1. INTRODUÇÃO
A possibilidade de se aplicar os direitos fundamentais aos litígios entre particulares vem ganhando espaço cada vez mais no mundo jurídico. Apesar de não haver uma previsão legal expressa nesse sentido, há que se pontuar que a Constituição da República de 1988 prevê um título específico para tal proteção: Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Não há uma determinação do destinatário da imposição constitucional, mas tão somente a previsão de quais são os direitos e garantias fundamentais são protegidos e tutelados pela carta magna.
A partir de uma análise histórica, desde o período iluminista à atualidade, percebe-se a construção de várias dimensões do direito (ou como preferem alguns doutrinadores, gerações)[1]. Com isto, fica notório que todos os estopins históricos ou revoluções estão ligados à conquista de direitos para a sociedade e para o individuo contra o Estado.
Todavia, os conflitos entre particulares cada vez mais trazem à tona o choque entre direitos individuais e, inclusive, direitos fundamentais, por exemplo: o choque entre o direito de ir e vir e o de livre manifestação.
O judiciário não pode se eximir de solucionar tais conflitos de interesse, o que leva ao tema deste artigo: a horizontalização dos direitos fundamentais como uma forma de aplicação da justiça a litígios particulares.
2. DAS DIMENSÕES DO DIREITO
A Revolução Francesa (1789-1799), permeada pelos ideais iluministas (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), consolidou o Estado de Direito, criando mecanismos jurídicos para o controle e a limitação do poder estatal.
Início do século XVIII as Constituições modernas passaram a resguardar direitos vinculados à dignidade humana, quais sejam: os direitos do homem, os quais, pós-positivados, ganharam status de direitos fundamentais e á época de valores eternos.
Todavia, esta concepção é equivocada, pois os direitos fundamentais são dinâmicos e volúveis aos momentos históricos, sendo passíveis de mutações.
Tendo em vista esse posicionamento evolutivo e ligado umbilicalmente à história, Marmelstein[2] cita: “Karel Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão ‘gerações de direitos do homem’, buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa”.
Esta teoria consiste na divisão da evolução do direito em três gerações. A primeira, que teve origem com as revoluções burguesas, seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade[3].
Já a segunda - impulsionada pela Revolução Industrial e pelos problemas sociais por ela causados - por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade[4]. A última geração - que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos - seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade[5].
Apesar de ter sido muito aceita e debatida, esta teoria apresenta alguns equívocos no tocante à denominação escolhida pelo ilustre jurista tcheco: “gerações”. Essa classificação dá a falsa percepção de que entre as gerações haveria uma substituição progressiva de uma por outra e de que em dado momento esta evolução estagnaria, passando a ideia de que não seria possível maiores ganhos doutrinários e filosóficos.
Doutrinadores como Ingo Wolfgang Sarlet[6], Paulo Bonavides[7] e Canotilho[8] defendem a ideia de que o termo adequado para esta classificação seria “dimensões”, haja vista estas não se sobreporem, mas se coadunarem. Dessa forma estariam guardadas as adaptações e evoluções da dimensão antecedente, propiciando o surgimento da próxima.
Data vênia tratar-se do século XXI em que há forte influencia da globalização e dos recursos da internet, a teoria das dimensões dos direitos fundamentais há que continuar se adequando à metodologia explicativa. Portanto, cabe a projeção de uma nova roupagem para esta teoria, qual seja: a de que os direitos fundamentais devem ser tratados como valores indivisíveis e interdependentes, possibilitando a compreensão de todos de forma progressiva e gradativa, sem privilégio de um direito a uma dimensão, mas como um todo que se desenvolveu com a história e com as sociedades[9].
Nesse sentido, anota Marmelstein[10] que “o ideal é considerar que todos os direitos fundamentais podem ser analisados e compreendidos em múltiplas dimensões”.
Insta destacar que diversos doutrinadores asseguram serem esses direitos um dever não só oponível ao Estado como também uma obrigação privada. Sendo pertinente a responsabilização do particular que desrespeitar uma garantia fundamental. Afim a essa possibilidade preleciona Paulo Bonavides[11]:
Faz-se mister, em primeiro lugar, perante as reflexões expendidas, rejeitar, por anacrônica, obsoleta, regressiva e incompatível com o espírito da Constituição e a sistemática de sua unidade, arvorada em princípio, toda interpretação pertinente à inalterabilidade, por via de emenda, dos direitos e garantias individuais com base unicamente nos valores e princípios que outrora regiam, legitimavam e norteavam os conceitos da velha corrente liberal. Já não é possível confinar a formulação material e concreta da liberdade ao usufruto das classes privilegiadas e sua ordem egocêntrica de interesses.
No mesmo sentido, George Marmelstein[12]:
[...] há quem pense que os direitos fundamentais representem valores imutáveis e eternos. Trata-se, porém, de uma visão equivocada. Na verdade, esses valores são bastante dinâmicos, sujeitos a saltos evolutivos e a tropeções históricos, já que acompanham a evolução cultural da própria sociedade.
2.1 PRIMEIRA DIMENSÃO
A primeira dimensão – dos direitos de liberdade cívica e política – tem como titular o indivíduo isoladamente. O primeiro avanço foi a elaboração da Magna Carta pelo rei João Sem Terra, em 1215, consagrou vários direitos limitadores ao poder do rei e ampliadores das liberdades individuais[13].
Outro destaque foi a elaboração da Independência e da Constituição dos Estados Unidos da América a qual consagrou e conceituou um dos princípios mais relevantes: a soberania popular, que deixava de ser a vontade do rei, para abranger a vontade de todos os cidadãos, titulares da soberania popular[14].
A declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afetou o conceito de revolução, passando a ser o rompimento de um governo presente para a implantação de um novo. Também abandonou a compreensão de que o rei é um governante constituído, mas sim constituinte, pois emana o seu poder do povo[15].
No campo da economia, destaca-se Adam Smith ao desenvolver a ideia da “mão invisível” do mercado. O laissez-faire, laissez-passer atribuía ao Estado o papel de proteger a propriedade e garantir a segurança dos indivíduos, mantendo distância das relações sociais e econômicas. Era a base para o surgimento do Estado Liberal e abandono do Estado Absoluto[16].
A crise do Estado Liberal eclodiu com a exploração da força trabalhadora – à época, mercadoria – ocasionando o êxodo rural exacerbado e consequente crise social frente à omissão e passividade do Estado liberal. Neste átimo, foi instituído o Estado Social, o qual garantiria as liberdades e obrigaria o Estado a intervir na proteção dos socialmente vulneráveis.
Assim, foram reconhecidos os direitos de liberdade e os direitos políticos, cuja principal finalidade era a regulamentação do exercício democrático do poder, através do voto e outros.
2.2 SEGUNDA DIMENSÃO
O Estado do Bem Estar Social nasce com o propósito de instituir um novo modelo político, baseado no capitalismo, porém comprometido com a promoção da igualdade e com a garantia de condições básicas. Marca, assim, o início da segunda dimensão[17]. O ordenamento jurídico passa a contemplar limites aos empregadores e direitos mínimos a serem observados na relação trabalhista. Também passa a ser compromisso do Estado garantir os direitos econômicos, sociais e culturais, independentemente da qualidade do trabalhador[18].
