A instrumentalidade do processo no novo CPC

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08/06/2016 às 09:26
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2 AS CONCLUSÕES

2.1 Os escopos da jurisdição e a técnica processual

Se o processo deve deixar para trás todo elemento privatista para se (re)construir exclusivamente a partir do direito público; se a teoria geral do processo deve se dedicar especialmente ao estudo da jurisdição enquanto expressão de poder; se a jurisdição deve buscar respostas em outras expressões do poder uno do Estado, buscando respostas na ciência política; a jurisdição deve, também, ter "objetivos que se relacionam com os fins do próprio Estado."[27]

É nesse contexto que o autor afirma que, assim como o Estado persegue o bem comum, a jurisdição deve perseguir a justiça. Nesse ponto de sua construção, Dinamarco apresenta a ideia de escopos da jurisdição:

A jurisdição não tem um escopo, mas escopos (plural); é muito pobre a fixação de um escopo exclusivamente jurídico, pois o que há de mais importante é a destinação social e política do exercício da jurisdição. Ela tem, na realidade, escopos sociais (pacificação com justiça, educação), políticos (liberdade, participação, afirmação da autoridade do Estado e do seu ordenamento) e jurídico (atuação da vontade concreto do direito).[28]

Assim, n'A instrumentalidade, a jurisdição pode e deve oferecer uma resposta para além do jurídico, estando atenta à justiça e à autoridade do Estado.[29]Dito de outra forma, todas as técnicas processuais existentes - que para o autor são neutras em si - devem buscar contemplar todos os escopos, dando prevalência aquele que for mais relevante ao caso concreto.

O autor aponta que "as explicações meramente jurídicas da destinação do processo pecam justamente por deixarem na sombra o valor humano perseguido através da jurisdição."[30] Como exemplo, o texto traz o instituto da coisa julgada que, além de seu escopo jurídico de atuação da vontade concreta da lei, contribui para a pacificação social, eis que dá estabilidade às relações que foram objeto da sentença.

Sobre o escopo político, a obra destaca, primeiro, a preservação de liberdades públicas, e aponta a evolução do entendimento jurisprudencial quanto ao cabimento do mandado de segurança e do habeas corpus. Essa evolução é, para o autor, sinal claro da compreensão de que a jurisdição deve ir para além do jurídico, atento aos interesses maiores do Estado.[31]

Cita, ainda, a criação da ação popular e da tutela de direitos ambientais como exemplos da jurisdição em seu escopo político ao criar técnicas para dar efetividade a determinados anseios do Estado e da Constituição.[32]

O escopo jurídico, por sua vez, é o único que é percebido pelos magistrados e pelos juristas em geral. Deste modo, percebe-se grande apuro técnico no estudo teórico do processo, do civil em especial, sempre preocupado com a estrita realização prática do direito material posto em análise, mas sem considerar o todo; ou seja, sem observar os escopos jurídicos e sociais.[33]

Por evidente que tais escopos podem estar em conflito; atender ao escopo social pode significar não cumprir inteiramente o escopo jurídico. Por essa razão, compete à técnica processual coordenar esses diferentes escopos para equilibrá-los. O professor Dinamarco explica que

Fala-se em exigências de "justiça e celeridade", ou de "celeridade ou ponderação", mas sempre o que se tem é isso: a necessidade de dotar o processo de meios tais que ele o mais rápido possível a proporcionar a pacificação social ao caso concreto (é seu escopo social magno), sem prejuízo da qualidade da decisão. A boa qualidade da decisão constitui, por um lado, fidelidade ao direito material (aí o escopo jurídico), mas também, acima disso, penhor da justiça das decisões. Toda a tessitura de princípios e garantias constitucionais do processo (com destaque para a do due process of law) é predisposta à efetiva fidelidade aos desígnios do direito material.[34]

É com essa estrutura de escopos (jurídico, social e político), que Dinamarco justifica a instrumentalidade como uma forma de permitir que o processo seja permeado pelos valores, e não só pelo direito.

