A discriminação e a dignidade do trabalhador

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O ato laboral, infelizmente, é conceituado, socialmente, como positivo ou negativo, de forma que a discriminação gere perturbações nos relacionamentos interpessoais.

A dignidade humana do trabalhador compreende meios legislativos que o protejam de qualquer situação que o deixe exposto ao perigo, seja por agentes químicos, como a falta de equipamento de proteção individual, o trabalho análogo ao escravo, salário mínimo que não atenda às necessidades do trabalhador e de sua família, a ausência ou precariedade na proteção contra rescisões trabalhistas arbitrárias, força o trabalhador liberal constituir firma própria [pejotização], jornada de trabalho extenuante — mesmo em convenções coletivas de trabalho. A Lei [CLT] deve sempre proteger o trabalhador contra imposições arbitrárias que o coloquem em perigo, que o discrimine [sexual, étnico, religioso, morfológico].

Entende-se por perigo toda situação que possa gerar doença física ou psíquica contra o trabalhador. O desemprego, motivado por políticas públicas, é gravíssimo atentado contra a saúde do trabalhador. Crises econômicas, principalmente desencadeadas por crimes contra a Administração Pública, ferem a dignidade humana dos trabalhadores. Quando os direitos sociais são minimizados pelos entes da Federação, as diferenças sociais tendem a aumentar, gerando crises econômicas e, consequentemente, nas relações interpessoais.

 Todo ser humano tem o direito ao trabalho digno. A Convenção nº 122, da OIT, assegura:

“ARTIGO 1º
1 - Com vista a estimular o crescimento e desenvolvimento econômico, elevar os níveis de vida, corresponder às necessidades de mão de obra e resolver o problema do desemprego e do subemprego, cada Membro deverá declarar e aplicar, como objetivo essencial, uma política ativa com vista a promover o pleno emprego, produtivo e livremente escolhido.
2 - Esta política deverá procurar garantir:
a) Que haverá trabalho para todas as pessoas disponíveis e que procuram trabalho;
b) Que esse trabalho será tão produtivo quanto possível;
c) Que haverá livre escolha de emprego e que cada trabalhador terá todas as possibilidades de adquirir as qualificações necessárias para ocupar um emprego que lhe convenha e de utilizar, neste emprego, as suas qualificações e os seus dons, independentemente da sua raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social”.

O Brasil

Pelas desigualdades sociais, da máquina antropofágica, milhões de brasileiros laboram de forma diferente. Os que atingiram algum patamar educacional, como técnicos, tecnólogos ou graduação tradicional, geralmente ganhavam mais do que os trabalhadores com menos escolaridade. Com a globalização, novos tipos de empreendimentos surgiram, demandando apenas olhar apurado, coragem e determinação. Planetariamente, a graduação tradicional não é mais associada como único trampolim à ascensão socioeconômica. Exige-se um mínimo de alfabetização para compreender a dinâmica econômica, as burocracias legislativas.

Pela ideologia do narcisismo, este surgido pelas desigualdades sociais, da máquina antropofágica, a figura do brasileiro que trabalha em subemprego é de “preguiçoso”, “incapacitado intelectualmente”, entre outras nomenclaturas que ferem a dignidade humana destes trabalhadores. Por quê? Até a década de 1970, o grau universitário representava possibilidade de ascensão socioeconômica, o concurso público, a partir da década de 1990, também representava possibilidade de ascensão socioeconômica ou, pelo menos, fuga aos subempregos — interessante observar que copeira concursada possuía algum status positivo em relação à copeira em empresa particular, ou mesmo em lares abastados. É necessário retroceder na história laboral brasileira. Os negros escravos trabalhavam em setores considerados para “não humanos” — política do sangue azul —, como cozinheiros, copeiros, amas de leite, carregadores d´água, mucamas etc. Mesmo “libertos” pela Lei Áurea, os negros assumiam trabalhos não associados aos homens educados e intelectualizados. Formou-se, ao longo do desenvolvimento psicossocial brasileiro, a ideia de que empregos como caixa de supermercado, padaria, lavador de prato, gari, ajudante de caminhoneiro, cabeleireiro, entregador, camareira etc. São trabalhos de pessoas “desqualificadas”. O problema da “desqualificação” não está no grau escolar, mas direcionado ao ser humano. Ou seja, formaram-se ilhas sociais nos relacionamentos interpessoais. Essas ilhas sociais criaram abissais de apatia. Na antiga rede social Orkut, por exemplo, não era difícil encontrar comunidades supervalorizando o intelecto, o tipo de Universidade que estudava, se Federal ou particular — quem estudava em Federal era considerado "superior" intelectualmente. Nessas comunidades, não era incomum a depreciação de pessoas que trabalhavam nos chamados subempregos, como sendo estes “preguiçosos”.