Os mais relevantes documentos a constar foram a Constituição de Weimar de 1919 e a Constituição Mexicana de 1917, as quais apesar de não terem rompido com o modelo liberal, impulsionaram as principais ideologias sobre esta nova forma de Estado[19].
Os Estados Unidos da América após sofrerem a maior crise do liberalismo econômico em 1929, passaram a adotar o New Deal, que possibilitava a intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais. Contudo, mesmo frente a esta realidade, a Suprema Corte deste país ainda declarava inconstitucionais medidas de caráter social[20].
Essa postura conservadora dos estadunidenses aos poucos foi se modificando, principalmente após a manifestação da Suprema Corte no caso West Coast vs. Parrish. Foi o primeiro passo para reconhecer a constitucionalidade de leis trabalhistas. Entendeu-se que é ilusória a liberdade contratual dos trabalhadores que, em regra, estão em posição mais frágil e, por falta de opção, sempre irão aceitar as imposições dos empregadores[21].
Portanto, com o intuito de possibilitar melhor qualidade de vida e condições básicas para se garantir a dignidade da pessoa humana, o Estado passou a ser obrigado a fornecer condições básicas para que cada cidadão pudesse fruir sua liberdade[22].
2.3 TERCEIRA DIMENSÃO
Intimamente ligada ao marco histórico do pós 2ª Guerra Mundial, a qual teve como notório os abusos nazistas. Esta dimensão surge com um contexto internacional em favor de valores ligados à dignidade humana.
Emerge um escopo jurídico internacional que vem a somar aos direitos do homem junto com os historicamente versados direitos de liberdade e igualdade, de acordo com a classificação de Karel Vasak, em que a 3ª dimensão seria fruto do sentimento de fraternidade ou solidariedade mundial[23].
Também no mesmo sentido, Paulo Bonavides[24] descreve :
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo, ou de um determinado Estado.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, marcou o surgimento desta nova dimensão, incorporando os direitos fundamentais aos tratados internacionais. Vislumbra-se também a criação de Tribunais Internacionais de Direitos Humanos que de acordo com George Marmelstein[25]: “visando garantir a observância dos tratados internacionais, reforçando a ideia de que as violações aos direitos humanos constituem desrespeito à humanidade como um todo”.
Configuram, assim, os direitos fundamentais da terceira geração como direitos de solidariedade ou de fraternidade, conforme ensina a ministra Cármen Lúcia aput Ingo Sarlet[26], que descreve “em face de sua implicação universal ou, no mínimo, transindividual, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivação”.
A Constituição[27] pátria inseriu-se nesse contexto ao prevê um capítulo específico para a proteção do meio ambiente, sendo destacado o artigo 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
2.4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ATUALIDADE
A luta pela dignidade da pessoa humana se faz permanente na história. E conforme preleciona Marmelstein[28]: “É natural, portanto, que outros valores sejam acrescentados às declarações de direitos, bem como que os velhos direitos sejam constantemente atualizados para refletirem a mentalidade e as necessidades do presente”.
Muito se discute hodiernamente acerca de outras dimensões do Direito além das previstas por Karel Vasak[29]. A doutrina está sendo impelida a visualização da quarta dimensão, a qual permeia os avanços tecnológicos, as descobertas da genética e a globalização. In Paulo Bonavides[30]:
São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informatização e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.
Continua[31]:
[...] não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem – sem, todavia, removê-la – a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico.
Os direitos da quarta geração visam adequar as mudanças sociais e culturais - oriundas do desenvolvimento histórico e tecnológico - aos diversos ordenamentos jurídicos. Essas alterações proporcionam o debate sobre o nascedouro de novos direitos, inerentes à condição humana atual, concatenada à soma de todos os pré-direitos das outras dimensões[32].
2.5 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial a dignidade da pessoa humana é um valor que deve legitimar, fundamentar e orientar todo e qualquer exercício de poder. No Brasil, a Constituição de 1988 inovou ao contemplar os direitos fundamentais no ordenamento jurídico pátrio.
Com a finalidade de exorcizar o militarismo – período em que se mutilou a liberdade de expressão e a liberdade política –, a Carta Suprema de 1988 surgiu do clamor popular descontente com a institucionalização da tortura, das perseguições ideológicas e da repressão. Conhecida também como a Constituição “Cidadã”, vislumbrou mudanças radicais nos parâmetros sociais[33].
Em toda a redação constitucional é visível o objetivo do constituinte: conferir aos direitos fundamentais a condição de cláusula pétrea. Depreende-se daí a tentativa de consagrá-los como essenciais à manutenção do Estado Democrático de Direito, impedindo qualquer tipo de abuso no sentido de modificá-los ou suprimi-los[34].
Inúmeros foram os instrumentos jurídico-processuais no sentido de proteger esses direitos. Vale exemplificar: o habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, ações diretas de (in)constitucionalidade, arguição de descumprimento a preceito fundamental entre outras[35].
Outra consagração de suma importância definida pelo constituinte é a forma de se concretizar e proteger os direitos fundamentais. Sendo pertinente a definição apresentada por Marmelstein[36]:
Concretizar a norma constitucional nada mais é do que retirá-la do papel e trazê-la para o mundo real. É dar-lhe vida. Fazê-la gerar os efeitos nela previstos. Efetivá-la. Enfim, é conseguir que ela deixe de ser mero blá-blá-blá constitucional para se transformar em um elemento concreto na sociedade.
Pode-se concluir do acima exposto, que a Constituição de 1988 tem claramente o caráter dirigente, obrigando o Estado a seguir diretrizes socioeconômicas, sobressaindo os direitos fundamentais. A partir dessa premissa é possível a compreensão de que o modelo político-econômico adotado, de forma parcialmente omissa, pela Carta Magna aproxima-se da ideia do Bem-estar Social[37].
Primordial se faz a análise da clássica formulação de Kelsen[38] (1995, p. 248):
[...] uma norma para ser válida é preciso que busque seu fundamento de validade em uma norma superior, e assim por diante, de tal forma que todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa.
É possível compreender, então, que o ordenamento jurídico é um sistema hierárquico e concatenado de normas[39]. A sistemática em que a legislação pátria está inclusa tem como fundamento maior a Constituição da República de 1988, de forma a tornar condição obrigatória a compatibilidade das demais normas com o texto constitucional[40].
Dignos de proteção especial – por terem sido elegidos pelo poder constituinte como valores básicos para a condição humana – os direitos fundamentais foram inclusos entre os primeiros artigos da Constituição (art.5º ao 17º) como forma de privilegiá-los e destacá-los. Diferentemente das Constituições antecedentes, a atual conferiu aos direitos fundamentais status de norma constitucional com gozo de supremacia formal e material.
Daí alude-se três importantes consequências, muito bem ilustradas pelo doutrinador Marmelstein[41]:
a) em primeiro lugar, gera a inconstitucionalidade das normas infraconstitucionais incompatíveis com os direitos fundamentais;
b) do mesmo modo, provoca a não-recepção das normas infraconstitucionais anteriores à promulgação da Constituição que não sejam compatíveis com o espírito dos direitos fundamentais;
c) por fim, impõe a necessidade de reinterpretar as leis anteriores à Constituição, de modo a adequá-las aos novos parâmetros axiológicos estabelecidos pelo constituinte.
Norteadores de todo o ordenamento jurídico, haja vista a sua supremacia, há a necessidade de estabelecer meios de protegê-los e garanti-los. Historicamente, o controle constitucional surgiu conjuntamente à Justiça Federal, idealizada e concretizada por Rui Barbosa. Hodiernamente, o controle constitucional é ato obrigatório a todas as instâncias do Poder Judiciário, tendo como órgão supremo o Superior Tribunal Federal.
Resta a compreensão de que a intenção do legislador constituinte, nos casos de violação dos direitos fundamentais, não foi o de especificar o sujeito ativo da conduta, mas o de abranger, tendo em vista a não especificação.
3. CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Pedro Lenza afirma que a doutrina majoritária[42] vincula características inúmeras a esses direitos, observando-se o fenômeno da subsunção. As teorias visam buscar uma explicação para a eficácia destes no ordenamento jurídico, atrelando-os aos princípios norteadores do direito.
Muitas são as características que permeiam os direitos fundamentais. Entretanto, os princípios basilares e orientadores são dois: o princípio da universalidade e da proporcionalidade[43]. A partir da compreensão destes torna-se visível as demais características dos direitos fundamentais.
3.1 PRINCÍPIO DA UNIVERSALIDADE
A universalidade atribui aos direitos fundamentais uma eficácia específica, pois visa à obediência de todos, independentemente de classe social ou de poder que represente. Atinge inclusive pessoas jurídicas, titulares de certos direitos, e que por isso estão também vinculados a eles.
Canotilho[44] ao debruçar-se sobre o tema afirma:
A nova universalidade dos direitos fundamentais os coloca assim, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e fraternidade.
Assim, os direitos fundamentais irradiam todo o ordenamento jurídico; acrescido à obrigação erga omnes, potencializam-nos como preceito obrigatório não só para o Estado, mas para todos que estão inseridos no contexto nacional e por isso estão sujeitos à legislação pátria sem distinção[45].
Desta forma, percebe-se que o princípio da universalidade permeia todos os direitos fundamentais, de modo a conferir potencialização a todos. Contudo, por vezes em algumas lides há um choque entre direitos fundamentais das partes, sendo que ambos direitos gozam da universalidade.
Ao tratar da questão em tela, Canotilho[46] assegura que: “esses problemas obrigam, como se deduz da anterior argumentação, a cuidadosa articulação dos princípios da universalidade e da igualdade”.
Depreende-se, portanto, a necessidade de tecer considerações a respeito do princípio da proporcionalidade.
3.2 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
A lei constitucional embora ocupe um lugar de destaque na hierarquia normativa também enfrenta problemas em torno de conflitos entre os direitos fundamentais e seus demais dispositivos, gerando conflitos na ordem constitucional que necessitam de soluções.
Tais conflitos entre normas constitucionais são muito comuns, principalmente quando se trata do direito à privacidade e do direito à liberdade de expressão. A solução para esta problemática irá abraçar apenas um desses princípios e consequentemente irá mitigar o outro. Para tal posicionamento o Judiciário deverá valer-se da proporcionalidade[47].
Conforme Marmelstein[48] em alusão ao jurista alemão Robert Alexy:
Esse fenômeno – a colisão de direitos fundamentais – decorre da natureza principiológica dos direitos fundamentais, que são enunciados quase sempre através de princípios. Como se sabe, os princípios, ao contrário das regras, em vez de emitirem comandos definitivos, na base do ‘tudo ou nada’, estabelecem diversas obrigações (dever de respeito, proteção e promoção) que são cumpridas em diferentes graus. Logo, não são absolutos, pois o seu grau de aplicabilidade dependerá das possibilidades fáticas e jurídicas que se oferecem concretamente [...]
Ao verificarem-se os direitos fundamentais como princípios, conclui-se pela sua relatividade e, consequentemente, passividade de restrições. Imprescindível pontuar que a relatividade que permeia os direitos fundamentais não os minimiza a ponto de serem alterados aleatoriamente. Pelo contrário, não se trata aqui de alteração ou de aniquilação desses direitos, mas sim de ponderação nos casos em que houver choque entre eles.
O princípio da proporcionalidade, portanto, é o instrumento competente para determinar e especificar quais leis e atos administrativos será capaz de restringir os direitos fundamentais. A aplicação desse princípio visa a proporção no respeito e na restrição aos direitos fundamentais.
4. CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O conflito de direitos fundamentais ocorre quando um bem jurídico pode ser subsumido ao âmbito de proteção de mais de um direito fundamental, gerando uma colisão de interesses entre os titulares desses direitos. Caberá, então, ao intérprete da norma saber qual desses princípios deverá sobressair em detrimento do outro. Define Marmelstein[49]:
As normas constitucionais são potencialmente contraditórias, já que refletem uma diversidade ideológica típica de qualquer Estado Democrático de Direito. Não é de se estranhar, dessa forma, que elas frequentemente, no momento aplicativo, entrem em “rota de colisão”.
Frente a este panorama, é necessária a análise sobre os meios que viabilizam a sua solução: a ponderação e/ou proporcionalidade desses direitos. Em uma acepção mais corrente, a proporcionalidade significa a operação hermenêutica pela qual são contrabalançados bens ou interesses constitucionalmente protegidos que se apresentam em conflitos a fim de determinar, à luz das circunstâncias do caso, em que medida cada um deles deverá ceder ou, quando seja o caso, qual deverá sobressair.
Essa ponderação é de suma complexidade quando observado os princípios processuais que devem nortear o posicionamento do magistrado frente aos autos, qual seja: o de que só existe para o mundo jurídico o que está ali entranhado. Dessa forma, o juiz estará vinculado ao que as partes conseguiram fazer prova e apresentar. Daí partir para a ponderação e solucionar o conflito entre princípios.
O STJ no julgamento do recurso especial 818.764/ES, com relator o Ministro Jorge Scartezzini[50], se posicionou nesse sentido:
A responsabilidade civil decorrente de abusos perpetrados por meio da imprensa abrange a colisão de dois direitos fundamentais: a liberdade de informação e a tutela dos direitos da personalidade (honra, imagem e vida privada). A atividade jornalística deve ser livre para informar a sociedade acerca de fatos ocorridos cotidianos de interesse público, em observância ao princípio constitucional do Estado Democrático de Direito; contudo, o direito de informação não é absoluto, vedando-se a divulgação de notícias falaciosas, que exponham indevidamente a intimidade ou acarretem danos à honra e à imagem dos indivíduos, em ofensa ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana.
Do ponto de vista formal, as restrições só poderão ser estabelecidas em lei, de competência do Poder Legislativo; e, no caso da aplicação in concreto, o órgão judiciário há de ser competente. No que se refere aos limites materiais, tanto os órgãos legislativos como os judiciários deverão observar o imperativo de proporcionalidade, engendrando uma interpretação coerente como o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, o Ministro Gilmar Mendes[51]:
O juízo de ponderação a ser exercido assenta-se no princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja necessário para a solução do problema e que seja proporcional em sentido estrito, i. é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende obter com a solução.
Marmelstein[52] apud Vírgilo Afonso da Silva, também no mesmo sentido: “O objetivo da aplicação da regra da proporcionalidade, como o próprio nome indica, é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais”.