2.2 A instrumentalidade: aspecto positivo e negativo

Até o momento, foi possível perceber que o professor Dinamarco fundamentou suas posições demonstrando que o processo civil brasileiro é instrumento de tutela de diversos direitos publicista, como as garantias constitucionais e questões de direito administrativo, mas suas bases são de direito privado.

Por se basear nos conceitos de ação e de lide - estritamente privatistas, para o autor -, o nosso processo civil está sistematicamente permeado pelo pensamento de direito privado. O autor, então, sugere que a jurisdição como centro do estudo do processo, eis que ela, como sendo um modo de exercício do poder Estatal, é essencialmente publicista.

Estando a jurisdição no centro - e, frise-se, sendo ela um tanto do poder estatal -, ela possui três escopos: o jurídico, o social e o político. Aponta que, para além das técnicas do escopo jurídico, a jurisdição exerce papel social, ao oferecer pacificação, exemplo, e também político, quando flexibiliza normas processuais para aumentar o espectros de cabimento do mandado de segurança.

Essa percepção mais publicista do processo, que deixa que ele se permeie de valores não-jurídicos, é a instrumentalidade do processo, que pode ser percebida em dois aspectos: negativo e o positivo.

O negativo "corresponde à negação do processo como valor em si mesmo e repúdio aos exageros processualísticos a que o aprimoramento da técnica pode insensivelmente conduzir." É essa percepção negativa que permite a flexibilização de procedimentos e, por isso, guarda semelhança com a instrumentalidade das formas.

O positivo se relaciona com a obtenção dos resultados esperados em razão dos três escopos da jurisdição. Para Dinamarco, "o processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-política-jurídica, atingindo em toda a plenitude todos os escopos institucionais."[35]

O aspecto positivo está, então, diretamente relacionado com a problemática da efetividade do processo, que, na obra, é apresentada em quatro aspectos fundamentais: a) admissão em juízo; b) modo-de-ser do processo; c) justiça das decisões; e d) efetivação dos direitos.

No que toca à admissão em juízo, a obra elenca diversos problemas, tais como as estreitas possibilidades técnicas de postulação e defesa; o alto custo do processo, e a dificuldade dos mais pobres em participar igualmente do processo; a desinformação e descrença na justiça, que impede a busca efetiva dos direitos; e a limitação à legitimidade ativa individual, que desconsidera a dimensão supraindividual.[36]

Sobre o modo-de-ser do processo, e relacionando-o com os escopos da jurisdição, Dinamarco aponta que

A efetividade do processo está bastante ligada ao modo como se dá o curso à participação dos litigantes em contraditório e à participação inquisitiva do juiz, os primeiros sendo admitidos a produzir alegações, a recorrer, a comprovar os fatos de seu interesse e este sendo conclamado a ir tão longe quanto possível em sua curiosidade institucionalizada com aqueles. O grau participação de todos constitui fator de aprimoramento da qualidade do produto final, ou seja, fator de efetivo do processo do ponto de vista do escopo jurídico de atuação da vontade concreta do direito. Por outro lado, a celeridade em que todo procedimento deve desenvolver-se e a que constitui marca fundamental de alguns são fatores de maior efetividade no camposocial e no político, seja para pacificar logo, seja para obter enérgico repúdio aos atos ilegais do poder público.[37]

A obra conclui afirmando que, em síntese, o processo deve possui feição humana; deve oportunizar o contraditório em igualdade entre as partes; real participação do magistrado "interessado no correto exercício da jurisdição."[38]

Desenvolvido esse modo-de-ser do processo, o caminho deve desaguar na decisão, que, para o autor, é um momento valorativo. O juiz "tem na lei o seu limite, (...), mas esses limites tem valor relativo, a saber: sempre que os textos comportem mais de uma interpretação razoável, é dever do juiz optar por aquela que melhor satisfaça o sentimento social de justiça." Nesse ponto, a obra é categórica: para alcançar os escopos da jurisdição, o magistrado pode, até mesmo, contrariar solução que "as palavras da lei ou a mens legislatoris possam insinuar."[39] Esse critério deve ser aplicado, também, na apreciação de provas e fatos.

