A instrumentalidade do processo no novo CPC

Exibindo página 4 de 6
08/06/2016 às 09:26
Leia nesta página:

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretensão deste texto era demonstrar a importância d'A instrumentalidade do processo para o direito brasileiro, com as ressalvas devidas, e demonstrar que o Novo Código de Processo Civil foi influenciado pela obra do professor Dinamarco - seja acatando as ideias, seja acatando as críticas.

O primeiro passo para se alcançar tal objetivo foi dado no capítulo 1. Ali foram apresentadas as premissas e as conclusões da obra, sem quais seriam impossível compreender as críticas e perceber a influência no novo CPC.

Na essência, a ideia da instrumentalidade do processo começa pela publicização do processo e o centro do estudo na jurisdição. O autor rememora a evolução da ciência do processo: desde o sincretismo, passando pela autonomia do processo e chegando à instrumentalidade.

Como bem constatou o professor Dinamarco, a vinculação dos conceitos processuais aos conceitos de direito privado permaneceram existentes em todas as fases da evolução. Vale dizer, mesmo com o processo sendo autônomo ao direito material e estabelecendo-se certo consenso quanto à relação processual ser de direito público, o processo ainda era estudado sob a ótica do direito privado.

Como exemplo dessa situação, a obra indica que mesmo depois da autonomia, processualista baseavam seus estudos essencialmente no conceito de ação e suas condições. Vale dizer, no modo de agir do particular. Uma preocupação evidentemente privatista. No Brasil, a crítica foi ainda mais pontual, pois nosso sistema adota com elemento central o conceito de lide, que nasce do direito obrigacional; nada mais privatista para o autor.

Essa incongruência causa tensão interna ao sistema. Mas também se tem fatores externos ao processo. Efetivamente, no período pós-guerra, o direito passou a ser pressionado para que certos valores fossem levados em conta. Acompanhando todo o ordenamento jurídico, o processo precisou se abrir junto. Aí é que Dinamarco indica a publicização do processo, para que o exercício da jurisdição pudesse dar vazão às pressões da sociedade.

A jurisdição, nessa perspectiva, ganha importância para ser o centro do estudo do processo. Segundo Dinamarco, "a preponderância metodológica da jurisdição, ao contrário do que se passa com a preferência pela ação ou pelo processo, corresponde à preconizada visão publicista do sistema, como instrumento do Estado, que ele usa para o cumprimento de objetivos seus."[94]

Assim, n'A instrumentalidade, o Estado canaliza os desejos da sociedade, faz da jurisdição instrumento para exercício de poder com o objetivo de saciar tais desejos. Daí a relação entre jurisdição e poder: jurisdição é, na obra, instrumento que permite que o Estado exerça uma porção de seu poder uno.

Ao centrar o processo na jurisdição, e determinar a jurisdição como instrumento de poder, Dinamarco passa a argumentar que a jurisdição possui mais dois escopos além do jurídico, o social e o jurídico. Para ele, se a jurisdição é expressão do poder uno do Estado, ela deve perseguir os desejos sociais e políticos de desse Estado.

Assim, a coisa julgada, por exemplo, e todo o sistema de preclusões contribui para a pacificação social. Ou seja, a imutabilidade das decisões atende também ao escopo social, dando estabilidade para que a sociedade estabeleça suas relações que tenha repercussão jurídica.

Na mesma medida, o escopo político pode ser percebido, segundo o autor, na evolução da jurisprudência de nossos tribunais ao aumentar as possibilidades de cabimento de mandado de segurança e habeas corpus. Vale dizer, os valores políticos podem alterar o conteúdo do texto da norma.

O escopo jurídico, por fim, é o mais óbvio e se dedica ao desenvolvimento da técnica. O professor Dinamarco aponta que por ser o escopo mais óbvio, ele acaba sendo percebido como o único e isso causa graves distorções da aplicação direito (para o autor, é impensável o exercício da jurisdição sem que os escopos sociais e políticos sejam considerados). Em outras palavras, a análise pura e simples do escopo jurídico pode levar a decisões havidas como injusta segundo a ótica d'A instrumentalidade.

A instrumentalidade, nessa perspectiva pode ser percebida em dois aspectos: negativo e positivo. O negativo se dá com a compreensão que o processo não possui valor em si, a não ser como instrumento do direito material, racionalizando o aprimoramento da técnica para evitar exageros formais.

O positivo se estabelece com medidas proativas da jurisdição. A preocupação com a legitimidade para estar em juízo, o modo-de-ser do processo, os critérios de julgamento e a efetivação das decisões constituem essa percepção positiva da instrumentalidade.