4.1 INTERPRETAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Na acepção de Häberle citado por Bonavides[53] a interpretação dos direitos fundamentais:
[...] é um processo ordinário no Estado constitucional o nascimento e a morte de teorias dos direitos fundamentais. O que deve permanecer é a ideia da proteção pessoal. E todas as teorias dos direitos fundamentais devem colocar-se a serviço da mesma.
Também reportado pelo mesmo autor, o espanhol Javier Perez Royo[54]: “A interpretação é a sombra que segue o corpo. Da mesma maneira que nenhum corpo pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode livrar-se da interpretação”.
A interpretação dos princípios fundamentais permeia a subjetividade de cada indivíduo operador do direito, o seu caráter fundamental não furta a complexidade de se atribuir valores preponderantes, pois partirá do problema e não do texto de lei[55].
Continuando o raciocínio Bonavides[56] afirma “não há constitucionalismo sem direitos fundamentais. Tampouco há direitos fundamentais sem a constitucionalidade da ordem material cujo norte leva ao princípio da igualdade, pedestal de todos os valores sociais de justiça”.
No sentido de convergir tais definições, vislumbra-se que não basta conhecer e encontrar a solução juridicamente correta e tecnicamente perfeita. Portanto, a interpretação da norma, além da fidelidade ao estritamente jurídico e ao texto interpretado, guarda um compromisso de cunho social e de ordem moral[57].
Em vez de mero ato de conhecimento, é também ato de vontade, de criação e de declaração. Sob esse enfoque, interpretar o direito é solucionar o caso concreto com a ajuda do texto legal, de modo a obter uma decisão, juridicamente segura, socialmente aceitável e moralmente justa.
Tendo em vista a linha evolutiva dos direitos fundamentais, é suma importância conceituá-los abstraindo-se a gradação de suas dimensões, pois tais direitos incorporam as prestações do Estado, as garantias institucionais, o sentido objetivo da norma e a qualificação valorativa[58]. Ou seja, seriam normas que visam regulamentar a relação de toda a sociedade, entre os próprios indivíduos, e entre estes e o Estado.
Vislumbra-se, daí, o abandono do conceito clássico enrijecido pelo positivismo e pelo jusnaturalismo, de que os direitos fundamentais seriam apenas meros deveres estatais, para abranger a interpretação hermenêutica e axiológica da lei maior do Estado tendente a expandir a responsabilidade por esses direitos também aos particulares[59].
Na dimensão axiológica, segundo Alexandre de Moraes[60], a interpretação valorativa consubstancia a atuação democrática do Direito, através da qual o intérprete opera o sistema positivo vigente em cada tempo e lugar, segundo o compromisso com o melhor direito, individual e socialmente considerado e ancorado, porém, numa ordem de valores consistentes.
Tendo como base o princípio democrático da separação de poderes, perceptível se faz a possibilidade de o Poder Judiciário, frente a uma colisão de princípios, apreciar e atribuir valores axiológicos, prevalecendo um em mitigação do outro[61].
Visando a quebra de hierarquias absolutas no direito, essa apreciação mais profunda permite que se crie um histórico de jurisprudências não vinculantes, mas que conduzam o entendimento do magistrado ao debruçar-se ao caso concreto. Jorge Miranda apud Jorge Reis Novais[62] coaduna da mesma ideia:
As hierarquias valorativas, portanto, devem operar exclusivamente como critério de determinação do peso abstrato do direito a ser ponderado, de modo que corresponde apenas à exigência de cargas de argumentação e justificação mais intensas quando se trata de fundamentar restrições a direitos preferidos, que são aqueles que ostentam maior relevância na axiologia constitucional.
Eros Grau[63] assinala que:
[...] A interpretação é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser, a interpretação, uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas. As normas, portanto, resultam da interpretação; e o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das disposições (texto e enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. Diz Canotilho que toda norma é significativa, mas o significado não constitui um dado prévio – é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete.
4.2 EFICÁCIA DAS NORMAS DE DIREITO FUNDAMENTAL
Mister se faz a colação do art.5º, §1º da Constituição da República: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
É de inarrável importância debruçar sobre a classificação adotada por José Afonso da Silva[64] que é de amplo domínio nas doutrinas constitucionais; qual seja: normas de eficácia plena, de eficácia contida e de eficácia limitada. É primordial analisar também a correlação entre estas e o conceito e estrutura dos direitos fundamentais como restringíveis e como regulamentáveis.
Restringível, no sentido de que limita os demais direitos, perdendo o sentido qualquer distinção que dependa da aceitação ou rejeição de restrições a direitos - logo, não se pode distinguir entre normas de eficácia plena e normas de eficácia contida ou restringível; regulamentável, pois depende de regulamentação para produzir todos os seus efeitos, perdendo o sentido qualquer distinção que dependa da aceitação ou rejeição de regulamentações a direitos - logo, não se pode distinguir entre normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada[65].
Depreende-se, então, que se todos os direitos fundamentais são restringíveis, a distinção perde a sua razão de ser. Seria possível imaginar, contudo, que permaneceria a distinção entre as normas de eficácia plena e as normas de eficácia limitada.
As de eficácia plena seriam aquelas que, desde a promulgação da constituição, já reúnem todos os elementos necessários para a produção de todos os efeitos desejados. As de eficácia limitada, ao contrário, seriam aquelas normas que dependem de alguma regulamentação posterior que lhes complemente a eficácia[66].
Contudo, essa é uma distinção que se baseia em dois pontos de vista no mínimo questionáveis: (1) a crença de que alguma norma pode produzir todos os seus efeitos sem as necessárias condições fáticas, jurídicas e institucionais para tanto; e (2) a crença na possibilidade de distinção estrita entre eficácia e efetividade[67].
A partir da análise supra, tentou-se demonstrar que toda norma que garante um direito fundamental tem alguma limitação na sua eficácia. Ou seja: todas as normas são de eficácia limitada. A classificação de José Afonso da Silva[68] teve o inegável mérito de romper com a concepção de norma constitucional despida de qualquer eficácia. Essa é uma ideia consolidada.
Todavia, a consolidação da classificação tríplice gerou uma situação peculiar ao ponto de impedir um maior desenvolvimento da eficácia dos direitos fundamentais. A crença na eficácia plena de algumas normas - sobretudo no âmbito dos direitos fundamentais - solidificou a ideia de que, possivelmente, não seriam necessárias atitudes para desenvolver essa eficácia. De modo que: se ela é plena, nada mais precisa ser feito[69].
Quanto mais essa crença for mitigada, tanto maior será o ganho em eficácia e efetividade. Exemplificando: a liberdade de imprensa é garantida por uma norma de eficácia plena, pode ser que a consequência dessa premissa seja a sensação de que já se atingiu o ápice da normatividade constitucional. Ao se mitigar essa ideia, torna-se possível exigir, por exemplo, ações que criem as condições não apenas de uma imprensa livre, mas de uma imprensa livre, plural e democrática[70].
De outro lado, a constatação de que algumas normas têm eficácia meramente limitada pode levar a duas posturas diversas: com base em uma determinada concepção de separação de poderes, pode-se imaginar que não resta nada aos operadores do direito - sobretudo aos juízes - senão esperar por uma ação dos poderes políticos. Com base em concepção diversa, pode-se imaginar que a tarefa do operador do direito é substituir os juízos de conveniência e oportunidade dos poderes políticos pelos seus próprios, não sendo adequada nenhuma outra conduta.