Por fim, dada a decisão com fundamentos em tais critérios, ela precisa ser efetiva. Ou seja, o sistema processual tem de ser capaz de produzir "as situações de justiça desejadas pela ordem social, política e jurídica". N'A instrumentalidade do processo, o alcance da efetividade passa pelas tutelas específicas, execuções em espécie, obtenção de resultado por sentenças constitutivas, bem como o uso das medidas urgentes.


3 CONTRADIÇÕES ENTRE OS ESCOPOS DA JURISDIÇÃO

O capítulo anterior trouxe os elementos essenciais para a compreensão da instrumentalidade do processo. Assentaram-se as bases de tal proposta na existência de três escopos da jurisdição: o jurídico, o social e o político. Os dois últimos possibilitariam certa humanização do processo, atento aos anseios sociais e aos objetos do Estado.

Ocorre que existem duas contradições importantes em tais afirmações. Primeiro, as possibilidades trazidas pelos escopos jurídico e social, que segundo o autor permite que o processo se abra aos valores, encontra resistência dentro desses mesmos escopos. É que tal abertura deverá ser concretizada pelo magistrado que poderá decidir a questão conforme os valores que mais lhe agradem, ou seja, conforme sua própria consciência.

Inegavelmente, há a possibilidade de arbitrariedade nas decisões ao se permitir que o magistrado, para atender ao escopo social ou político, possa flexibilizar procedimento, coisa julgada ou alterar a condução da instrução do processo. Tais adequações só poderiam ocorrer em razão de lei - o escopo jurídico sob pena de que se tenha um magistrado-ditador, em afronta à democracia e ao Estado de Direito - vale lembrar que, segundo Dinamarco, o processo é um modelo menor de Estado.

A segunda contradição está em um conflito ignorado escopo jurídico. Quando a obra foi escrita, não havia no Brasil um efetivo debate sobre nosso direito constitucional, que veio a se instaurar de forma profunda após a Constituição de 1988 (CF/88). Mas mesmo sem esse debate já era possível constatar que a abertura natural do processo à norma constitucional significa respeitar rigidamente o texto constitucional, e não a abertura do processo a valores sociais e políticos não contemplados na Constituição.

Vale dizer, a proposta contida n'A instrumentalidade do processo ignora a normatividade do texto Constitucional, interpretando-a como fato de abertura do sistema, e não de fechamento. Isso, por óbvio, também deságua na possibilidade de decisões arbitrárias e para além do direito - o ativismo judicial.

Assim, no presente capítulo serão apresentadas essas duas contradições: a possibilidade do magistrado-ditador, que está em conflito com a ideia do Estado Democrático de Direito; e a utilização da Constituição como texto que possibilita a abertura e não o fechamento do sistema jurídico, que está em desacordo o escopo jurídico da jurisdição. Observe-se.

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3.1 A POSSIBILIDADE DO MAGISTRADO DITADOR: CONTRADIÇÕES NOS ESCOPOS SOCIAL E POLÍTICO

3.1.1 O panorama da crítica

O processo, como instrumento de exercício da jurisdição[40], é, também, instrumento para exercício de poder do Estado. O processo é, nessa medida, o modo correto pela qual o poder enquanto jurisdição deve se manifestar. Em outras palavras, o processo é contenção do arbítrio. Sobre esse ponto, o professor Calmon de Passos coloca que

Antes de o produto condicionar o processo, é o processo que condiciona o produto. A nível macro, a norma jurídica de caráter geral é algo determinado pelo processo de sua produção, um processo de natureza política. É esse processo que reclama rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos - agentes, organização e procedimento - sob pena de privilegiar o arbítrio dos decisores.[41]

E Dinamarco não nega essa característica do processo. Segundo ele, processo é a "disciplina do exercício do poder mediante atos imperativos; ele inclui a nível constitucional e legal, os compromissos e limitações ditados quanto a esse exercício, pelo Estado-de-direito."[42]

Apesar disso, o mesmo professor Dinamarco diz que a "instrumentalidade é a porta mestra para o ingresso dos valores no sistema processual".[43] O ponto central de tal afirmação é a definição de quais valores podem ingressar no sistema processual.

