a "globalização pretende ser uma mudança qualitativa da internacionalização, na medida em que grandes processos em comunicação e transporte aproximaram ainda mais todos os povos no sentido material e cultural" (SINGER, 1997:4). Assim, pode-se dizer que o fantástico desenvolvimento tecnológico propiciou uma alteração do espaço e do tempo, reduzindo distâncias e tornado viável um contato imediato entre os pólos opostos do globo, gerando assim condições propícias para transações comerciais entre países que até então encontravam dificuldades naturais para o estabelecimento de relações recíprocas.

O avanço tecnológico ocorrido na modernidade possui um sentido ambíguo, já que ao mesmo tempo que permite o homem chegar à lua, gera milhões de desempregados na medida em que as empresas, visando aumentar a competitividade no mercado mundial, substituem os trabalhadores por equipamentos de automação. O fato é que o desenvolvimento tecnológico não possui essa visão negativa por si só, é basicamente a utilização política do mesmo que ocasiona as mazelas a ele atribuídas. De acordo com o filósofo da primeira geração da Escola de Frankfurt, a tecnologia deveria servir para libertação do homem, e não para uma maior exclusão e opressão social.

"Os processos tecnológicos de mecanização e padronização podem liberar energia individual para um domínio de liberdade ainda desconhecido, para além da necessidade. A própria estrutura da existência humana seria alterada; o indivíduo seria libertado da imposição, pelo mundo do trabalho, de necessidades e possibilidades alheias a êle; ficaria livre para exercer autonomia sôbre uma vida que seria sua." (MARCUSE, 1979:24)

Do mesmo modo que não se pode atribuir à tecnologia em si os efeitos negativos que sua irracional utilização provoca na sociedade, cabe-nos esclarecer neste trabalho se as mazelas decorrentes do processo de globalização são conseqüências inerentes e irreversíveis a esse processo ou se, na verdade, é justamente a visão homogênea da globalização como um fenômeno essencialmente econômico que, na verdade, acaba ocultando outras dimensões desse mesmo processo, dimensões essas não governadas pela racionalidade egoísta e pragmática do mercado, e que por isso mesmo poderiam nos fornecem outras configurações de uma sociedade global nas quais a exclusão generalizada não fosse considerada como um efeito natural passível de ser equacionado pela própria lógica do mercado livre, numa perspectiva neoliberal, ou seja, como uma releitura dos postulados liberais do famoso laissez- faire do século XIX.

Essa visão econômica da globalização nos remete a uma preponderância dos sistema econômico sobre os demais sistemas sociais, como a política, a educação, a saúde, etc. Uma das grandes resistências que os países da União Européia apresentam a tal processo de transnacionalização deriva do medo da derrocada dos conquistados e históricos benefícios sociais que vêem sendo ameaçados pelo mercado globalizado. O que pensadores como Habermas e Giddens, que serão analisados adiante, argumentam, com suas devidas diferenças e peculiaridades, é se não seria necessário uma retomada de posição da política e de que forma isso seria possível. [1]

Por outro lado, a partir do momento que entendemos a globalização como um fenômeno não somente econômico, procuraremos ver quais os impactos da mesma na configuração geográfica dos territórios, tentando investigar os efeitos de tal processo na configuração interna e externa dos antigos Estados-Nações. Para tanto, indagaremos pelo futuro do Estado Nacional, bem como pela organização interna de competências, sempre atentando para as possibilidades da existência de uma futura sociedade global que não produza grandes desigualdades locais, ou seja, a remodelação das competências tanto no nível interno quanto externo deve proporcionar condições de uma existência digna, deve ser capaz de desenvolver uma solidariedade cada vez maior, seja entre estranhos, seja entre aqueles que possuem grandes afinidades étnicas e culturais.


I – "ADMIRÁVEL MUNDO NOVO"

1.1– Globalização: a abertura de infinitas possibilidades.

As sociedades modernas, por serem dessacralizadas, isto é, por serem estruturadas não mais com base em verdades tidas como absolutas, com base em um tradição tida como irrefutável, são altamente complexas, ou seja, apresentam inúmeras possibilidades de escolha justamente pela contingencialidade de toda decisão tomada. Nesse contexto, apesar dos pensadores iluministas terem refutado os dogmas, eles não conseguiram desvencilhar-se do mito, na medida em que elegeram a razão como o novo dogma da modernidade. [2]

Essa crença na razão refletia a confiança na capacidade do homem, como ser racional que é, de prever e controlar o seu futuro. Entretanto, o mundo atual, principalmente após os efeitos do processo de globalização, revela-se totalmente incapaz de ser apropriado e domesticado pela simples razão humana. "Quase pelo contrário, ele é um mundo de deslocamentos e incertezas, um "mundo fugitivo"". (GIDDENS, 1997:37)

Não é mais possível acreditarmos que o planejamento do futuro seja somente uma questão de pleno conhecimento das circunstâncias, pois não existe mais a possibilidade de sabermos quais os efeitos de uma decisão tomada no presente. Giddens trabalha com o conceito de risco manufaturado, que seria resultado da intervenção humana na natureza e na vida social, ou seja, o risco derivaria da não mais naturalidade seja da natureza, seja da tradição social.

O avanço tecnológico e o correspondente aumento do domínio humano sobre a natureza fez com que esta fosse vista não mais como um dado, mas sim como fruto da intervenção humana, o que pode ser comprovado pelo efeito estufa e pelo aquecimento global. No âmbito social, por sua vez, a destradicionalização da tradição a partir do surgimento de uma maior reflexividade na modernidade fez com que questões, até então tidas como necessárias, passassem a serem vistas como fruto de decisões, como, por exemplo, a possibilidade de uma mulher na sociedade atual escolher ter ou não filhos, casar ou não, e até mesmo se divorciar.

A insegurança das sociedades atuais está intimamente relacionada com a interdependência de todos os sistemas sociais, como a economia, a política, a saúde, etc, sendo que esta forma de dependência torna-se evidente agora em um nível global. Para exemplificar, poderíamos dizer que uma decisão macroeconômica freqüentemente afeta a configuração do sistema de saúde pública de determinado país, bem como os demais benefícios sociais porventura existentes. [3]

"Nossas atividades cotidianas são cada vez mais influenciadas por eventos ocorrendo do outro lado do mundo; e, inversamente, hábitos locais de estilo de vida tornam-se globalmente conseqüentes. Assim, minha decisão de comprar uma determinada peça de vestuário tem implicações não só para a divisão internacional de trabalho mas para os ecossistemas terrestres." (GIDDENS, 1997:39)

Percebe-se, portanto, que a globalização ocasionou uma forte ligação entre práticas sociais locais e globais, pondo fim às distâncias espaço-temporais, permitindo assim que os indivíduos tomassem conhecimento de eventos que até então eles não tinham consciência. Pode-se dizer que essa diminuição das distâncias é um aspecto positivo desse processo de globalização, na medida que os indivíduos podem agora ter contato com formas de vida diversas, abrindo a possibilidade de aprendizagem através do confronto com o diferente. A internet é um exemplo de como a comunicação hoje é instantânea, abrindo um novo campo até mesmo para a educação, que pode se beneficiar deste avanço tecnológico em proveito de sua finalidade de ensino.

Todas esses benefícios apresentados acima só corroboram a afirmação feita de que a globalização não é somente um evento econômico, pois junto com a Coca-Cola os países muçulmanos do Oriente recebem toda uma construção teórica sobre os direitos humanos. Não é por acaso que se questiona atualmente a possibilidade de mutilação das mulheres e as demais formas de opressão das mesmas em tais sociedades. Não é possível que um Estado-Nação insira-se na globalização econômica sem ao mesmo tempo imiscuir-se nas demais facetas de tal fenômeno. [4]

Se a globalização possui aspectos positivos, como os apresentados acima, eles são normalmente ofuscados pelos efeitos negativos que um mercado global desregulamentado ocasiona para as economias nacionais. A inserção de países em desenvolvimento na globalização sem qualquer proteção à suas empresas incipientes, já que a regra é que o mercado por si só regularia as transações e proporcionaria um equilíbrio entre os agentes macroeconômicos, tem gerado uma grave crise econômica e social em tais países. Vários e interrelacionados são os fatores que contribuem para dita situação, assim a proibição dos subsídios para as empresas competirem no mercado internacional tem gerado uma quebra das pequenas e médias empresas, o que gera desemprego e diminui o consumo interno, ou seja, a "expansão das exportações desses países baseia-se na diminuição do poder de compra interno. A pobreza é um item introduzido no lado da oferta"(CHOSSUDOVSKY, 2000:12).