Num país como o Brasil, em que a educação era inacessível antes das ações afirmativas [cotas, PROUNI, FIESP etc.], o complexo de inferioridade dos “superiores” era justificável para eles mesmos. Há ainda a frase “Consegui tudo com meu esforço e sozinho!” para justificar o ego supervalorizado e para desvalorizar pessoas que se encontram em nível escolar e empregatício considerados de “inaptos”. Uma projeção do ego conflitante consigo mesmo cuja posição socioeconômica permite compensar complexos. O subemprego fora criminalizado; não um crime que levaria o cidadão ao cárcere, mas criminalização à discriminação social.

Por que os subempregos são discriminados?

Porque passam a ideia de que são menos produtivos, isto é, não colaboram com o crescimento econômico do país. O que desenvolve o país são as profissões de status positivo, como doutorados, mestrados etc. Contudo, o que movimenta, realmente, a economia são os considerados subempregos, por sua quantidade e necessidade existencial, ou seja, a natureza do subemprego gera mais dividendo do que os profissionais universitários. Os microempreendedores individuais foram agraciados pelo Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. [1] Os microempreendedores [2], sejam eles copeiros, massoterapeutas, cuidadores de cães e artesãos, ganharam status político positivo, já que o Estado garante proteção e incentivos. Esses microempreendedores, infelizmente, ainda são discriminados socialmente. Ou seja, um subtipo de trabalhadores que ganharam “privilégios” do Estado social, mas que continuam sendo inferiores na percepção dos adeptos da máquina antropofágica.

Por contingentes internos ou externos no campo econômico, o que força migrações profissionais — como acontece no desemprego, ou até mesmo uma perspectiva de melhorias na qualidade de vida, como menos dinheiro e mais horas com a família —, a mentalidade de discriminação aos tipos laborais [empregos e subempregos] tem mudado um pouco no cenário brasileiro. Mesmo assim, ainda há o complexo de inferioridade nas relações interpessoais. Por exemplo, dizer que é empresário em vez de dizer que é distribuidor de produtos alimentícios, chocolateiro, relojoeiro. Porém, isso não se limita tão somente a esses profissionais. Geralmente, em conversas em locais públicos, como hospitais, clínicas etc., a identificação profissional para atestar a sapiência é a primeira palavra para se iniciar conversações. Em alguns momentos, a ajuda de um profissional de hierarquia inferior — técnico para graduado universitário — soa como uma “afronta” aos mais escolarizados.

Nas relações interpessoais laborais, as discriminações são comuns, sejam elas nos setores privados ou públicos, o que demonstra que o complexo de inferioridade é muito arraigado culturalmente. “Sabe com quem está falando?!”, no contexto brasileiro, não é frase em desuso, pode ser menos usual, contudo ainda invocada. Não é usada tão somente entre cidadão e autoridade pública, mas até nos setores privados. Desdobra-se, na autoridade do ser “superior” e em assédio sexual ou moral.

O Pacto Global — United Nations Global Compact — elenca vários princípios das Nações Unidas [3]. Para o contexto deste artigo, destacarei o princípio 6, trabalho. A não discriminação no ambiente de trabalho é um direito humano dos trabalhadores. As empresas podem considerar outros motivos para impedir outras formas de discriminação no ambiente laboral. No Brasil, a LEI Nº 9.029, DE 13 DE ABRIL DE 1995 “Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho”.

Leciona Amauri Mascaro Nascimento: [4]

“Direitos de personalidade são aqueles de natureza extrapatrimonial que se referem aos atributos essenciais definidores da pessoa. Entre todos os direitos, são aqueles que mais de perto procuram valorizar a dignidade do ser humano.
Os direitos de personalidade nas relações de trabalho destacam-se pelo seu significado, tendo em vista a defesa da dignidade do trabalhador. Há valores protegidos pela lei, como a personalidade e a atividade criativa, tão importantes como outros direitos trabalhistas, sem os quais ao trabalhador, como pessoa, não estariam sendo prestadas garantias respeitadas quanto a todo ser humano, muitas se confundindo com os direitos humanos fundamentais, outras com os direitos de personalidade, todas tendo características peculiares em função do pressuposto que as justifica: a relação de emprego”.
Todavia, e fora do ambiente laboral tradicional da CTPS assinada e com status positivo [graduação universitária]? Mesmo assim, os empregadores devem agir de tal forma que não haja discriminações entre os funcionários e daqueles a estes. A competividade é normal entre os funcionários, mas a ética profissional e a dignidade humana nas relações interpessoais devem ser mantidas.

