3. A recepção das leis anteriores
Não há dúvidas que toda legislação infraconstitucional anterior à Carta Magna que disciplina o Sistema Financeiro Nacional foi recepcionada pela Constituição de 1988. Contudo, a doutrina era divergente quanto ao tipo de lei, ordinária ou complementar, que iria dispor sobre a futura revogação das matérias tratadas nessas leis. A divergência ocorre em dois pontos: quanto à existência ou não de hierarquia entre lei complementar e ordinária e quanto às espécies de mercados que estão agasalhados pelo art. 192, conforme explicado a seguir.
3.1. Divergência quanto à existência de hierarquia entre lei complementar e ordinária
Para uma parte da doutrina, a lei complementar é hierarquicamente superior à lei ordinária, portanto qualquer dispositivo de lei daquela natureza ou de lei recepcionada como daquela espécie só pode ser revogado por outra lei complementar, mesmo que a matéria tratada nesse dispositivo não seja disposta expressamente como matéria de natureza complementar na Carta Magna. Nesse sentido, dispõe Manuel Gonçalves Ferreira Filho:
"É de se sustentar; portanto, que a lei complementar é um tertium genus interposto, na hierarquia dos atos normativos, entre a lei ordinária (e os atos que têm emendas). Não é só, porém, o argumento de autoridade que apóia essa tese; a própria lógica o faz. A lei complementar só pode ser aprovada por maioria qualificada, a maioria absoluta, para que não seja, nunca, o fruto da vontade de uma minoria ocasionalmente em condições de fazer prevalecer sua voz. Essa minoria é assim um sinal certo da maior ponderação que o constituinte quis ver associada ao seu estabelecimento. Paralelamente, deve-se convir, não quis o constituinte deixar ao sabor de uma decisão ocasional a desconstituição daquilo para cujo estabelecimento exigiu ponderação especial. Alias, é um princípio geral de Direito que, ordinariamente, um ato só possa ser desfeito por outro que tenha obedecido à mesma forma" (56).
Para outra parte da doutrina, entre eles José A. da Silva [57], não existe superioridade entre leis complementares e ordinárias, somente há reserva material constitucionalmente estabelecida para as primeiras. Portanto, conforme apontam os incisos do artigo 192 da Carta, não é qualquer matéria do sistema financeiro que necessita de lei complementar, somente aquelas que criam a estrutura, dão ordem e unidade à atividade financeira (constituição, vinculação, organização e competência das instituições integrantes). As matérias relacionadas à dinâmica do sistema financeiro, que tratam de atividades de mercado, podem ser disciplinadas em lei ordinárias. Nesse diapasão, ensina Cristiane Derani:
"Os integrantes do Sistema Financeiro, com a disciplina legal de sua instituição, organização e funcionamento, atuam no mercado. As relações de mercado destas instituições não constituem o Sistema Financeiro. São manifestações dos integrantes deste Sistema, construídas numa complexa interação contratual dos sujeitos que formam o Sistema e destes com os demais agentes econômicos. [...] Aquilo que diz respeito à dinâmica desempenhada a partir de edificação dessa ordem e unidade, ou seja, além dela, não é matéria de lei complementar. Não cabe à lei complementar disciplinar o desenvolvimento das atividades do Sistema Financeiro que são atividades do mercado" [58].
Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, em várias de suas decisões, vem se posicionado que não há hierarquia entre as leis complementares e ordinárias. Relativamente ao Sistema Financeiro Nacional, por exemplo, consoante disposto na Adin 449-2/DF [59], esse Egrégio Tribunal concluiu que as matérias relativas aos servidores do Banco Central, por não estarem expressamente dispostas no art. 192 da Carta, não precisariam ser disciplinadas por lei complementar, portanto, a esses servidores se aplicaria o regime jurídico disposto na Lei n.º 8.112/90, estando revogados o § 4º do art. 52 da Lei n.º 4.595/64 [60] e seria inconstitucional o art. 251 da Lei 8.112/90 [61]. Em outro caso, ao julgar a Adin n.º 2.223-7 [62], na qual se discutia a inconstitucionalidade de vários artigos da Lei n.º 9.932, de 20.12.1999, que dispõe sobre a transferência de atribuições do Instituto de Resseguro do Brasil (IRB) para a Superintendência de Seguro Privado (Susep) e dá outra providências, entendeu que os incisos constantes do art. 3º desta Lei não seriam inconstitucionais, pois os mesmos traziam matérias que não exigem lei complementar (não dispunha sobre a autorização e funcionamento dos estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como do órgão oficial fiscalizador, conforme dispunha o inciso II do art. 192).
3.2. Divergência quanto às espécies de mercados agasalhados pelo art. 192 da Carta
Dentro da última corrente doutrinária disposta no subitem anterior, existem dois ramos com posições divergentes quanto às espécies de mercados que estariam agasalhados pelo art. 192 da Constituição, conforme a seguir.