O professor Calmon de Passos fez crítica contundente quanto às reformas havidas sob a influência da instrumentalidade do processo. Para ele, o equilíbrio processual foi quebrado com a hipertrofia do papel do magistrado - deu-se mais poder a quem já tinha todo o poder existente dentro da relação processual.

Além disso, o autor foi favorecido demasiadamente - possibilitou-se a inversão do ônus da prova sem que a existência de provas impossíveis fosse aventada.

Ainda segundo Calmon de Passos, apesar da boa intenção, as reformas "instrumentalistas" fizeram da "legalidade, dogmática, teoria jurídica, ciência do direito (...) perda de tempo e elucubração para o nada." O professor baiano arremata afirmando que jamais se fez a pergunta correta (qual a origem dos problemas?), para se dedicar, apenas, a formas de se livrar de processos e recursos o mais rápido possível.[44]

As críticas acertadas do professor Calmon de Passos podem ser analisados sob a perspectiva da contradição havida internamente no escopo político e social da jurisdição na forma como proposta por Dinamarco. Tal contradição está na possibilidade do escopo político ou social permitir uma alteração na conduta do processo conforme a consciência o magistrado ao arrepio do que havia sido previamente estabelecido.

Essa violação ou mitigação das normas previamente estabelecidas quebra o equilíbrio de poderes dentro do Estado de Direito. Em comparação talvez exagerada, mas que mostra a quebra de equilíbrio, Nelson Nery Júnior trata da flexibilização da coisa julgada e relembra do Reich nazista:

Adolf Hitler assinou, em 15.07.1941, a lei para a Intervenção do Ministério Público no Processo Civil, dando poderes ao parquet para dizer se a sentença seria justa ou não, se atendia aos fundamentos do Reich alemão e aos anseios do provo alemão. (... ) interpretar a coisa julgada, se justa ou injusta, se ocorreu ou não, é instrumento do totalitarismo, de esquerda ou de direita, nada tendo a ver com democracia, com Estado Democrático de direito. Desconsiderar a coisa julgada é ofender a Carta Magna, deixando de dar aplicação ao principio fundamental do Estado Democrático de Direito (CF, 1°, caput).[45]

Por óbvio, não se está aqui afirmando que A instrumentalidade do processo é um plano articulado para implantação de um Estado totalitário. O que se está fazendo é apenas um alerta de que a abertura proposta por Dinamarco ao apontar a existência dos escopos sociais e políticos pode criar situação favorável à violação de normas estabelecidas. Vale dizer, ao supostamente perseguir os escopos políticos e sociais o magistrado pode está, na verdade, ignorando-os por completo.

A compreensão de tal crítica passa, assim, pela percepção do que é o Estado de Direito (e qual o seu verdadeiro escopo) e, na sequência, pela sua relação com a decisão judicial.

O Professor José Afonso da Silva traz lição de Carl Schimitt que ensina que a expressão "Estado de Direito" pode muitos significados distintos; tantos significados quanto o que se pode entender por Estado e tantos significados pelo que se pode entender por Direito.[46] Tradicionalmente, contudo, "Estado de Direito" remete ao conceito tipicamente liberal, marcada pela submissão à Lei, divisão de poderes e a garantia dos direitos individuais.[47]

Na sequência, sobreveio o Estado Social de Direito, que incorporou direitos sociais e econômicos, trazendo traços claros de que deve perseguir a justiça social. Entretanto, é possível notar que tal conceito ainda abarca estados totalitários, com a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Brasil de Vargas.[48]

Surge, então, novo aporte teórico à teoria do Estado, trazendo o elemento democrático ao conceito. José Afonso da Silva define que