A boa intenção e influência que causou no ordenamento jurídico brasileiro não significam que a instrumentalidade do processo não possui incoerências. O capítulo 1 se dedicou a duas delas. A primeira demonstrou que sempre que o magistrado ir além dos limites da lei, sob o pretexto de dar ouvidos aos escopos social e político, ele estará entrando em contradições com tais escopos.

É que, politicamente, nosso ordenamento se estrutura como um Estado Democrático de Direito, em que a lei posta de forma democrática deve prevalecer. Essa foi a escolha da sociedade. Quanto, contudo, um magistrado vai além do que a lei permite, ele está tomando uma decisão individual contrariando aqui que democraticamente se estabeleceu. Vale dizer, o escopo político é violado, por essa decisão não é democrática, e o escopo social é violado, porque não se respeitou a opção da sociedade em se organizar a partir da democracia.

A segunda contradição é jurídica. Dinamarco entende que a instrumentalidade abre o processo aos valores. Mas quais valores? A obra não enfrenta a necessidade de se respeitar a normatividade da Constituição, e confunde direitos fundamentais com liberdade para atuação dos magistrados. E isso significa dizer que o magistrado instrumentalista que aplica valores (e não leis) está sempre contrariam a Constituição, seja por falta de fundamentação, seja por não compreender a normatividade do texto constitucional.

Todos esses elementos desaguaram no novo código de processo civil. Como objeto de análises, foram escolhidos três exemplos. Primeiro, tratou-se do incentivo que o nosso código da autocomposição, inclusive obrigado à criação de estrutura própria para tanto. Nesse ponto, percepção que o que Dinamarco escreveu na década de oitenta influenciou o legislador trinta anos depois.

Depois, tratou-se de simplificações processuais, citando-se a transformação dos embargos infringentes em técnica de julgamento e o fim do processo cautelar. Mais uma vez, há tanto de instrumentalidade nessas alterações.

Por fim, verificou-se que o artigo 499 do código (atualmente transformado na Lei Ordinária 13105/2015 em 16 de março de 2015) limita as possibilidades de fundamentação dos magistrados, de modo que a utilização dos escopos social e político serão mitigados, privilegiando-se a lei - o que é certo, enquanto estivermos em um Estado Democrático de Direito. Aqui, claramente, os ensinamentos d'A instrumentalidade foram aperfeiçoados.

Tudo considerado, o sistema processual brasileiro não seria o mesmo sem a instrumentalidade do processo. A influência é tal grande que, quase três décadas depois, a obra do professor Dinamarco influencia a produção de normas processuais e proporciona debates acadêmicos pertinentes.


REFERÊNCIAS

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. Do formalismo no processo civil: proposta de formalismo-valorativo. 4 rev., atual. e aumentada São Paulo: Saraiva, 2010.

ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In: Leituras complementares de Processo Civil. Org. Fredie Didier Jr. 6. Ed. Salvador: JusPodvim, 2008.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1993.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. Revista de Processo, Rio de Janeiro, v. 28, p.9-38, jun. 2003.

DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

DWORKIN, Ronald. O direito de liberdade. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. 8. ed. Campinas: Bookseller, 2006.

FAZZALARI, Elio. Processo: teoria generale: Novíssimo digest italiano. Torino, 2006.

HART, Herbert. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: RT, 2011.

MULLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: RT, 2011.

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil: Volume IV. Campinas: Millennium, 1999.

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na constituição federal. 10. ed.São Paulo: Rt, 2010.

NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos. 6. ed. São Paulo: RT, 2004.

PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do Processo e Devido Processo Legal. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n°. 1, 2001. Disponível em: < http://www.direitopublico.com.br >.

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012. Tradução de Antônio Francisco Sousa.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei; LAMY, Eduardo de Avelar. Teoria geral do processo. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil: Processo Cautelar (Tutela de Urgência). 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: O juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012.

TASSINARI, Clarissa. Ativismo judicial: uma análise da atuação do Judiciário nas experiências brasileira e norte-americana. 2012. 139 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Departamento de Programa de Pós-graduação em Direito, Unisinos, São Leopoldo, 2012.

WATANABE, Kazuo. Cognição no processo civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Alessandro Marinho Guedes

Advogado. Membro Efetivo no Instituto dos Advogados do Brasil (Outubro/2018 a atual). Membro da Comissão de Estudos em Processo Civil na OAB/RJ (Junho/2019 a Novembro/2021) e IAB (Outubro/2018 a atual). Defensor Dativo no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ (Julho/2019 a Novembro/2021). Delegado na Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas na OAB/RJ (Janeiro/2016 a Dezembro/2018).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora para a conclusão do Curso de Direito Processual Civil, do Curso Fórum, sob orientação do Prof. Alexandre Freitas Câmara, para obtenção do título de Pós-Graduação em Direito Processual Cível.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos