Contrapontos a ADI 5522/SP

Da indispensabilidade das garantias de independência funcional e da livre convicção dos delegados de polícia

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Os argumentos utilizados pela Procuradoria Geral da República, em especial na ADI 5522/SP, que questiona os parágrafos 2º e 5º, do artigo 140 da Constituição Paulista, não merecem prosperar, já que a legislação acertadamente, consideram carreira jurídica.

1.INTRODUÇÃO

O Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou as ADI´s 5520, 5522 e 5528 questionando dispositivos introduzidos por meio de emenda às Constituições dos Estados de Santa Catarina, São Paulo e Tocantins as quais, acertadamente, consideram carreira jurídica o cargo de Delegado de Polícia Civil, pois exercem atribuição “essencial à função jurisdicional e à defesa da ordem jurídica”, assegurando ainda aos integrantes da carreira “independência funcional” e “livre convicção”.

Recentemente, houve uma tentativa infrutífera da Procuradoria Geral da República em impedir a utilização da Ação Civil Pública, como uma atribuição da Defensoria Pública, na ADI 3.943, demonstrando, também, a “busca desenfreada do procurador-geral da República pela concentração de poderes”[i].

Os argumentos utilizados pela Procuradoria Geral da República, em especial na ADI 5522/SP, que questiona os parágrafos 2º e 5º, do artigo 140 da Constituição Paulista, não merecem prosperar, senão vejamos:

Em uma análise ontológica e histórica da carreira de Delegado de Polícia, competia ao Juiz de Paz, conforme o Código de Processo Criminal do Império (Lei de 29 de novembro de 1832, regulamentado pelo Decreto de 29/03/1833), as funções policiais e judiciárias, auxiliando-o, no desempenho de suas funções policiais, manutenção da ordem e elucidação de crimes, o Escrivão de Paz, Inspetores de Quarteirões e Oficiais de Justiça.

Nas Ordenações Afonsinas (Rei Afonso V 1446 – 1447 d C), a Polícia Judiciária era confiada aos Juízes. Presentemente, a atuação fica a cargo do Delegado de Polícia, conforme artigo 144, § 4º da CRFB, contudo, mantida a ideia de delegação de poderes advindas diretamente do Judiciário, confirmada no julgamento da ADI 2886/RJ, em que a Suprema Corte entendeu inconstitucional lei daquele Estado que determinava a remessa direta da Polícia Judiciária, do Inquérito Policial, ao membro do Ministério Público, afrontando a determinação do artigo 10, § 1º e §3º e artigo 23, ambos do Código de Processo Penal, que determina: “findo, o inquérito, os autos serão enviados ao juiz competente.” [ii]

Outrossim, a Lei 261 de 03 de dezembro de 1841, bem como o regulamento  120, de 31 de janeiro de 1842, determinavam que os Chefes de Polícia seriam nomeados dentre os Desembargadores ou Juízes de Direito, já os Delegados e Sub-delegados de polícia, entre os Juízes de Direito ou cidadãos exemplares”. Daí a necessidade de o cargo de Delegado de Polícia ser executado por bacharéis em Direito e, atualmente, com a exigência de experiência em atividade jurídica por, no mínimo, dois anos.

Desta feita, tendo em vista “a grande dificuldade de manter Polícia e Justiça nas mãos de uma única autoridade” foi promulgada a Lei 2033, de 20 de setembro de 1871, que  determinou a separação das funções judiciais e policiais, o que ainda é mantido em consonância com o sistema acusatório e para a manutenção da imparcialidade das Autoridades Judiciária e Policial, esta última definida pelo Ministro da Justiça, Senador Sayão Lobato, em sessão do Senado em 1871, como sendo:

