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Por uma reconfiguração do espaço geográfico:

uma análise dos impactos da globalização nos territórios

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24/03/2004 às 00:00
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II – A REMODELAÇÃO DO ESPAÇO GEOGRÁFICO

2.1 – A tendência de descentralização nas diversas formas de Estado: federal, unitário e regional.

Como analisado anteriormente, assistimos hoje, como correlato do questionamento do Estado-Nação, a um duplo movimento de democratização, um direcionado a formas de organização supranacionais, outro voltado para uma reconfiguração interna do poder dentro do próprio Estado. O movimento de baixo para cima é caracterizado pela formação de blocos não somente econômicos, mas também políticos, visualizando-se assim a formação de um possível governo global e de uma esfera pública mundial, como mecanismos aptos não somente para o aumento da capacidade econômica competitiva no nível internacional, mas sim como instrumentos necessários para uma configuração da política num nível mais amplo para que a mesma possa, de certa forma, regulamentar e corrigir os desvios de um mercado livre global.

O movimento de cima para baixo é apresentado por muitos autores, como Giddens e Milton Santos, como uma reformulação da distribuição de poder dentro do Estado-Nação, para que os indivíduos possam participar mais ativamente dos processos decisionais e atividades que os afetarão. Parece, portanto, ser uma tendência nesse mundo globalizado a descentralização de competências dentro das formas de configuração dos Estados, sejam eles Federais, Unitários ou Regionais. [12]

"A tradicional classificação de formas de Estado em unitário e federal está também absolutamente superada pela evolução das formas de organização territorial e repartição de competências, cada vez mais complexas e ricas, havendo claramente, em nível mundial, uma valorização crescente da descentralização territorial efetiva, como forma de ganhar em agilidade, eficiência e, principalmente, democracia, consagrando o respeito à diversidade cultural, que permite sejam encontradas soluções criativas que respeitem o sentimento da localidade, da região cultural e principalmente do sentimento de cidadania que se constrói na rica diversidade das culturas das cidades, espaço real e não virtual." (Grifos nossos) (MAGALHÃES, 2000:14)

Assim, poderíamos dizer que qualquer classificação hoje não é suficiente para englobar a riqueza das diversas formas de configuração dos Estados, havendo uma adaptação dos clássicos modelos às características de cada país, o que é recomendável para a preservação da diversidade existente, a qual exige uma adequação dos moldes gerais às peculiaridades locais. Somente para exemplificar, veremos adiante que encontramos atualmente Estados unitários descentralizados que convivem com a forma autonômica dentre de seu território, sem que haja um desmonte da forma predominante de organização do Estado, como é o caso de Portugal. O próprio modelo autonômico é uma variante do regional, diferenciando-os pela voluntariedade de formação das comunidades autônomas, como ocorre na Espanha.

Trabalharemos então com três países que possuem formas de Estado diversas, o Brasil (Estado Federal), a Espanha (Estado Unitário) e Portugal (Estado Unitário), para mostrar que a tendência de descentralização está presente em todos eles, e que cada um desenvolve peculiaridades que os afastam dos tradicionais modelos, confirmando assim que não é mais possível o enquadramento em classificações rígidas e gerais.

Todos esses países têm um ponto em comum, todos eles saíram de um período autoritário e suas Constituições, a brasileira de 1988, a espanhola de 1978 e a portuguesa de 1976, possuem um forte apelo democrático, contendo vários dispositivos, como aqueles referentes a uma maior descentralização de competências, que visam dar concretude a tal regime político. A Constituição Brasileira previu mais um ente na federação, o município, atribuindo constitucionalmente competências a este, sendo que ao mesmo é permitido elaborar sua Lei Orgânica, norma de caráter constitucional típica desta forma de Estado, já que nela os entes possuem poder constituinte decorrente. Há autores, como José Afonso da Silva [13], que negam a caracterização dos municípios como entes da federação, alegando que faltaria aos mesmos assento no Senado, casa representativa dos membros do Estado Federal.

"A não-representação dos Municípios no Senado Federal não pode ser justificativa de não-aceitação destes como entes federados, primeiro por ser determinação expressa da Constituição e, em segundo lugar, por estarem eles, amplamente, resguardados nos seus interesses perante a União, através dos Senadores representantes dos Estados que os Municípios integram." (MAGALHÃES, 1999:158)

O fato dos municípios serem membros da federação já demonstra uma especificidade da federação brasileira, já que o modelo clássico, decorrente da federação norte-americana, somente prevê a existência de dois entes. Essa peculiaridade brasileira é vista por estudiosos como José Luiz Quadros de Magalhães como uma característica que deve ser acentuada, atribuindo-se cada vez mais poderes aos municípios, a fim de criar aquilo que o mesmo autor denomina de uma "federação de municípios" (MAGALHÃES, 1999:115) [14].

A organização do Estado Português também apresenta certas características que o desvincula do clássico Estado Unitário. O artigo 6.º da Constituição de 1976 afirma a natureza unitária do Estado Português, estabelecendo-se a existência de uma só soberania e a impossibilidade de divisão do Estado, como a transformação do mesmo em Estado Federal, sendo a unidade do Estado elencada assim entre os limites materiais de revisão da Constituição. Ocorre que após a democratização desse país, surgiu um movimento de descentralização de poderes, seja através da criação de regiões administrativas, ou de regiões autônomas nos arquipélagos de Açores e Madeira.

"A Constituição procurou ao nível vertical do Estado reagir contra as concepções centralizadoras do regime anterior, que haviam reduzido as autarquias locais a instrumentos de administração indirecta do Estado, sem qualquer autonomia e representatividade. As alterações que a CRP estabeleceu dizem respeito à institucionalização do poder local e à criação de regiões dotadas de autonomia política." (CANOTILHO. MOREIRA, 1991:226)

Visualiza-se, assim, que Portugal evoluiu de um Estado Unitário desconcentrado para um Estado Unitário descentralizado, sendo também encontrado no mesmo a forma regional na medida em que os territórios insulares possuem uma autonomia maior, possuindo órgãos próprios de governo, competência legislativa ordinária, funções administrativas, recursos financeiros próprios e liberdade de decisão dentro das competências a eles atribuídas. [15] Essa autonomia atribuída aos arquipélagos deixa-os, em certos casos, fora da influência de normas elaboradas para o continente, havendo a possibilidade de atuação do Governo somente nas regiões administrativas, excluídas assim as regiões autônomas.

"Ressalte-se que a revisão constitucional de 1997 trouxe a quebra da unidade legislativa da República, com a concepção de um "legislador da República" e um "legislador do Continente", pois as leis gerais da República serão apenas aquelas que expressamente decretem a sua extensão às regiões autônomas. Além disso, as leis regionais só terão que respeitar os princípios fundamentais das leis gerais da República, que, ainda assim, poderão ser derrogados por meio de autorização da Assembléia da República." (ALENCAR, 2000:268)

As autarquias, por sua vez, estão submetidas às normas emanadas pelo poder central, sendo submetidas ao controle tutelar em caso de descumprimento (art. 243 da CRP), apesar de possuírem órgãos e atribuições próprias (art. 239 e 241 da CRP), bem como recursos financeiros próprios (art. 240). Como autarquias a Constituição Portuguesa elenca as freguesias, os municípios e as regiões administrativas. Uma peculiaridade interessante é a previsão constitucional (art. 263 da CRP) da possibilidade de constituição de associações de moradores, o que revela a clara tendência de valorização de uma democracia participativa na Constituição Portuguesa de 1976.

Já nos referimos a um Estado Federal e a um Estado Unitário que apresentam especificidades referentes às características locais do país em que foram implementados. Cabe agora fazer referência a um certo tipo de Estado Regional, que pela sua peculiaridade é chamado de Estado Autonômico. Na Espanha, por aspectos históricos e culturais, encontramos uma forma de Estado que confere uma grande autonomia a determinadas comunidades, chegando a Constituição espanhola a prever, ao lado de uma língua oficial do Estado-Nação, a possibilidade das regiões autônomas adorarem oficialmente uma segunda língua conjuntamente com o espanhol (art. 3 da Constituição da Espanha de 1778).

O Estado é autonômico e não regional típico porque a iniciativa de se tornar uma comunidade autônoma tem que partir da própria região, isto é, "as Províncias limítrofes com características históricas, culturais e econômicas comuns, os territórios insulares e as Províncias de importância histórica regional podem consentir na formação de um autogoverno e constituírem-se como Comunidade autônoma..." (art. 143 da Constituição da Espanha). Tal como na Constituição Portuguesa, os arquipélagos, mais especificamente, Canárias e Baleares, podem gozar de uma maior autonomia, reivindicando, no caso Espanhol, a sua transformação em região autônoma, mesma que eles sejam formados por uma só província. [16] Cabe dizer, ainda, que as comunidades autônomas têm competência para a elaboração de um estatuto próprio, só que o mesmo deve ser aprovado pelas Cortes, sendo este um procedimento necessário para ser transformado em lei, conforme dispõe o art. 146 da Constituição Espanhola de 1778.

Toda essa análise de diferentes formas de Estado serviu para comprovar quão diversas são as possíveis configurações da distribuição de poder/competências dentro de um Estado no mundo atual. Ousaríamos dizer que hoje os países estão mais preocupados com as especificidades locais, o que acaba desconfigurando, de certa forma, os modelos clássicos. Assim, ao pensarmos na União Européia, não vemos nenhum empecilho na configuração de um modelo diferente, de uma federação de Estados-Nações, na qual os seus entes adotem internamente diferentes formas de Estado, como é o caso de Portugal e Espanha. O que está por detrás dessa quebra das formas de Estado tradicionais é a consideração das diferenças, o que é saudável tendo em vista o pluralismo que uma sociedade destradicionalizada como a moderna apresenta.

2.2 – Panacéia de todos os males?