No países subdesenvolvidos inseridos nesse processo de globalização resta assim uma economia voltada para a exportação, abandonado-se a regulação pela demanda que atenderia o mercado interno e tornaria o país auto-suficiente, em benefício de uma orientação da produção voltada para a oferta, criando-se necessidades através da propaganda publicitária e transformando-se os cidadãos em meros consumidores passivos, se acaso eles ainda tiverem condições para consumir algo.

Cabe lembrar também do poder dos mercados financeiros, capazes estes de "quebrar" um país de um dia para outro, como ocorreu no México em 1995 e recentemente na Argentina. Suas atividades especulativas afastam-se da economia real, não gerando produção e riqueza no país, servindo, além do mais, como instrumento útil para lavagem de dinheiro, já que se caracterizam pela falta de regulamentação dos Estados.

Essas medidas econômicas descritas acima são adotadas em todo o mundo e representam um consenso no sentido de ser tal política macroeconômica neoliberal inafastável e necessária, ainda que alguns países do dito Primeiro Mundo, contraditoriamente, mantenham certos subsídios para suas empresas quando as mesmas atuam no mercado global. O receio apresentado pela população de membros ativos e futuros da União Européia com respeito à possibilidade de desmantelamento do sistema de bem-estar social consolidado somente reflete a política neoliberal adotada por inúmeros Estados-Nações, comunidades e organismos supranacionais atuais. [5]

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Podemos então levantar vários questionamentos: Como lidar com os efeitos não desejados dessa globalização econômica de cunho neoliberal? Será que o futuro será marcado pela eliminação de qualquer resquício do Estado de Bem-Estar Social? Existirão saídas a partir das outras dimensões do processo de globalização? Essas são algumas perguntas que nos orientarão no desenvolvimento do presente trabalho, de modo que os fantásticos benefícios desse "mundo novo" [6] não sejam ofuscados por uma globalização da exclusão social.

1.2 – "Por uma outra Globalização"

Vimos acima que o discurso da globalização apresenta-se de uma forma hegemônica, como se a economia global configurada de acordo com a perspectiva do livre mercado, isto é, com a pespectiva neoliberal, fosse o único pensamento possível diante da realidade atual. O que ocorre, na verdade, é que esse discurso único acaba pondo fim à diferença entre realidade e ideologia [7], como se a configuração do mercado presente atualmente no contexto transnacional fosse impassível de modificação, ou seja, como se não existissem alternativas a uma política econômica, mundial ou nacional, que garante somente a competição desenfreada entre os diferentes agentes econômicos, o que acaba gerando grandes desigualdades sociais. É oportuno citarmos aqui o geógrafo Milton Santos, pensador que denunciou a existência dessa racionalidade dominante ligada à idéia da globalização como um fenômeno exclusivamente econômico e neoliberal.

"Sem o controle dos espíritos seria impossível a regulação pelas finanças." (SANTOS, 2000:35)

Esse controle dos espíritos acontece de uma forma tão espetacular que os próprios indivíduos sequer têm noção da dimensão dessa influência, sendo que esta pode ser percebida pela transformação em consumidores daqueles que deveriam ser cidadãos, isto é, essa transnacionalização dos mercados atinge as pessoas na própria definição de suas necessidades, o que é uma característica de um mercado voltado para a oferta, de um mercado que abandonou a intenção de auto-suficiência e satisfação da demanda real da população de determinada localidade em benefício de uma economia voltada para a exportação.

Entretanto, como vimos anteriormente, a globalização não se reduz à dimensão econômica, sendo um fenômeno muito mais amplo e que possui, a despeito de seus efeitos perversos, aspectos positivos que não podem ser esquecidos e de onde talvez venha a solução para a configuração de uma outra globalização, na qual a racionalidade egoísta do mercado não seja a única existente.