“As autoridades policiais, no que toca o processo de formação de culpa, nos crimes  comuns, são competentes, e é de seu ofício de polícia judiciária, auxiliar da justiça proceder a todas as diligências para investigar e esclarecer os fatos  e suas circunstâncias, isto é, para a formação do corpo de delito e para descobrir  as testemunhas mais idôneas, e logo proceder ao inquérito policial. Estas autoridades encarregadas deste inquérito estão localizadas no mesmo distrito, acodem e procedem a todas as diligências, autenticam os esclarecimentos e dão a sua parte, com esse instrumento do inquérito policial, ao encarregado da acusação, para iniciar o processo”.[iii]

Atualmente, o Delegado de Polícia é um servidor público estadual ou federal, aprovado em concurso público de provas e títulos, extremamente difícil, composto de diversas fases, se exigindo, dentre outros requisitos, formação em curso superior de Direito. Em outras palavras, não há como dizer que a carreira do Delegado de Polícia, não é jurídica, vez que ele é o responsável pela primeira e efetiva análise jurídica da conduta criminosa que se apresenta, exarando sua convicção jurídica acerca do início ou não da persecução penal. Desta forma, verifica-se que as únicas autoridades que tem poderes para decidir pela manutenção ou não da prisão são o Delegado de Polícia e o Juiz de Direito, motivo pelo qual a Emenda Constitucional nº 35, de 3 de abril de 2012, do Estado de São Paulo, acertadamente conferiu independência funcional as autoridades policiais daquele Estado.

2 – DA INDISPENSABILIDADE DAS GARANTIAS DE INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL E DA LIVRE CONVICÇÃO DOS DELEGADOS DE POLÍCIA.

Os atos de Polícia Judiciária previstos constitucionalmente no artigo 144, § 4º, estão definidos no artigo 6º do Código de Processo Penal, que deixa clara a necessidade de independência funcional e liberdade na investigação. Tal artigo traduz a livre convicção nos atos de Polícia Judiciária e a devida imparcialidade, determinando que se deva “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”. O entendimento majoritário da doutrina é de que o rol deste artigo e do artigo 7º, do mesmo “Codex”, é  meramente exemplificativo, dada a natureza de procedimento discricionário do Inquérito Policial às vistas do caso concreto.

Como bem explana José dos Santos Carvalho Filho[iv], o princípio da eficiência, também denominado “qualidade do serviço prestado”, impõe “a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional”. Já para Maria Sylvia Zanella de Pietro, tal princípio apresenta dois aspectos: o modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública e o modo de atuação do agente público, sendo este último “o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados”[v]. Justamente o que foi buscado pelo Estado, no exercício de sua competência legislativa concorrente, nos termos do art. 24, XVI, da Constituição Federal, ao atribuir garantias aos Delegados de Polícia zelou pelo princípio da eficiência, impedindo-o de se afastar da finalidade administrativa, que é o interesse público, com seu elo indissociável, qual seja, a competência que, no caso da Autoridade Policial, possui atribuições constitucionalmente previstas.

O poder de decisão da Autoridade Policial nos casos de flagrante delito[vi], com a análise da tipicidade, culpabilidade e antijuridicidade, com fundamento nas súmulas aprovadas na Academia de Polícia de São Paulo[vii], resulta em economia processual e respeito à dignidade da pessoa humana, prestigiando, portanto, o princípio da eficiência, ou seja, a busca do melhor desempenho possível no rendimento funcional, bem como o princípio da finalidade administrativa com a inafastabilidade do interesse público.

No escólio do professor Marcos Paulo Dutra, Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro, a Constituição Brasileira teve nos artigos 144 e 129 duas oportunidades de atribuir ao Ministério Público poderes de investigação direta, mas silenciou. Embora no artigo 129, inciso III, tenha lhe dado atribuição para promover o Inquérito Civil Público, bem como previu outros procedimentos investigatórios como no artigo 58 §3º (CPI), houve silêncio eloquente do Poder Constituinte com o fim de conservar o Ministério Público distante da atividade repressiva, para não comprometer seu múnus primordial de garantidor da ordem jurídica, que demanda isenção. O Ministério Público deve agir como parte imparcial, porque na Ação Pública não está interessado em condenação, mas na defesa da ordem jurídica. “Opinio delicti”, significa ter opinião sobre o delito, então, o ideal é isenção, atuar de forma racional, fria, sem "tomar partido" e não imparcial que é somente para as Autoridades Policial e Judiciária que não são partes na “persecutio criminis”.