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (CF/88, art. 3°, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1°, parágrafo único); participativa, por envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade;

Como se observa, está na essência do Estado Democrático de Direito (EDD) o respeito ao poder exercido pelo povo de forma democrática - no caso do Brasil, através de representantes eleitos. A participação do povo no processo decisório, mesmo que de forma indireta pela representação no poder legislativo, é, então, marco central do EDD. É esse modo de exercício de poder que normatiza o exercício de outra parcela de poder: a jurisdição. Assim, o poder legislativo, exercido pelo povo, estabelece as normas pelas quais todos se submeterão à jurisdição. Tem-se, então, as normas processuais.

Nessa perspectiva, fica evidente que o Estado Democrático de Direito possui um modo próprio de permitir o exercício de poder. Um, a democracia; dois, o cumprimento das regras do jogo, a legalidade.[49] O processo, então, que é instituído democraticamente e por lei, deve ser respeitado, sob pena de se violar pontos basilares do Estado Democrático de Direito.

O processo, então, pode ser visto como a organização do exercício da jurisdição, dando previsibilidade a todo o procedimento. Evita-se, assim, que o litígio se desenvolva em uma disputa desordenada, sem garantias e limites para as partes; evita-se, acima de tudo, a arbitrariedade ou parcialidade do órgão judicial.[50]

3.1.2 As decisões do juiz "instrumentalista"

Para Dinamarco, as leis estabelecem âmbito claro e abstrato de aplicação fática para quem a confecciona, mas a realidade, contudo, apresenta complexidade muito maior do que o legislador é capaz de imaginar. No enfrentamento desses fatos complexos, que não se aderem perfeitamente às normas, o magistrado deve fazer uso de suas convicções sócio-políticas, que devem refletir os anseios da sociedade. Acrescenta que o juiz não pode confundir imparcialidade com indiferença.[51]

Na sequência, o autor afirma que sempre houve distância entre a lei e os sentimentos da nação, "muito profunda e insuperável", a lei perde sua legitimidade e os magistrados podem prolatar sentenças contrariando tais dispositivos.[52]

Será mesmo que a suposta discordância da nação com determinada lei pode revogar dispositivos sem qualquer processo democrático? Mais: será que essa constatação de concordância pode ser constatada por um magistrado isoladamente, que vai deixar de aplicar lei democraticamente posta?

Ao que parece, não. Como já se demonstrou, a jurisdição é meio de exercício de poder, e o processo impõe as regras para tal exercício.[53] Dentro do Estado Democrático de Direito, o poder é exercido essencialmente de forma democrática,[54] sendo que o processo, então, deve respeitar as condições democraticamente estabelecidas. Ignorar isso possibilita que o magistrado escolha conforme sua conveniência o valor lhe for mais conveniente, ao arrepio do valor democraticamente positivado.

Tome-se, como exemplo, a coisa julgada. Segundo o art. 467, do Código de Processo Civil (CPC), "denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário." O professor Federico Marques esclarece que a coisa julgada é qualidade dos efeitos da prestação jurisdicional que torna a decisão imutável para as partes.[55] Eduardo Couture vai mais a fundo, e esclarece que nenhuma outra atividade do ordenamento jurídico (ou seja, nenhuma outra forma de exercício de poder) é irreversível, imutável e possui coercibilidade.[56]

Essas são as características mais básicas do conceito da coisa julgada que nos servem bem para análise que se propõe agora. Frise-se que Dinamarco não discorda da importância do respeita à coisa julgada:

É essencial à mecânica do poder, contudo, a imunização das decisões: assegurada a participação na gestação do ato, quando este se realiza e com isso é exercida a capacidade de decidir, tem-se 'a afirmação de uma decisão, isto é, o recrudescimento de um sistema que toma a decisão de não consentir na chegada de novas informações que possam levar a uma modificação da decisão'."[57]

O mesmo Dinamarco, contudo, afirma recentemente que cabe a "todos os graus jurisdicionais a tarefa de descoberta das extraodinariedades que devam conduzir a flexibilizar a garantia da coisa julgada."[58] Observa-se nessa postura de Dinamarco um conflito grave com os escopos político e social da jurisdição.