E em relação aos trabalhadores de subempregos? A LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010 [Estatuto da Igualdade Racial] garante dignidade aos afrodescendentes. Infelizmente, por questões seculares de antropofagia, os afrodescendentes sempre foram delegados às políticas — Estado e sociedade — de discriminação. E quanto aos trabalhadores que não possuem CTPS [informalidade]? Citarei o exemplo do catador de materiais recicláveis. Tais trabalhadores desempenham função social primordial para a reciclagem e, por sua vez, desenvolvimento sustentável e diminuição da poluição ambiental. Infelizmente, são considerados “inferiores” socialmente, isto é, sem qualidades capazes de estreitamento nas relações interpessoais aos acadêmicos.


Conclusão

Se existe preconceito linguístico — é vergonhoso falar “botar”, sendo mais adequado [superioridade] falar “colocar” —, o preconceito laboral também. Qualquer forma de discriminação ou preconceito não condiz com sociedades cujas Constituições normatizam a dignidade humana em todos os segmentos sociais e políticos. Infelizmente, desde o Império, a discriminação e o preconceito perpetuam por motivos puramente ideológicos cujas entranhas estão no complexo de inferioridade. Personalidades complexadas, pela máquina antropofágica, defendem-se para não sucumbir em seu próprio medo de exclusão do grupo humano. Assumem personalidades que mais lhes deem condições de se autopromover e, assim, dispor de convívio social “salutar” e “digno”. A dignidade humana, infelizmente, é percebida como posicionamento de patamar social positivo. Ou seja, ter algum bem ou patrimônio de valor, ter boa dicção, emprego intelectual. Aliás, o trabalho braçal é considerado, ainda, como atributo de seres humanos destituídos de qualidades morais e intelectuais. Assim é considerado, por exemplo, o catador de objetos recicláveis, os garis etc.

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Não há visão global de utilidade social, isto é, de contribuição ao desenvolvimento socioeconômico. Qualquer trabalho, quando honesto e de acordo com a legislação, merece respeito. Mesmo que o Brasil alcance diminuição nas desigualdades sociais, ainda assim existirão empregos considerados subempregos [garis, copeiros etc.]. Infelizmente, pelo complexo de inferioridade tupiniquim, o subemprego é algo deplorável à imagem do ser humano. O que surpreende é que muitos brasileiros, mesmo com graduações universitárias, não se sentem inferiorizados ao laborar em subempregos fora do Brasil. Claro que tudo depende sempre da concepção psicológica de cada país sobre tipos de empregos e seus status na sociedade. Por exemplo, na Suécia ninguém menosprezará empregado doméstico ou gari, porque, antes de tudo, são seres humanos e, em segundo lugar, geram dividendo ao país.

Necessária ampla campanha por parte do Estado para retirar a mentalidade de reis, vassalos e servos no Brasil. Essa educação, claro, começa dentro dos lares, indiferentemente da classe social, mas, principalmente, da elite. Os professores, com ajuda dos genitores, podem desenvolver brincadeiras lúdicas para dignificar qualquer trabalho, principalmente, quem labora. Os objetivos da República serão inalcançáveis enquanto existir a máquina antropofágica da Arquitetura da Discriminação.


Referências:

FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade 1915-1930. Apresentação de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke Biobibliografia de Edson Nery da Fonseca. 1ª edição digital. São Paulo. 2012

FREYRE, Gilberto. Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil – Sobrados e mucambos. Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Apresentação de Roberto DaMatta. Biobibliografia de Edson Nery da Fonseca. Notas bibliográficas revistas e índices atualizados por Gustavo Henrique Tuna. 1ª edição digital. São Paulo –2013.

IPEA. Texto discussão. O Estado e os diferentes enfoques sobre o informal. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_0919.pdf

Ipea. Situação Social das Catadoras e dos Catadores de Material Reciclável e Reutilizável. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/situacao_social/131219_relatorio_situacaosocial_mat_reciclavel_brasil.pdf

Nascimento, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho: história e teoria geral do direito do trabalho: relações individuais e coletivas do trabalho / Amauri Mascaro Nascimento. – 26. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2011.

TRT-SP. Convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Convenção nº 122. Disponível em: http://www.trtsp.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/OIT/OIT_122.html

WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate. O Espírito da Igualdade – Por que razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor. Coleção: Sociedade Global. Nº na Coleção: 40. Data 1ª Edição: 20/04/2010. Nº de Edição: 1ª. Editora Presença.


Notas

[1] — Planalto. LEI COMPLEMENTAR Nº 123, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp123.htm

[2] — Portal Microempreendedor Individual. Anexo XIII da Resolução CGSN nº 94, de 29 de novembro de 2011 (documento em Pdf). Disponível em: http://www.portaldoempreendedor.gov.br/legislacao/resolucoes/arquivos/ANEXO_XIII.pdf

[3] — Os Dez Princípios do Pacto Global das Nações Unidas. Disponível em: https://www.unglobalcompact.org/what-is-gc/mission/principles

[4] — Amauri Mascaro Nascimento. P.727

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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