Com a ênfase nas exigências argumentativas que as restrições e a proteção aos direitos fundamentais impõem, a postura mais adequada é aquela que se disponha a um desenvolvimento e proteção dos direitos fundamentais. Tal atitude deve basear-se nem na omissão nem na ação isolada e irracional, mas a partir de um diálogo constitucional fundado em premissas de comunicação intersubjetiva entre os poderes estatais e a comunidade.
4.3 VINCULAÇÃO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Uma das características do Direito Constitucional contemporâneo é o reconhecimento da força normativa atribuída aos princípios. É a chamada terceira fase, pós-positivismo, segundo Paulo Bonavides[71], em que as Constituições promulgadas denotam a hegemonia axiológica dos princípios, que são “convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais.” [72]
Os princípios encarnam os valores morais e os ideais de justiça de uma sociedade colocados dentro de uma Constituição. Eles se diferenciam das regras, em síntese, pelo fato destas serem normas do que pode ou não ser aplicado ao caso concreto. Já os princípios são mandados de otimização, que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, caracterizando-os em diferentes graus de cumprimento.
Frente a essa diferenciação, observa-se a possibilidade cotidiana de choque (ou colisões) entre as regras expressamente elaboradas e os princípios como abstrações normativas. Nos casos de conflitos entre regras, a solução perpassa ou pela introdução de uma cláusula de exceção ou declarando-se inválida uma das regras. A decisão passa a ser sobre a validade da norma jurídica.
Já a colisão de princípios, segundo Robert Alexy[73], resolve-se através da ponderação, da atribuição de peso aos diferentes princípios, fazendo com que um prepondere sobre o outro, de acordo com o caso em exame. Não se trata, porém, de validade da norma jurídica, pois só se pode falar em colisão entre princípios válidos.
É por meio dos princípios que se opera o processo de constitucionalização do Direito Privado[74]. A Constituição irradia os seus valores, através dos princípios, atingindo todo ordenamento jurídico, permitindo que novos valores sociais sejam integrados ao ordenamento civil.
No decorrer do século XX, as Constituições dos Estados Democráticos passaram a contemplar princípios fundamentais de diversos ramos do direito, inclusive do direito privado. Igual fenômeno observou-se no Brasil, acarretando o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como papel central das relações privadas.
É esse o entendimento que se pode embasar, no imperativo categórico de Immanuel Kant aput Alexandre de Moraes[75], no qual o ser humano não pode ser visto como meio, mas, sim, como fim em si mesmo. As leis, decisões judiciais, ações políticas e administrativas devem ter como finalidade o homem.
A classificação dos princípios fundamentais como normas que embasam e informam toda a ordem constitucional demonstra a intenção do legislador constituinte em conferir-lhes a condição de núcleo essencial da Constituição de 1988[76].
Fazendo um desenvolvimento axiológico dos princípios fundamentais no ordenamento jurídico, Ingo Sarlet[77] pondera que a dignidade é inerente ao ser humano, não sendo possível conceber que ela seja realizada por uma norma.
Sustenta, então, que a dignidade da pessoa humana não é apenas um direito fundamental, mas um princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa[78]. Assim, todo princípio deve atuar como mandado de otimização, ordenando que algo seja feito na maior medida do possível, considerando as possibilidade fáticas e jurídicas existentes. Resta comprovado na prática que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser realizado em diversos graus.
Mais especificadamente quanto à possibilidade da vinculação dos particulares, diz Sarlet[79]:
[...] também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por sua natureza igualitária e por exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da pessoa vincula também no âmbito das relações entre os particulares. [...] tal constatação decorre do fato de que há muito já se percebeu – designadamente em face da opressão socioeconômica exercida pelos assim denominados poderes sociais – que o Estado nunca foi (e cada vez menos o é) o único e maior inimigo das liberdades e dos direitos fundamentais em geral.
Na mesma linha, Sarlet[80] também afirma que em face da ponderação de valores, na hipótese de conflitos entre princípios (direitos) constitucionalmente assegurados, o princípio da dignidade da pessoa humana acaba por justificar a restrição a outros bens constitucionalmente protegidos, inclusive de cunho jusfundamental. O que leva a uma necessária ponderação entre os bens, visando à proteção da dignidade da pessoa humana, aplicando-se a proporcionalidade. Exemplos jurisprudenciais nesse sentido:
- caso Lüth x Veit - BVerfGE 7, 198: reclamação constitucional contra decisão judicial (15/01/1958) - provavelmente a decisão mais antiga e ensejadora de todo o pensamento da irradiação dos direitos fundamentais na seara privada;
- recurso extraordinário 158.215, proferido, no ano de 1996, pelo Ministro Marco Aurélio, 2ª Turma do STF;
- habeas corpus nº 82424/RS, proferido, no ano de 2004, pelo Ministro Maurício Corrêa;
- recurso extraordinário 201.819-8, proferido, no ano de 2005, pelo Ministro Celso de Melo, 2ª Turma do STF.
5. EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Essa teoria ganha espaço após a Segunda Guerra Mundial, momento em que o mundo sofreu alterações drásticas de forma rápida e intensa. A queda do comunismo fez prevalecer o sistema capitalista que sem dúvida foi o grande fomentador das evoluções tecnológica e social, principalmente com o efeito da globalização. Segundo André Tavares[81]:
[...] o reconhecimento de direitos humanos não deve operar-se, hodiernamente, apenas ‘verticalmente’, pois existe o reconhecimento de privilegiar-se, também, a eficácia horizontal dos direitos humanos. Porém, essa eficácia não terá a mesma intensidade que aquela verificada nas relações constitucionais de tutela da eficácia horizontal, pois elas serão diferentes, conforme se trate da proteção de um direito declarado, bastando, para tanto, mero processo interpretativo, ou se estiver em questão uma garantia constitucional, que, em sua maioria, tem como destinatário o poder público.
Afirma ainda, que[82]:
[...] é exigível não apenas do Estado, mas também dos próprios particulares, a implementação positiva dos direitos fundamentais, e não apenas o respeito a eles (pela não-violação – aspecto negativo). Aliás, nesse ponto a Constituição foi expressa, embora a doutrina pouco se tenha preocupado em analisar o real alcance dessas exigências, como se constata do direito à educação, dever da família a ser promovida com a colaboração da sociedade (art. 205), dentre outros direitos.
Todavia, o que se torna imprescindível, neste ponto, é a visualização das duas dimensões dos Direitos Fundamentais: dimensão objetiva e subjetiva.
Os direitos fundamentais, na teoria liberal, impunham-se como limites ao poder estatal. Tais direitos teriam o condão de delimitar as pretensões (e esferas de proteção) que o indivíduo poderia exigir do Estado, pela positivação desses direitos na ordem jurídica. Tratava-se, puramente, da dimensão objetiva dos direitos fundamentais[83].
Com o fim da segunda guerra mundial transladou a faceta de que os direitos fundamentais eram apenas faculdades (ou poderes singulares), consagrando a visão comunitária e objetiva destes. Ou seja, valores e fins da atuação dos poderes públicos, irradiando seu conteúdo por todo o ordenamento jurídico.