Apesar de ser evidente essa tendência de descentralização, cabe agora analisarmos, apenas a título ilustrativo, alguns fatores que dificultam a obtenção de uma maior participação democrática. Analisando a Constituição Brasileira de 1988, por exemplo, constatamos uma forte concentração de poderes na União, o que é contrário a seu propósito democrático, já que para haver um maior envolvimento popular na coisa pública, é necessário a abertura de canais de participação, o que pode ser melhor viabilizado através dos municípios, tendo em vista a maior proximidade destes dos cidadãos. [17]

O que se verifica na distribuição de competências da Constituição Brasileira é um desrespeito ao princípio da subsidiariedade, concentrando-se poderes na União ao invés de deixar que os Estados e Municípios tenham mais espaço de atuação, o que dificulta uma maior descentralização, dando à União um papel não somente subsidiário. Uma alternativa seria tornar a exceção da delegação das competências privativas do art. 22 da Constituição Federal de 1988 em regra.

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"O art. 22 estabelece que compete privativamente a União legislar sobre direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. O parágrafo único do mesmo artigo dispõe que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas nesse artigo.

Observe que o texto constitucional coloca como absolutamente excepcional o que deveria ser regra. A federação pressupõe a descentralização como regra, e o que a diferencia dos novos Estados regionais e autonômicos cada vez mais descentralizados é o importante fato de que as competências da União devem ser aquelas que se impõem pela sua natureza." (MAGALHÃES, 1999:211)

Cabe dizer que, se fizermos uma comparação da repartição de competências da Constituição Brasileira com a Constituição da Espanha, veremos que não há tanta diferença com relação aos poderes do poder central, basta vermos que o artigo 149 da Constituição Espanhola confere ao Estado poder para legislar, dentre outras, sobre as seguintes matérias: legislação comercial, penal e carcerária, processual e civil.

Com relação à competência concorrente estabelecida no art. 24 da Constituição Brasileira, abstendo-se do fato de que ela também não respeita o princípio da subsidiariedade, pois se assim o fizesse a competência supletiva seria da União e não dos Estados e Municípios, cabe dizer que as normas gerais normalmente elaboradas pela União, como o Código Tributário Brasileiro, descem a minúcias não deixando qualquer espaço para eventual legislação suplementar.

Mesmo que reformas com relação à distribuição de competências, no sentido de aperfeiçoar o federalismo brasileiro, sejam realizadas, cabe afirma que a alteração da legislação, por si só, não garante nada. É necessário uma mudança das práticas sociais brasileiras, já que o espaço local tem sido, desde o tempo do Império, o lugar do predomínio do poder dos coronéis e, portanto, de exclusão de qualquer igualdade de participação popular. Essa observação entendemos também poder ser aplicada a Portugal, país do qual, de certa forma, herdamos essa concentração de poder local. [18]

"A autonomia do poder local continua a motivar julgamentos contraditórios.

Por um lado, ela representa um dos fatores participativos mais originais e integradores da democracia em Portugal desde 1976.

Por outro, persistem reticências à implementação da regionalização (dificilmente aceite por um sistema político todo ele centralizado), bem como à eficiência do sistema de governo das autarquias municipais e a certa evolução da gestão local em circuito fechado com déficit de controlo democrático." (SOUSA, 1992:61)

Com relação à Espanha, há sempre a indagação de se o poder local é efetivamente desenvolvido em tal país, se há ou não uma real participação democrática, em todos os níveis, atingindo até mesmo aquelas menores dimensões de representação da sociedade ou se o que ocorre é a privatização do público através do emprego sofisticado da mera retórica descentralizadora. Podemos afirmar, assim, a partir de uma sucinta análise do texto Constitucional de 1978, que tal como no Brasil, o Estado ainda concentra um leque considerável de competências, o que nos leva a questionar a amplitude e extensão de alguns dos poderes conferidos, como instrumentos de um gerenciamento próprio, às comunidades autônomas. Tendo em vista o princípio da subsidiariedade, tal como trabalhado acima, entendemos que a autonomia conferida a tais regiões é de certa forma limitada [19], até mesmo pelo receio de desvinculação dessas regiões do território espanhol, receio este decorrente da existência de várias facções terroristas, como o ETA, que postulam a independência plena de determinadas comunidades autônomas, como o país basco.

Vários autores, como Giddens, ressaltam a possibilidade do processo de democratização de cima para baixo gerar o surgimento de fortes sentimentos nacionalistas, gerando conflitos direcionados a um objetivo separatista. Ocorre que tal fenômeno não é um aspecto inerente a tal processo de globalização e mudança do posicionamento do Estado-Nação, sendo perfeitamente possível a convivência de culturas diferentes e de uma identidade nacional, a questão passa pelo respeito ao diferente como condição de possibilidade da existência de uma sociedade democrática, seja global ou local. [20]

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Sobre a autora
Ana Paula Repolês Torres

Bacharel e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, Doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e bolsista da FAPEMIG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Ana Paula Repolês. Por uma reconfiguração do espaço geográfico:: uma análise dos impactos da globalização nos territórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 260, 24 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4923. Acesso em: 7 mai. 2024.

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