O Delegado de Polícia exara uma verdadeira “opinio delicti” na fundamentação do indiciamento[viii], face a exigência de uma análise técnico- jurídica do fato, conforme lei federal 12.830/13, tendo por base, notadamente, o Inquérito Policial, mesmo instrumento que o Promotor de Justiça irá valer-se para fundamentar sua também “opinio delicti” na Denúncia para propositura da Ação Penal.

O controle externo do Ministério Público não pode afetar atribuições da Autoridade Policial nem da Autoridade Judiciária, devendo prezar pela convivência harmônica, em um verdadeiro sistema de freios e contra pesos do regime democrático, em conformidade com o artigo 2º da Resolução n.º 20 de maio de 2007, do Conselho Nacional do Ministério Público, que regulamenta o controle externo da atividade policial com vistas a promover a “integração das funções do Ministério Público e das Polícias voltada para a persecução penal e o interesse público”, já que esta se divide em “persecutio criminis extra iudicio” e “persecusio criminis in iudicio”.

Uma investigação criminal conduzida, inteiramente, pelo órgão do Ministério Público ou Poder Judiciário fere, inegavelmente, a busca da verdade possível e o sistema acusatório. Como o Promotor de Justiça pode pedir a absolvição, não é somente órgão acusatório, devendo na persecução penal desempenhar sua função precípua, qual seja, “custus legis”.

Ademais, a presidência daquele procedimento é do Delegado de Polícia, conforme artigo 9º do Código de Processo Penal, não competindo ao Ministério Público “dirigir” a investigação criminal, definir quais provas devam ser produzidas ou serem tidas como relevantes, mas sim opinar ao juiz por suas cotas para que este decida sobre a pertinência, assim como decida sobre o acolhimento de sugestão de arquivamento ou de denúncia, em face do acusado (artigos 16 e 18 do CPP).

                O artigo 241 da CF, antes de sua mudança pela emenda constitucional 19 de 4 de junho de 1998, tratava apenas de questões sobre vencimentos, tanto que o STF, ao decidir a ADI 761/RS, entendeu constitucional a lei estadual que ordenava a aplicação do princípio da isonomia (CF, art. 39, § 1º), em favor dos Delegados de Polícia de carreira, relativamente aos vencimentos dos Procuradores de Estado, entendendo, entretanto, que ofende o art. 37, XIII, da CRFB, a lei estadual que assegure equiparação de vencimentos ou de aumentos entre os Oficiais da Polícia Militar e os Procuradores do Estado, ainda que aqueles tenham “formação de grau superior”, não sendo possível reconhecer, aí sim, entre esses, atribuições sequer assemelhadas à carreira jurídica, “pertencente cada qual ao respectivo domínio de atividade profissional”.

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Não se deve confundir a Polícia Preventiva (que está submetida à Polícia Administrativa, de cunho preventivo, ligada a segurança, visando impedir a prática de atos lesivos a sociedade) com a Polícia Judiciária, esta última, de caráter jurídico, com função de polícia investigativa (apuração de infrações penais) e judiciária, em auxiliar o Poder Judiciário no cumprimento das ordens judiciais, portanto atribuições essenciais à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica, como bem explanam a Súmula Vinculante n.º 14 do STF e o artigo 13 do Código de Processo Penal.[ix]

Ainda que a doutrina e a legislação (artigo 12, artigo 27 e artigo 46 §1 todos do CPP) tragam a possibilidade da dispensabilidade do Inquérito Policial, não podemos olvidar que, por imposição pragmática, raras são as Ações Penais sem ele iniciadas, sendo que a praxe forense traz, em verdade, a aplicação do poder de requisição da instauração de Inquérito tanto por parte do Ministério Público quanto ao Poder Judiciário, ou requerimento do ofendido (artigo 5º do Código de Processo Penal).