É que, primeiro, o sistema político baseado em um Estado Democrático de Direito jamais terá a pretensão de que um magistrado - em qualquer grau de jurisdição, conforme afirma o texto d'A instrumentalidade - possa relativizar os efeitos da coisa julgada - que, conforme se viu, é imutável por opção do sistema. A decisão dada ao final do processo, com fundamento nos dispositivos legais aplicados, seguiu estritamente as "regras do jogo" que foram democraticamente confeccionadas; permitir que o magistrado possa, conforme sua consciência, relativizar os efeitos e eficácia de tal decisão é permitir que o magistrado contrarie a opção democrática. É o magistrado-ditador.

A contradição com o escopo social é igualmente relevante. Segundo o próprio Dinamarco, "a autoridade da coisa julgada guarda relação com o escopo social, uma vez que a definitiva pacificação não se obtém enquanto não conseguida a 'imunização' das decisões judiciais."[59] A coisa julgada, então, mantém íntima relação com a capacidade da jurisdição de promover e manter a paz social; e a razão é simples, na medida em que se uma decisão ainda pode ser alterada, não qualquer segurança.

Nessa perspectiva, fica evidente que a afirmação de que o magistrado em todo grau de jurisdição deve estar atento às possibilidades de se relativizar a coisa julgada colide com o escopo social perseguido pela jurisdição. Por óbvio, um grupo ou uma pessoa específica pode estar descontente com o conteúdo de determinada decisão transitada em julgado, mas a sociedade, como um todo, confia que tal decisão será cumprida e seu conteúdo não será alterado.

Assim, em uma só penada de um magistrado singular, pode-se comprometer a confiança e, portanto, a imperatividade das decisões,[60] bem como abalando a segurança jurídica quanto àquela relação estabelecida.

3.2 CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: CONTRADIÇÃO NO ESCOPO JURÍDICO

A contradição a ser aqui apontada e as apontadas anteriormente são duas faces da mesma moeda. Os conflitos entre os escopos sociais e políticos podem ser enfrentados, em última análise, como uma baixa compreensão do que significa o Constitucionalismo Contemporâneo e o modo que ela flui pelo ordenamento jurídico[61] - ao contrário do acredito o autor, a Constituição fechou as possibilidades de intepretação do direito.

3.2.1 Elementos para compreensão da crítica

O surgimento da Constituição trouxe uma nova estrutura para o ordenamento jurídico e deslocou toda teoria do Direito. A regra, antes fonte e pressuposto do sistema, precisa se acomodar aos textos constitucionais do Estado Democrático de Direito.[62] Tem-se, assim, a constituição como base de todo ordenamento jurídico.[63]

O processo está inserido no contexto descrito acima. É na Constituição que se estabelece o devido processo legal. Nelson Nery Junior afirma, inclusive, que bastaria a Constituição ter consagrado o devido processo legal para que todos os outros princípios e direitos fundamentais dele decorressem.[64] A nota essencial desse fato é que a Constituição obrigou que a processualística fosse repensada, de forma a construir uma teoria da disciplina fundada também nos direitos fundamentais.[65]

Mas de que modo, exatamente, tais direitos fundamentais e o texto constitucional devem ser tratados dentro do ordenamento jurídico? A compreensão dos direitos fundamentais envolve o conhecimento sobre o modo e localização em que eles foram introduzidos nos ordenamentos jurídicos. O ponto de partida na constatação de tal modo é a evolução teórica do Direito no período entre guerras e, claro, sua continuidade no pós-guerra.

As questões políticas e sociais no início do século XX repercutiram no Direito para superar a concepção da lei estéril ao mundo e aos fatos, introduzindo um tanto de valores ao debate da ciência(s) jurídica(s). Esses valores foram, então, sendo introduzidos às Constituições do pós-guerra, e teorias próprias foram criadas para explicar esse fenômeno.[66]

Todo esse caminho percorrido é demasiadamente longo para este singelo trabalho, mas, como noticiado acima, é também essencial para compreender o lugar que os direitos fundamentais ocupam em um determinado ordenamento jurídico - especialmente no ordenamento brasileiro. Assim, para permitir o andamento natural do texto, o estado da arte sobre os aspectos mais relevantes será apresentando, dando-se conta de elementos históricos mínimos para permitir que a identificação do lugar da fala.

O elemento mais claro do Constitucionalismo Contemporâneo é a prevalência da Constituição sobre as demais normas. Desde Konrad Hesse e a sua Força Normativa da Constituição[67] não há mais (ou, ao menos, não se deveria) que se falar em normas constitucionais meramente programáticas ou com normatividade limitada.[68] O texto constitucional (e os direitos fundamentais ali contidos) é norma como todas as outras e hierarquicamente superior.

Os direitos fundamentais, então, deixaram de ser normas meramente programática ou de ter normatividade limitada, e foram foram questionados: são verdadeiros direitos subjetivos? Conforme bem observou Martin Borowski, o conceito de direito subjetivo é bastante debatido, mas não há consenso algum. O professor alemão, então, para responder ao questionamento lançado, ensina que direito subjetivo, antes de tudo, é uma posição jurídica. Em outras palavras: se o sujeito, caso tenha um direito descumprido ou violado, pode requerer o cumprimento ou a restauração de tal direito perante um magistrado. Nesse contexto, se a Constituição possui força normativa, e se essa força protege determinadas posições jurídicas, parece ser seguro afirmar que direito fundamentais são, sim, direitos subjetivos[69].

A mudança da normatividade do texto constitucional trouxe outro debate relevante para a teoria do Direito e para este artigo: a aplicação do texto constitucional como regra ou como princípio. Mais especificamente o debate se estabeleceu sobre o modo como aquele texto que continha apenas um objetivo a ser alcançado, mas nunca exigível, seria agora aplicável, já que não continha uma conduta específica.

Segundo o professor Virgílio Afonso da Silva, as regras garantem direitos definitivos enquanto que os princípios garantem direitos prima facie. Vale dizer, enquanto as regras deverão ser realizadas totalmente se aplicadas, os princípios podem possuir aplicação parcial. Há, no caso dos princípios, uma diferença entre a garantia prima facie e a garantia definitiva.[70]

Dworkin, quase no mesmo sentido, utilizou a expressão all-or-nothing para dizer que as regras aplicam-se no todo ou não se aplicam. Para os princípios, falou em dimensions of weight, ou seja, uma dimensão de peso na aplicação do princípio em um caso concreto; um princípio é tanto aplicado quanto seu peso no caso de uma colisão. As regras, por outro lado, ao se colidirem, excluem a validade de uma delas.[71]

O debate sobre regras e princípios poderia ainda se estender por longas páginas, enfrentando-se as inescapáveis lições de Robert Alexy,[72] bem como as críticas do professor Humberto Ávila.[73] O texto, contudo, precisa avançar.

A aplicação da teoria dos princípios aos direitos fundamentais criou uma dúvida teoricamente relevante e central. Quando dois direitos fundamentais colidem e o texto constitucional em objeto é aplicado como princípio, qual o limite para a restrição? A restrição ao direito fundamental pode ser total ou há um conteúdo essencial que não pode ser violado?

Antes mesmo de adentrar no debate sobre a teoria dos princípios, o professor José Afonso da Silva trazia conceitos de eficácia plena, contida ou indireta.[74] A solução do professor José Afonso traz elementos que precisavam ser superados, especialmente por considerar que alguns direitos fundamentais poderiam não ser concretizados simplesmente pela falta de uma lei infraconstitucional reguladora. Vale dizer, aquele direito teria aplicação limitada em si, e não limitado por outro direito fundamental.