Paulo Bonavides[84] analisando a Nova Hermenêutica Constitucional, inspirada pela teoria material de valores, e a chamada “hipertrofia dos direitos fundamentais”[85] afirma sobre a dimensão objetiva dos direitos fundamentais:
Com efeito, os direitos fundamentais, ao extrapolarem aquela relação cidadão-Estado, adquirem, segundo Böckenförde, uma dimensão até então ignorada – a de norma objetiva, de validade universal, de conteúdo indeterminado e aberto, e que não pertence nem ao Direito Público, nem ao Direito Privado, mas compõe a abóbada de todo o ordenamento jurídico enquanto direito constitucional de cúpula.
Essa nova hermenêutica de concretização - oriunda do princípio da unidade da Constituição - possibilita que os direitos fundamentais exprimam sua efetividade e irradiação em todo o ordenamento jurídico, de modo que este ganhe eficácia em razão daqueles.
Salutar frisar que os direitos fundamentais formam um muro de contenção contra as arbitrariedades do poder político instaurado, pois instituem a eficácia da Constituição. Sem embargo, vale ressaltar que o direito privado também conhece o fenômeno do poder e da autoridade para condicionar suas relações.
É cediço que não é apenas o poder público que comete ataques contra a liberdade de manifestação do indivíduo e a dignidade da pessoa humana. Tal qual, há uma progressiva multiplicação dos centros privados de poder e da atuação destes no desenvolvimento e prestação de atividades e serviços originalmente públicos.
A autonomia privada é o poder que o indivíduo possui para regulamentar suas próprias decisões, relações e abstenções. Delimita-se como a capacidade de auto administrar sua vida, dentro da sua esfera de interesses jurídicos.
Notadamente, não é cabível o entendimento do Estado Democrático sem a proteção constitucional da autonomia privada. A Constituição consagra a liberdade (em seu artigo 5º, caput) como base dos direitos individuais. Fortalece tal vontade quando elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil – artigo 1°, inciso III.
Com efeito, a autonomia privada e, por conseguinte, a liberdade de autogoverno, são elementos fundamentais do princípio da dignidade da pessoa humana em sua dimensão formal.
Não significa, porém, que esta liberdade fundamental e esta capacidade de autogoverno do indivíduo não sofram limitações. É possível que, em certos casos, a proteção dessa autonomia importe em lesão a outros direitos fundamentais nas relações entre particulares, o que possibilita sua restrição ou limitação.
5.1 CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais surgiu a partir de conflitos concretos que foram levados às cortes constitucionais, inicialmente, na Alemanha e nos Estados Unidos.
Devido a seus sistemas jurídicos e à própria tendência de suas Cortes, esses países tomaram rumos diferentes visando dar soluções à mesma questão. Daí surge as duas mais importantes teorias acerca do assunto: State action (norte-americana) e a Drittwirkung (Alemã)[86].
Essas teorias distinguem-se, tanto por sua forma de enfoque, quanto pela preocupação com a autonomia privada. Enquanto a State action busca preservar a autonomia privada até as últimas conseqüências, a Drittwirkung é mais branda nesse sentido. Além disso, típico do direito norte americano, a State action foi criada com base em decisões da Suprema Corte em cada caso concreto. Já a Drittwirkung nasceu também de casos concretos, mas se desenvolveu como uma teoria autônoma[87].
5.1.1 State Action (ou doutrina norte-americana)
A própria forma como foi estruturado o Estado norte-americano, bem como sua constituição, levou-o a se basear nos pilares da autonomia privada e na relação Estado-Cidadão.
O público e o privado sempre tiveram papéis bem distintos, sendo o primeiro extremamente limitado e o segundo livre na mesma proporção. O dever do Estado de respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, consagrados nas Emendas Constitucionais americanas, era chamado de state action, ou seja, ação estatal[88].
Porém, após metade do século XX, essa dicotomia (público x privado) sofreu enormes mudanças, tendo sua linha divisória devido à necessidade de se adequar às mudanças sociais advindas desse período histórico.
Casos envolvendo violações de direitos fundamentais por particulares começaram a surgir com mais frequência na Suprema Corte Norte Americana que, diante deles, não mais podia invocar a autonomia privada.
Tornou-se imprescindível, então, interpretar de forma extensiva a state action de modo a possibilitar sua aplicação na esfera privada. Nesse sentido, a Suprema Corte passou a usar dois parâmetros para a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada conhecidos como os public function cases e symbiotic relationship[89].
Em relação ao primeiro, a Corte entendeu que se aplicariam os direitos fundamentais de maneira direta. Isto é, quando um particular, por algum motivo, exercer ato próprio de um ente público, por meio da delegação de alguma atividade pública relevante a um particular[90].
O caso mais famoso e que bem ilustra esse posicionamento é conhecido como Smith x Allwright. Nas eleições primárias do seu partido para a escolha dos candidatos, negros não podiam participar: a votação era exclusiva de brancos. Consultada, a Suprema Corte entendeu que a XV Emenda, que irrestringe o direito ao voto por motivo de raça, cor ou estado de servidão deveria se aplicar ao caso, uma vez que os partidos ao realizarem a votação para a escolha do candidato estavam sub-rogando uma função estatal[91].
No caso dos chamados symbiotic relationship, ou state commandment, a Suprema Corte entendeu que em havendo vínculo entre o ato do particular e a administração pública os direitos fundamentais deverão ser respeitados de forma direta, uma vez que o Estado está relacionado com o fato[92].
O caso de maior repercussão foi Burton x Wilmington parking Authority. Um estabelecimento comercial, Eagle Coffe Soppe se negou a servir um cliente negro. Entendeu a Suprema Corte que, pela autonomia privada, poderia o dono do estabelecimento decidir a quem deveria e a quem não deveria servir. Entretanto, o referido restaurante localizava-se em um imóvel cujo locador era uma companhia estatal. Decidiu aquela Corte que o Estado ainda que de forma indireta tinha ligação com o ato, uma vez que ele fora praticado em um local de propriedade do Estado. Sendo assim havia vinculação entre o ato e o Estado[93].
Por certo, a teoria do state action não se desenvolveu propriamente como uma doutrina, mas com julgados, os quais nem sempre são seguidos como uma tendência jurisprudencial na Suprema Corte.
Embora primária e ainda muito tímida, essa teoria tem buscado relacionar o ato do particular com o Estado - seja por exercer uma função típica do primeiro, ou por haver sua participação ainda que indireta no ato.
5.1.2 Drittwirkung (ou doutrina alemã)
Esta teoria teve início ideológico na Constituição de Weimar, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial. Em seu artigo 118, o legislador declarava que alguns direitos fundamentais seriam oponíveis à esfera privada. Eram estes os direitos à liberdade de expressão nas relações trabalhistas e econômicas, bem como a liberdade de associação frente às restrições provenientes de particulares[94].
Todavia, apesar de representar um grande marco, não se pode afirmar que tais decisões demarcavam uma teoria ou uma doutrina autônoma.
Somente passou a existir como doutrina após a Segunda Guerra Mundial, no contexto histórico em que a Alemanha passou por uma reestruturação política, financeira, econômica e também jurídica. Este cenário propiciou mudanças de paradigmas[95], surgindo, assim, uma revolucionária teoria denominada Drittwirkung der Grudrechte, ou seja, eficácia entre terceiros da norma fundamental[96].
Salvo algumas modificações sofridas ao longo do tempo, esta ainda é a teoria mais desenvolvida a respeito do assunto e a que melhor responde as diversas controvérsias[97]. No Brasil, ainda é um assunto pouco discutido, embora na última década tenha ganhado alguma força[98].
O primeiro caso em que houve aplicação dessa teoria pelo Tribunal Constitucional Alemão foi o caso Lüth, considerado, até hoje, como o marco das discussões a respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Ocorrido em 1958, o senhor Lüth, então presidente de um clube de imprensa, propôs um boicote ao filme de um diretor que teria feito filmes antissemitas durante a Segunda Guerra Mundial. Ao ingressar com ação de indenização, pelo fato, o diretor não teve seu pedido acolhido, pois o Tribunal acolheu a tese da liberdade de expressão[99].
Dessa forma, essa decisão histórica trouxe três grandes inovações: a questão da irradiação dos direitos fundamentais, a aplicação destes na esfera privada e por fim a adoção da teoria da eficácia indireta ou mediata predominante até os dias atuais na jurisprudência alemã[100].
5.2 EXEMPLOS DE APLICAÇÃO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA
A jurisprudência nesse ponto revela-se farta, contudo serão colacionados apenas alguns dos mais relevantes e paradigmáticos casos já julgados.
Mister iniciar trazendo a ementa do Recurso Extraordinário nº 158215/RS[101]:
DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembleia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.
Nesse julgado, cujo relator foi o Em. Min. Marco Aurélio, a Segunda Turma do STF considerou que uma pessoa jurídica de direito privado, no caso, uma cooperativa, deve obedecer ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório no caso de exclusão compulsória de um de seus associados[102].
Outro julgado, no mesmo sentido e mais recente se deu no Recurso Extraordinário nº 201819/RJ, que teve como relator do acórdão o Min. Gilmar Mendes, pela Segunda Turma[103]:
SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.
Nesta decisão, o STF entendeu que as violações aos direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Afirma o ministro-relator que a ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento a Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais.
Outro julgado do Excelso Tribunal de destaque neste tema é o do Recurso Extraordinário nº 161243/DF, cujo relator foi o Ministro Carlos Velloso, também pela Segunda Turma[104]:
CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO EMPREGADO DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg) PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.
Neste julgado foi acolhido pelo Relator o parecer do Ministério Público, no sentido de que a empresa privada deve respeitar o princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput da Constituição de 1988, sendo proibida a discriminação fundada na nacionalidade do trabalhador. Acolheu-se a tese da igualdade em detrimento da autonomia privada, que não teria o poder de estabelecer diferenças quanto à distribuição de benefícios previstos no estatuto da empresa[105].
Percebe-se, desta forma, que o Tribunal Superior vem consolidando o entendimento de que a eficácia dos direitos fundamentais deve permear as relações Estado-cidadãos, assim como as relações cidadão-cidadão.
6. O EFEITO DA IRRADIAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A proteção destinada ao cidadão não deve ser reduzida tão somente àquela frente a ação Estatal, deve também ser vista frente a finalidade de princípios objetivos com valor axiológico, os quais servem como guia ou parâmetro para todo o ordenamento jurídico[106].
Na sistemática constitucional moderna, toda norma infraconstitucional deve estar em sintonia com a Constituição. Ou seja: não pode contrariar o texto constitucional. Se assim for, essa norma estará eivada do vício de inconstitucionalidade e não produzirá efeitos[107].
Este entendimento deve ser estendido tanto ao julgador quanto aos próprios particulares. Ao colocar a Constituição da República no topo da pirâmide normativa quis o legislador constituinte utilizá-la como parâmetro para a aplicação de todas as outras regras. Tal fato justifica por si só a teoria da irradiação dos direitos fundamentais[108].
6.1 TEORIAS A RESPEITO DA IRRADIAÇÃO NO ÂMBITO PRIVADO
Compreendida a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, resta apreciar a aplicação desta: seja de forma direta, sem qualquer intermediário; ou indireta, por meio de um veículo que institucionalize a norma jurídica[109].
Importante será debruçar-se sobre os pontos polêmicos e as justificativas de cada teoria.
6.1.1 Teoria da eficácia direta (ou imediata)
Frente à conjuntura político-jurídica do século XXI, muito mais do que dar efetividade às normas constitucionais, adotar a teoria da aplicação imediata é transparecer a dissolúvel dicotomia público-privada[110].
A Constituição da República[111] em seu artigo 5°, §1° determina que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Isto significa que o constituinte, abarcando todos esses direitos, decidiu dar eficácia plena e aplicação imediata para o exercício desses, e que a omissão legislativa não interferirá no seu exercício, atribuindo garantias constitucionais – ação direita de inconstitucionalidade por omissão e/ou mandado de injunção.
Não se pode conceber o direito privado como um sistema independente, desconjuntado das premissas maiores do Estado Social e da constitucionalização dos direitos sociais e da personalidade. Não seria possível transplantar o particular para a posição de sujeito passivo na relação de eficácia dos direitos fundamentais nos mesmos moldes que se faz com os poderes públicos[112].
Com efeito, os particulares são titulares de direitos fundamentais e contra eles não seria possível atribuir toda a esfera restritiva que essas normas possuem em face do Estado. Ainda mais ao passo que são imbuídos da proteção constitucional de autodeterminação de seus atos, preservando sua autonomia e autogoverno[113].
Em um primeiro plano, o legislador infraconstitucional deve não apenas respeitar os direitos fundamentais, mas também desenvolver proteção adequada desses na esfera privada. Com efeito, a proteção judicial deve se vincular de forma negativa e positivamente aos direitos fundamentais. O magistrado, em suas decisões estaria obrigado a efetivar o núcleo determinativo dos direitos fundamentais e evitar sua restrição[114].
Sem embargo, a teoria dos deveres de proteção estaria vinculada à mediação pelo legislador ordinário e pelo juiz que devem assumir postura temerária na efetivação dos direitos fundamentais nas condutas particulares[115].
Insta que a atuação legislativa ordinária é fundamental para determinar os métodos e a graduação da eficácia das normas constitucionais nas relações privadas. Entretanto, a lacuna legislativa não deve ser obstáculo para o exercício desses direitos[116].
A atuação direta dos direitos constitucionais nas decisões judiciais não seria simples regra hermenêutica ou de interpretação, mas o reconhecimento delas como normas comportamentais, razão primária e justificadora da atuação jurisdicional[117].
Dentro da sistemática jurídica brasileira a dificuldade dessa teoria está em delimitar quais são as normas fundamentais que não possuem apenas um status positivo e negativo, mas a característica de norma axiológica[118].
A ausência de uma determinação legal gera insegurança na esfera privada, entretanto a teoria da eficácia direta assinala que os casos aplicáveis são restritos àqueles em que haja um desnível entre as partes.
6.1.2 Teoria da eficácia indireta (ou mediata)
A teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais tem como fundamento uma aplicação indireta destes nas relações privadas, ou seja, não ingressariam como direitos subjetivos, uma vez que são relações jurídicas distintas[119].
Haveria a possibilidade de que os particulares renunciassem a certos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, o que não seria possível na relação desses com o Estado.
Segundo adeptos desta teoria[120] a grande ameaça da aplicação direta dos direitos constitucionalizados seria a desfiguração da base do direito privado pela aniquilação da autonomia privada.
A aplicação direta dos direitos positivos na Constituição geraria um poder incomensurável aos magistrados, em vista do grau de indeterminação das normas definidoras dos direitos constitucionais[121].
Canotilho[122] afirma que a ideia de aplicabilidade direta representa um reforço para a normatividade. Todavia, deixa claro que não se pode recorrer a proteção de um conteúdo jurídico-constitucional quando a indeterminação da norma é evidente:
[...] O raciocínio é portanto este: as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis desde que possuam suficiente determinabilidade. Temos aqui duas questões dogmáticas: (1) aplicabilidade de normas; (2) determinabilidade de normas.
Para o doutrinador[123], as normas devem possuir um grau máximo ou mínimo de juridicidade, dependendo do que se dispõe a abranger. Contudo, o grau de determinabilidade é imprescindível, no instante que rege normas de comportamento para os particulares sob pena de invalidade.
A segurança jurídica é alcançada pelo texto expresso dos ditames de uma norma precisa e previsível, capaz de traduzir orientação e eficácia, assim como a feitura de lei infraconstitucional se coloca como necessidade para exprimir maior precisão e clareza[124].
Cabe assim, antes de tudo ao legislador ordinário, a tarefa de mediar a aplicação dos direitos fundamentais sobre os particulares, estabelecendo uma ponte que torne os valores constitucionais compatíveis com relações privadas. Ao judiciário restaria a função de preencher as cláusulas indeterminadas criadas pelo legislador, e apenas em casos excepcionais, quando houvesse lacunas no ordenamento jurídico e inexistência de cláusula geral ou de conceito indeterminado, é que se permitiria ao juiz a aplicação direta das normas essenciais nas lides entre privados.
6.1.3 Tese de Canotilho
Na análise dos diferentes pensamentos a respeito da drittwirkung (e suas variações) não poderia furtar a tese de Canotilho, doutrinador constitucionalista português, que traz uma das mais relevantes contribuições a respeito do assunto e para alguns a mais interessante escrita em português.
Canotilho analisa a questão sob quatro aspectos: do legislador, do juiz, do particular e um núcleo considerado por ele irredutível, qual seja o da autonomia privada[125].
Quanto ao legislador, o estudioso considera que a vinculação com o direito privado é inegavelmente imediata. Sendo este parte do órgão legislativo, atua na criação de leis infraconstitucionais, assim estará ele obrigado a observar e respeitar a ordem constitucional. À luz do princípio da igualdade, a lei promulgada não pode (nem deve) descriminar qualquer indivíduo[126].
No que tange aos juízes, estes devem se vincular aos direitos, liberdades e garantias como preceitos legais. Contudo, frente ao caso concreto, o magistrado deve lançar mão de sua função objetiva de interpretar[127].
Canotilho[128] inaugura o método para aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada pelo juiz:
a) em primeiro lugar, devem fazer uma aplicação do direito privado legalmente positivado em conformidade com os direitos fundamentais pela via da interpretação conforme a constituição.
b) Se a interpretação conforme os direitos, liberdades e garantias, for insuficiente cabe sempre na competência dos tribunais a desaplicação da lei (por inconstitucionalidade) violadora dos direitos (subjetivos) ou dos bens constitucionalmente garantidos pelas normas consagradoras de direitos fundamentais.
c) A interpretação conforme os direitos, liberdades e garantias das normas de direito privado utilizará como instrumentos metódicos não apenas as clássicas cláusulas gerais ou conceitos indeterminados (ex.: boa-fé, abuso de direito) mas também as próprias normas consagradoras e defensoras de bens jurídicos absolutos (vida, liberdade). Trata-se, pois, de uma concretização de bens jurídicos constitucionalmente protegidos através de normas de decisão judiciais (captadas ou “extrinsecadas” por interpretação – integração pelo direito judicial).
A princípio esse método possibilita usar o direito fundamental positivado; todavia, caso não seja eficiente, valer-se da possibilidade de declarar a norma violadora como inconstitucional. Por fim, esta tese viabiliza o uso dos direitos fundamentais como instrumento de interpretação, sendo verdadeiras cláusulas gerais de conteúdo axiológico – não significa dizer que seriam conceitos indeterminados[129].
Ao tratar da questão dos direitos fundamentais aplicados nas relações jurídicas entre particulares, Canotilho aceita a complexidade e fragilidade do tema. No entanto, admite que não só o poder público é capaz de lesionar o cidadão, mas os chamados poderes sociais também - geralmente advindos do poder econômico. Sendo assim, cabe ao legislador e aos tribunais observarem e tutelarem esses casos[130].
Contudo o doutrinador alerta que embora seja de extrema importância a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, o princípio da autonomia privada deve ser sempre respeitado e resguardado, de modo que a eficácia irradiante não seja algo absoluto[131].
Também destaca Canotilho a importância de se revidar a “dupla ética”, isto é: situações idêntica tratadas de forma distintas nas esferas pública e privada[132].
7. CONCLUSÃO
A Constituição é vista como documento escrito disciplinador do poder e da autoridade e, por isso, garantidor do espaço de liberdade, tanto privada quanto pública. Não é mais possível estabelecer diferenças entre o fazer hermenêutico em relação às leis infraconstitucionais e em relação aos preceitos constitucionais.
Com as chamadas correntes pós-positivistas, os princípios – sobretudo constitucionais – atingem o patamar de juridicidade, figurando ao lado das regras como espécie de preceito jurídico dotado de um comando obrigatório de validade.
A diferença essencial entre estes é que as regras disciplinam a situação de aplicação e os princípios não. Em verdade, toda aplicação no Direito demanda um juízo de adequação a fim de definir qual o conjunto normativo que, respeitando o dever de coerência, deve regular o problema concreto.
As delimitações aos direitos fundamentais encontram adequada solução no âmbito da teoria dos princípios. A solução de conflitos entre princípios resolve-se no campo da proporcionalidade do bem a ser restrito, ou seja, no caso concreto deve prevalecer o princípio que melhor resolve o problema proposto, a partir da regra da ponderação.
A escolha de um princípio em detrimento de outro não implica decretar-se a invalidade do princípio preterido, mas importa a conclusão de que um princípio, naquela situação, resolve melhor o conflito, sendo que outra pode ser a solução em se alterando as condições do caso em tela.
A partir dos precedentes judiciais pôde-se perceber que o STF utiliza amplamente os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade como cláusulas de controle das atividades restritivas aos direitos fundamentais. Não podendo ter a mesma precisão quanto à definição dos momentos em que se aplica ou não a eficácia dos direitos fundamentais nos litígios particulares.
É papel dos novos operadores do direito fazer com que se observem normas e direitos constitucionais e internacionais que requerem uma reflexão e revisão dos seus significados e sentidos, ora por suas ambiguidades de formulação, ora por insuficiência de indicação de responsabilidades.
Conclui-se, portanto, que a horizontalização da eficácia dos direitos fundamentais é previsão constitucional implícita e, portanto, deve ser obedecida no máximo possível como forma de aplicar a justiça aos litígios entre particulares.
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