A criação paulista do NECRIM (Núcleo Especial Criminal) reforça o entendimento de que o Delegado de Polícia, como o primeiro garantidor dos direitos fundamentais, promove a defesa da ordem jurídica, a pacificação social, e em especial o acesso à justiça, auxiliando ainda o Poder Judiciário ao promover a efetividade do exercício dos direitos fundamentais[x], neste sentido:

“O Delegado de Polícia no exercício de sua atividade de Polícia Judiciária, em decorrência da natureza jurídica de suas atribuições, de maneira informal exerce a atividade de mediador de conflitos, tanto em situação não criminais, mas que causam incomodo no convívio em sociedade, mas também em crimes de menor potencial ofensivo. O trabalho de mediação feito pelo Delegado de Polícia é extremamente importante num contexto social e comunitário”[xi].

3 – CONCLUSÃO

O Ministro Celso de Mello[xii], do Supremo Tribunal Federal, refere-se ao de Delegado de Polícia como “o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”, ressaltando ser tal profissional não apenas o garantidor da ordem pública, econômica e social, como também dos direitos fundamentais dos indivíduos detidos, representando a valorização e legitimidade da carreira de Delegado de Polícia.

Desta forma, manter a vigência da Emenda Constitucional 35, de 3 de abril de 2012, à Constituição do Estado de São Paulo e de previsão análoga em outros Estados da Federação é ir ao encontro do entendimento de que “o Estado ainda não garantiu todos os meios para que essa autoridade imparcial não fique vulnerável a toda sorte de pressões políticas, sociais e econômicas. Nem tampouco assegurou que a Polícia Judiciária pare de ser indevidamente sufocada pelo contingenciamento de recursos”.[xiii]

               


[i]de Castro; Henrique Hoffmann Monteiro. Janot quer barrar no Supremo equiparação de delegados com carreira jurídica 17/05/2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br

[ii]Falasca, José Ângelo. A Polícia Civil Paulista: sua evolução histórica nos períodos colonial, imperial e republicano. São Paulo: Academia de Polícia Civil “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, 2007.

[iii]Falasca, José Ângelo apud GENOFRE, Roberto Maurício, Os Cem anos da criação da polícia de carreira de São Paulo Segurança Pública no Brasil. Revista da ADPESP. São Paulo. Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, n.º 34, 2004.

[iv] Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[v] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010.

[vi] Lessa, Marcelo de Lima. A Independência Funcional do Delegado de Polícia Paulista. São Paulo: Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, 2012.

[vii]I Seminário Integrado a Polícia Judiciária da União e do Estado de São Paulo.

[viii] Moraes, Rafael Francisco Marcondes de. Indiciamento na investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3849, 14 jan. 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/26390>. Acesso em: 29 maio 2016.

[ix] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Bahia: Jus Podivm, 2015.

[x] Núcleo Especial Criminal – NECRIM – Mediação de Conflitos – Doutrina Policial Civil de Pacificação Social. São Paulo: Academia de Polícia Civil, 2015.

[xi]Kobashi Gallinati, Raquel.  A importância do delegado de polícia conciliador no estado democrático e social de direito: Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, São Paulo, 2013.

[xii]Ministro Celso de Melo, STF, HC 84548/SP. Rel. Ministro Marco Aurélio. Julgado em 21/6/2012.

[xiii]de Castro, Henrique Hoffmann Monteiro. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. 14/07/2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br

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Sobre os autores
Patricia Pacheco Rodrigues

Atualmente Delegada de Polícia Civil de São Paulo, pós-graduação em Penal/Processo Penal com Capacitação para Magistério Superior pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus; 2010 - 2011 Escrivã de Polícia Civil em São Paulo; 2011 - 2014 Advogada em São Paulo; 2014 - 2016 Delegada de Polícia Civil no Paraná.

Patricia Chalfun de M. Fonseca

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Graduação - Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós - graduação em Direito Tributário - Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós - Graduação em Direito Público - UNISAL. Professora de Direito Administrativo e Constitucional do curso FMB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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