Além da diminuição das distâncias espaço-temporais já descrita, bem como de outros exemplos que confirmam não ser a globalização somente econômica, como a questão do risco ambiental, podemos citar aqui um efeito jurídico do fenômeno da globalização, qual seja, a remodelação do conceito de soberania. Se por soberania interna entendemos a possibilidade do Estado-Nação tomar livremente as decisões que vincularão seus cidadãos, então temos que revê-la na medida em que as escolhas das políticas internas dos Estados têm sido determinadas por organismos internacionais como o FMI ou o BIRD. Por outro lado, a formação de entidades supra-nacionais, como a União Européia, tem mostrado como países já entendem plausível a abdicação de parte de sua soberania em função de interesses que não são só seus, ou seja, de interesses que referem-se a vários Estados ou ao mundo de uma forma global.

"O Estado deve reagir estruturalmente à globalização. A democratização da democracia antes de mais nada implica descentralização – mas não como um processo unilateral. A globalização cria um forte ímpeto e lógica no sentido de delegação de poder para baixo, mas também uma delegação de poder para cima. Em vez de meramente enfraquecer a autoridade do Estado-Nação, esse duplo movimento – um movimento de dupla democratização – é a condição de reafirmação daquela autoridade, uma vez que ele pode tornar o Estado mais reativo às influências que de outro modo o flanqueiam por completo." (Grifos nossos) (GIDDENS, 1999:82)

De fato, esse duplo movimento de democratização tem sido apresentado por vários pensadores atuais como um possível caminho para uma sociedade mundial mais justa, uma sociedade cosmopolita na qual as diferenças entre as nações não sejam empecilho ao convívio harmônico entre as mesmas.

Habermas, ao analisar o déficit de legitimidade da União Européia, já que as decisões de Bruxelas atingem diretamente os cidadãos sem que os mesmos tenham qualquer participação no processo decisional, pois as escolhas são tomadas por especialistas representantes dos governos membros, afirma que é necessário que a transnacionalização seja operada não somente no mercado, mas sim que também haja a construção de uma esfera pública mundial e de um governo global, pois somente assim o mercado livre poderá sofrer restrições e poderão ser compensadas as desigualdades que tal processo globalizante neoliberal necessariamente vem gerando.

"Como um primeiro exemplo para uma democracia além dos limites do Estado nacional, apresenta-se, naturalmente, a União Européia. Contudo, a criação de unidades políticas maiores ainda não muda nada no estilo de fazer concorrência pelas sedes ou praças de investimento, ou seja, na prioridade dada à integração de mercado, enquanto tal. A política somente poderá "ganhar terreno" diante dos mercados globais, quando, a longo prazo, for possível criar uma infra-instrutura capaz de sustentar uma política interna voltada para o mundo, a qual não pode estar desvinculada dos processos democráticos de legitimação." (HABERMAS,2003:115)

Realmente, se as associações supra-nacionais como a União Européia, o Mercosul e o Nafta forem pensadas somente como um mecanismo de aumentar a competitividade no mercado livre global, o que se estará pretendendo é unicamente o aumento das vantagens para os países mais bem preparados para a concorrência internacional, com o correlato aprofundamente do fosso que separa ricos e pobres, ou seja, com efeitos desastrosos para os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento que não conseguirem inserir-se adequadamente em qualquer desse blocos em formação.

O que Habermas visualiza nessa nova ordem internacional não é, portanto, o ir além dos Estados-Nacionais para a formação de blocos econômicos egoístas, mas sim a possibilidade de criação de uma sociedade cosmopolita, na qual a política terá o papel de regulamentar, de certa forma, o mercado global, além de domesticar suas conseqüências secundárias, como o aprofundamento das desigualdades sociais. Trata-se de uma retomada da política frente à economia globalizada, ou seja, trata-se de colocar a política como o boi puxando a carroça da economia.

A sociedade cosmopolita, tal como preconizada por Jürgen Habermas, parte da pressuposição de que é possível a construção de uma solidariedade entre estranhos, de que portugueses, ingleses e franceses, apesar de suas diferenças, possam ter consciência de que possuem interesses comuns, isto é, possam ter consciência de que eles podem construir uma identidade como cidadãos europeus e do mundo sem deixar de serem portugueses, franceses ou ingleses. [8]