Para o primeiro ramo, embora possa parecer que o artigo em tela tratasse de todo Sistema Financeiro Nacional privado, mercados financeiro e de capitais [63], o mesmo só tratava do primeiro, já que o art. 192 não dispunha expressamente sobre o segundo. Nessa esteira, Simone L. Nunes se posiciona: "Não obstante a legislação infraconstitucional e a doutrina expressamente determinarem que o sistema financeiro abrange os mercados financeiro e de capitais, na prática é comum referir-se ao mercado financeiro como "sistema financeiro", aliás, a Constituição Federal de 1988 - editada após a legislação infraconstitucional já citada - intitula seu Capítulo VI, "Do Sistema Financeiro Nacional", trazendo nele disposições apenas sobre o mercado financeiro, sendo que o mercado de capitais sequer foi citado." [64].
Para o outro ramo doutrinário, tanto o mercado financeiro quanto o de capitais estariam agasalhados no artigo em epígrafe, já que o sentido completo da expressão "sistema financeiro" abarca os dois mercados e o caput traz a expressão "inclusive", por conseguinte os incisos seguintes teriam caráter exemplificativo, numerus apertus. Nesse diapasão, José A. da Silva [65] ensina que outras instituições não citadas nos incisos do artigo em tela também se subordinam ao disposto no mesmo, exatamente por esses incisos serem exemplificativos, citando, entre elas, instituições do mercado de capitais: bolsa de valores e as pessoas físicas ou jurídicas que, por conta própria ou em nome de terceiros, exerçam atividade de compra e venda de títulos e valores mobiliários.
3.3. Interpretação adotada para o artigo 192
Além da interpretação disposta no parágrafo anterior ser a mais racional, vale ressaltar que, pelo menos na origem do artigo em tela, o mercado de capitais deveria ser estruturado na lei complementar do seu caput, pois um dos constituintes responsáveis pelo mesmo, o então Deputado Francisco Dornelles, ao propor o Projeto de Lei Complementar n.º 47/91 para regulamentá-lo, que se encontra definitivamente arquivado, dispunha também sobre o mercado de capitais, conforme a seguir: "Art. 1º - O Sistema Financeiro Nacional estruturado e regulado pela presente Lei Complementar de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, é constituído o Banco Central do Brasil, das demais instituições financeiras públicas e privadas e das instituições das áreas de seguro, capitalização, previdência privada e mercado de capitais". Como se pode notar, Francisco Dornelles não proporia uma lei complementar que tratasse também do mercado de capitais se entendesse que esse mercado estivesse fora do artigo 192 da Carta.
Do exposto, conclui-se que a melhor interpretação do artigo em epígrafe é aquela que agasalha tanto o mercado financeiro quanto o de capitais. Todavia, não é qualquer matéria que deverá ser tratada na lei complementar disposta no mesmo, somente aquelas relacionadas à estrutura, à ordem e à unidade do Sistema Financeiro Nacional.
4. O princípio da função social como base para uma crítica à doutrina que dispunha que o art. 192. da Carta Magna só se aplica ao mercado financeiro
Desde a promulgação da Carta Magna, Celso R. Bastos e Ives Gandra tinham a seguinte posição quanto ao art. 192: "Essa inclusão no texto Constitucional, consequentemente, acarreta mais rigidez a uma atividade, cujas principais características são o dinamismo e a flexibilidade de adaptação à velocidade de mudanças do mercado" [66]. Realmente, o mercado financeiro mundial atual exige esse dinamismo, pois, a cada dia, surgem novas espécies de operações, e, por conseguinte, a necessidade de um conjunto sistematizado de leis capazes de protegerem o próprio sistema financeiro de um país das vulnerabilidades ou outros riscos que não são acolhidos pela legislação vigente.
Se por um lado, o artigo em tela causava rigidez a essa atividade, por outro, o mesmo era e continua sendo uma garantia aos cidadãos comuns que essa atividade obedeceria aos ditames dos princípios nele contido. Como conseqüência da importância desses princípios, surge uma premente necessidade: dever-se-ia também garantir, constitucionalmente, a aplicação do princípio da função social ao mercado de capitais, pelas seguintes razões:
a)o setor produtivo depende desse mercado, quer por meio de investimento direto em ações, quer por meu meio da atuação de especuladores [67] - principalmente os que atuam no mercado de derivativos - ao assumirem riscos não desejados pelo setor;
b)existe uma tendência dos fundos de pensão, que atuam primordialmente nesse mercado, se desenvolverem muito nos próximos anos no nosso país, e esses têm também, de fato, uma função social, qual seja, devem garantir uma aposentadoria digna para quem não pode mais trabalhar.
5. Uma análise crítica da legislação infraconstitucional do Sistema Financeiro Nacional anterior à Emenda Constitucional n.º 40/03
As mudanças impostas pela globalização ao sistema financeiro resultaram na mudança significativa nas normas da maioria dos países desenvolvidos, mais intensamente a partir da década de oitenta. Nos países emergentes, a situação não foi diferente, embora tenham ocorrido a posteriori (início da década de noventa).
No Brasil, a falta da elaboração da lei complementar disposta no caput do art. 192, a qual deveria conter a estrutura dessas mudanças, atrasou essas modificações, as quais começaram a ocorrer com maior intensidade a partir dos meados da década de noventa, embora existam mudanças datadas do final da década anterior. Como conseqüência, de acordo com a posição adotada no subitem 3.3, a necessidade atropelou o Direito e muitas dessas mudanças que deveriam estar na lei complementar em tela foram feitas ao arrepio da Carta Magna, por meio de lei ordinária ou medida provisória. São exemplos:
a)a alteração da composição do CMN [68]. Essa composição foi inicialmente ampliada pela Lei nº 8.056, de 28.6.1990, que incluiu o Presidente da CVM, o do Banco do Nordeste do Brasil e um representante da classe trabalhadora. Posteriormente foi reduzida para Ministro da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão [69] e Presidente do Banco Central, pelas Medidas Provisórias nº 542/94, 566/94, 596/94, 635/94, 681/94, 731/94, 785/94, 851/94, 911/95, 953/95, 978/95, 1.004/95 e 1.027/95 e, finalmente, pela Lei nº 9.069, de 20.6.1995 (conforme estabelece o seu artigo 8º);
b)aumento de competência do Bacen, por meio:
I-do art. 19 da Lei nº 7.730, de 31.1.1989, que acresceu um novo inciso III ao artigo 10, da Lei nº 4.595/64 e renumerou o restante dos incisos deste. O inciso introduzido atribuiu ao Banco Central competência para determinar o recolhimento de até cem por cento do total de depósitos à vista e de até sessenta por cento de outros títulos contábeis das instituições financeiras, seja por meio de subscrição de Letras ou OTN ou compras de títulos da Dívida Pública Federal;
II-dos artigos 4º, 5º, 8º e 9º da Lei nº 9.447/97, de 14.3.1997, que tratam dos regimes de administração especial temporária (Raet), intervenção e liquidação extrajudicial, que serão aplicados pelo Banco Central;
c) da Lei nº 10.401/02, de 7.1.2002, que alterou os artigos 5º e 6º da Lei nº 6.385/76, transformando a CVM numa agência reguladora.
As alterações da estrutura do CMN refletiram no perfil do órgão em comento, e, como conseqüência, nos normativos emitidos pelo mesmo. Com a redução para três membros, o CMN passou a ser um órgão menos político e mais técnico, portanto, teoricamente, mais ágil, mais adequado às exigências de um mercado financeiro moderno. Contudo, todas essas leis posteriores à promulgação da Carta e essas medidas provisórias estão eivadas de flagrante inconstitucionalidade, já que somente lei complementar pode tratar da revogação dos artigos que dispõem sobre a constituição, a vinculação, a organização e a competência do CMN (pois estão relacionados à estrutura, à ordem e à unidade do Sistema Financeiro Nacional).
Quanto ao aumento de competência do Bacen, a alteração da Lei nº 7.730/89 forneceu ao Banco Central instrumentos para controlar o total de moeda posta em circulação, e, por conseguinte, meios para o controle da infração, sem necessitar da interferência de outros órgãos do Poder Executivo. Relativamente aos artigos da Lei nº 9.447/97, os mesmos tornaram essa autarquia mais célere para a identificação e saneamento das instituições que apresentem problemas de saúde financeira e que podem causar riscos sistêmicos [70]. Todavia, essas atribuições não são simplesmente atividades de mercado ou atividades relacionadas à dinâmica do sistema. São atribuições que, utilizadas ou não, alteram substancialmente o Sistema Financeiro Nacional. Essas matérias, portanto, dizem respeito à estrutura, à ordem e à unidade desse sistema, são matérias que deveriam ser tratadas em lei complementar, conforme dispõe o inciso IV do art. 192, da Carta Ápice.
A mudança da alínea "c" faz parte de uma política de fortalecimento da CVM, a qual foi transformada em agência reguladora nos moldes das agências já existentes, tais como Anatel, Aneel e ANP. Embora necessária, essa mudança é profunda demais para ser realizada por lei ordinária, já que altera a estrutura do mercado de capitais, portanto é inconstitucional também.
Em que pese as posições esposadas neste item e no subitem 2.2.2, tem-se a consciência que, possivelmente, as decisões do STF e STJ sobre essas matérias serão políticas, irão privilegiar a razoabilidade jurídica (por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse coletivo) em detrimento da racionalidade lógico-formal, o que significa dizer que as teses levantadas provavelmente não serão aceitas, ou no caso das inconstitucionadades apontadas, se aceitas, aplicar-se-á o art. 27 da Lei nº 9.868, de 10.11.1999, que permite a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que a mesma só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento determinado. Relativamente a quaisquer análises de constitucionalidade, Inocêncio Mártires Coelho conclui também que as mesmas estão sujeitas a juízos políticos [71], observando que tal fato se daria "porque assim exige a natureza das coisas e porque a vida do direito não tem sido lógica, tem sido experiência..." [72]. Contudo, essas inconstitucionalidade e ilegalidades desveladas servem para corroborar a demonstração de que a EC nº 40/03 é vantajosa para o direito pátrio, conforme será concluído no item 7.