O professor Virgílio Afonso da Silva, filho de José Afonso, tratou o tema com precisão e profundidade em sua tese de doutoramento, e superou a posição do pai. A obra publicada com o título "Direitos fundamentos: conteúdo essencial, restrições e eficácia" produziu conclusões importantes.

Virgílio adotou um modelo fundado em duas premissas. A primeira é de que é preciso separar os direitos fundamentais de suas restrições; ou seja, a restrição não é um elemento externo à estrutura dos direitos fundamentais.[75]Claramente, houve uma opção pela teoria externa, em detrimento da teoria interna.

Feita essa complementação, a segunda premissa é que o suporte fático de um direito fundamental não pode ser limitado prima facie. Deste modo, nenhuma conduta, estado ou posição jurídica pode ser excluída da proteção do direito fundamental.

3.2.2 A arbitrariedade instrumentalista

O tópico anterior deu um panorama singelo quanto à normatividade da Constituição e o objeto de suas normas. A normatividade de Constituição, os direitos fundamentais como direitos subjetivos (e não mais como meras previsões programáticas) e a inafastabilidade da proteção dos direitos fundamentais foram trazidas à evidência. Falta, contudo, explicar o que isso tem a ver com este trabalho.

Ao contrário do que se tentou demonstrar, Dinamarco acredita que a Constituição trouxe elementos de abertura para a jurisdição; dito de outro modo, o autor acredita que há na Constituição novos escopos sociais e políticos a serem perseguidos pela jurisdição. O magistrado, ao interpretar a Constituição, somente canalizaria a síntese axiológica da nação. E esses juízos axiológicos teriam o condão de causar mutação na Constituição.[76]

Como se observa, mais uma vez ao longo do texto, o modo que Dinamarco encara a jurisdição permite que dispositivos da qualquer lei, até mesmo da Constituição, possam ser relevados para que os escopos social e jurídico sejam alcançados.

O professor Lênio Streck faz constatação pertinente sobre esse comportamento:

Ainda hoje presenciamos defesas vibrantes de ativismos judiciais para 'implementar' e 'concretizar' os direitos fundamentais, tudo isso sempre retornando ao mesmo ponto: a ideia de que, no momento da decisão, o juiz tem um espaço discricionário no qual pode moldar sua 'vontade'.[77]

N'A instrumentalidade, o espaço discricionário e o molde da vontade constam dos escopos social e político. Vale dizer, o magistrado, conforme seu suposto conhecimento dos anseios sociais e políticos exercerá a jurisdição, que é poder, como já demonstrado, sem qualquer respaldo em lei - apenas fundado em suas convicções e impressões pessoais. Não é preciso lembrar que a percepção das exigências de tais escopos podem ser resultados exclusivos das opções ideológicas do magistrado. Em outras palavras, a ideologia particular de alguém pode alterar aquilo que está positivado em nossa Constituição.

É preciso que fique claro que nosso sistema jurídico, pautado em legislação produzida democraticamente, com dependência fundamental da Constituição (que possui normatividade, como demonstrado), não delega ao magistrado nenhum grau de liberdade para lidar com tais leis.[78]

Daí a contradição havida no escopo jurídico d'A instrumentalidade do processo: a força normativa da Constituição não permite o uso dos escopos social e política dê margem discricionária para atuação dos magistrados.

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Sobre o autor
Alessandro Marinho Guedes

Advogado. Membro Efetivo no Instituto dos Advogados do Brasil (Outubro/2018 a atual). Membro da Comissão de Estudos em Processo Civil na OAB/RJ (Junho/2019 a Novembro/2021) e IAB (Outubro/2018 a atual). Defensor Dativo no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ (Julho/2019 a Novembro/2021). Delegado na Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas na OAB/RJ (Janeiro/2016 a Dezembro/2018).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora para a conclusão do Curso de Direito Processual Civil, do Curso Fórum, sob orientação do Prof. Alexandre Freitas Câmara, para obtenção do título de Pós-Graduação em Direito Processual Cível.

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