"Os Estados singulares deveriam vincular-se – de um modo visível para a política interna – a procedimentos cooperativos obrigatórios de uma sociedade de Estados comprometida com o cosmopolitismo. A questão decisiva é, portanto, se pode surgir uma consciência da obrigatoriedade da solidariedade cosmopolita nas sociedades civis e nas esferas públicas políticas dos regimes geograficamente amplos que estão se desenvolvendo. Apenas sob essa pressão de uma modificação da consciência dos cidadãos, efetiva em termos da política interna, a autocompreensão dos atores capazes de atuar globalmente também poderá se modificar no sentido de eles se compreenderem cada vez mais como membros do quadro de uma comunidade internacional e que, portanto, se encontram submetidos a uma cooperação incontornável como também, conseqüentemente, ao respeito recíproco dos interesses." (Grifos nossos) (HABERMAS, 2001:72/73)

O professor Milton Santos também acredita que uma outra globalização será configurada com a tomada de consciência dos cidadãos, mais especificamente ele se refere a uma auto-conscientização dos indivíduos, na medida em que estes entrem em contato com a escassez. O que deve ser ressaltado aqui é que esse movimento de baixo para cima é também acompanhado de outro, o de cima para baixo, ou seja, só se pode falar em inserção global na medida em que as pessoas forem inseridas em suas próprias comunidades locais. Por isso o citado geógrafo propõe:

"o desejável seria que, a partir de uma visão de conjunto, houvesse redistribuição dos poderes e de recursos entre as diversas esferas político-administrativas do poder, assim como uma redistribuição das prerrogativas e tarefas entre as diversas escalas territoriais, até mesmo com a reformulação da federação". (Grifos nossos) (SANTOS, 2000:75)

Giddens, como filósofo da terceira via, postura política de centro-esquerda que procura administrar os efeitos perversos da globalização [9], colocando-se em uma atitude mais defensiva, também considera a descentralização do poder no interior do Estado como uma política desejável na medida em que propiciaria maior autonomia aos indivíduos para que os mesmos pudessem participar diretamente dos processos decisionais e atividades que os afetassem diretamente. Trata-se tal descentralização de uma política gerativa, que para tal pensador significa uma política que leva em conta a reflexividade das sociedades modernas, um política "que procura permitir que indivíduos e grupos façam as coisas acontecerem, em vez de terem as coisas acontecendo a eles, no contexto das preocupações e metas sociais gerais." (GIDDENS, 1997:50)

O que é comum a todos esses autores, Habermas, Giddens e Milton Santos, é o papel relevante que os mesmos atribuem a uma cidadania ativa em uma sociedade globalizada e complexa como a atual. Acredita-se no poder dos novos movimentos sociais e outros grupos de pressão existentes na sociedade, como as associações de bairro e as ONGs. A participação dos indivíduos numa esfera pública aberta e plural é condição para controle não só do aparato estatal, como forma de evitar ou denunciar a privatização do público, mas também mecanismo de reinvindicação de políticas públicas ou de exigência de uma remodelação da política econômica. Os fatos atuais mostram-nos que a cidadania pode até mesmo ser um instrumento de controle do mercado, já que se os indivíduos recusarem, por qualquer motivo, a consumir determinado produto, tal fato provavelmente terá efeitos no sistema produtivo.

A questão que se coloca, portanto, é que mesmo existindo entidades organizadas no nível internacional, como a Anistia Internacional ou o Greenpeace, para que as pessoas possam participar dessa esfera pública supra-nacional é necessário que as mesmas consigam ser cidadãs em seu próprio país, ou seja, que elas consigam ser atuantes no lugar em que vivem e trabalham. Ousaríamos dizer que o sucesso de uma sociedade cosmopolita passa pelas conquistas de uma cidadania local e até mesmo a posição de determinado Estado-Nação no mercado globalizado somente não será prejudicial aos seus cidadãos se estes conseguirem, em certa medida, controlar a forma como estão sendo inseridos na sociedade global.

Uma questão que também deve ser lembrada aqui é justamente que uma tal sociedade cosmopolita não abandonaria, na perspectiva habermasiana, as conquistas do Estado de Bem-Estar Social, na medida em que a política globalizada serviria justamente para implementar programas compensatórios da atividade de um mercado que não pode ser totalmente domesticado [10]. Como já ressaltamos, o papel do cidadão seria imprescindível, já que ele definiria as demandas necessárias, por outro lado, a cidadania representaria, de certa forma, uma quebra com o antigo sistema de Welfare State, pois os indivíduos, nessa sociedade globalizada, necessariamente teriam que abandonar a posição passiva de meros clientes do aparato Estatal.

Giddens apresenta-nos outra mudança do sistema de Welfare State, pois segundo ele ao invés de o Estado conceder benefícios em caso de infortúnios, o que deveria ser feito é uma política preventiva, de investimento em recursos humanos para uma maior distribuição de oportunidades ao invés de distribuição de recursos.

"O combate à pobreza requer uma injeção de recursos econômicos, mas aplicados para apoiar a iniciativa local. Deixar as pessoas se atolarem em benefícios tende a excluí-las da sociedade mais ampla." (GIDDENS, 1999:120)

Essa mudança do sistema do Welfare State representa muito bem a mudança que Habermas constata entre o antigo paradigma do Estado de Bem-Estar Social para o atual do Estado Democrático de Direito. Ao contrário de uma distribuição de bens, a configuração do Estado e da Política atual dão preponderância ao reconhecimento, sendo que este deve ser conquistado através de um processo de lutas e não como uma dádiva recebida passivamente. O desprezo da autonomia privada no modelo do Welfare State não pode mais ser sustentado mas, por outro lado, a autonomia privada não pode ser pensada, como no Estado Liberal, sem a autonomia pública, pois a configuração da individualidade somente se dá no espaço público e, de forma inversa, a autonomia pública somente se exerce como uma possibilidade franqueada ao indivíduo e não como um dever, ou seja, respeitando-se a autonomia privada.

É preciso esclarecer que a defesa da igualdade material em um plano transnacional através de uma retomada da política face ao mercado global, como defendido por Habermas, não significa um retorno ao Estado Social, mas sim se enquadra no que o mencionado autor denomina Estado Democrático de Direito, o qual convive com resquícios tanto do Estado Liberal quanto do Estado Social [11]. Não se pode mais, segundo Habermas, dar preponderância à autonomia privada ou à pública, pois como explicamos anteriormente, há uma eqüiprimordialidade entre o público e o privado, sendo a socialização/individualização uma distinção, já que uma não se dá sem a outra. É oportuno então dizer que o tratar desigualmente os desiguais e igualmente os iguais não pode mais ser visto como uma política a ser pensada e implementada somente pelo Estado, pois qualquer benefício hoje tem de ser pleiteado por aquele que se considera desigual ou igual. Ao falar sobre as conseqüências indesejadas e inesperadas das políticas direcionadas à proteção da mulher, Habermas declara:

"Em lugar da controvérsia sobre ser melhor assegurar a autonomia das pessoas do direito por meio de liberdades subjetivas para haver concorrência entre indivíduos em particular, ou então mediante reivindicações de benefícios outorgadas a clientes da burocracia de um Estado de bem-estar social, surge agora uma concepção jurídica procedimentalista, segundo a qual o processo democrático precisa assegurar ao mesmo tempo a autonomia privada e a pública: os direitos subjetivos, cuja tarefa é garantir às mulheres um delineamento autônomo e privado para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado sem que os próprios envolvidos articulem e fundamentem os aspectos considerados relevantes para o tratamento igual ou desigual em casos típicos. Só se pode assegurar a autonomia privada de cidadãos em igualdade de direito quando isso se dá em conjunto com a intensificação de sua autonomia civil no âmbito do Estado." (HABERMAS, 2002:297)

Dessa forma, os direitos sociais no Estado Democrático de Direito não podem mais serem vistos como benefícios, pois tal denominação traz consigo uma carga semântica que não condiz com a cidadania que está na base do direito moderno.

Após analisarmos o que resta do Estado de Bem-Estar Social em uma sociedade destradicionalizada como a moderna, e de traçarmos as duas tendências democratizantes desencadeadas pelo processo de globalização, dando ênfase à necessidade de inserção local para que haja inclusão numa sociedade globalizada, cabe perguntarmos pela configuração geográfica interna dos Estados, isto é, desejamos esclarecer se realmente a tendência de transferência de poder de cima para baixo tem ocorrido nas diferentes formas de Estado.

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Sobre a autora
Ana Paula Repolês Torres

Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e bolsista da FAPEMIG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Ana Paula Repolês. Por uma reconfiguração do espaço geográfico:: uma análise dos impactos da globalização nos territórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 260, 24 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4923. Acesso em: 18 dez. 2024.

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