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Os limites constitucionais do poder punitivo do Estado

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AMPLA DEFESA

O Estado tem o dever de proporcionar a todo acusado condições para o pleno exercício de seu direito de defesa, possibilitando-o trazer ao processo os elementos que julgar necessários ao esclarecimento da verdade. Esta defesa há de ser completa, abrangendo não apenas a defesa pessoal (autodefesa) e a defesa técnica (efetuada por profissional detentor do ius postulandi), mas também a facilitação do acesso à justiça, por exemplo, mediante a prestação, pelo Estado, de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.

Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável".

Com bastante razão e proficiência, afirma o ilustre doutrinador que a ampla defesa é o cerne ao redor do qual se desenvolve o Processo Penal. Não se trata de mero direito, mas de uma dupla garantia: do acusado e do justo processo. É uma condição legitimante da própria jurisdição.

Scarance Fernandes assevera que, embora estejam inegavelmente relacionados, não há relação de primazia ou derivação entre os princípios da ampla defesa e do contraditório, sendo ambos decorrentes da garantia constitucionalmente assegurada do devido processo legal.

Convém salientar que o princípio constitucional da ampla defesa, expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Constituição Federal, que assegura aos "litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes", não se confunde com a plenitude de defesa, instituto consagrado no artigo 5°, inciso XXXVIII, letra "a", da Carta Magna de 1988. Esta, na verdade, encontra-se dentro do princípio maior da ampla defesa, consubstanciando-se na garantia da apreciação de todas as teses e argumentos despendidos aos jurados e também ao magistrado.

O princípio da ampla defesa tem reflexos importantes dentro do direito processual penal, norteando a aplicação das regras infraconstitucionais visando ao fiel respeito e salvaguarda dos preceitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal. Neste diapasão, alguns dispositivos do nosso Código de Processo Penal de 1941 carecem ser analisados e relidos sob a nova ótica da Lei Maior, a fim de que as garantias da Constituição cidadã sejam plenamente exercitadas.

Assim, têm entendido a doutrina e a jurisprudência que, para a garantia da ampla defesa, o profissional constituído pelo réu deve ser sempre intimado para a realização de todos os atos processuais, contrariando a regra do artigo 501 do CPP. De igual forma, devem ser intimados acusador, réu e defensor para efeitos de trânsito em julgado da sentença condenatória, pouco importando, no caso do acusado, se este se encontra preso ou não. Isso revela uma clara e necessária releitura do artigo 392 do mesmo diploma legal. Ainda em face do princípio da ampla defesa, o sigilo previsto no artigo 20 do CPP não pode ser oposto ao advogado do suspeito e a regra do artigo 21, que permitia a incomunicabilidade do indiciado, encontra-se revogada.

Questão afeta à defesa e que é bastante controvertida na jurisprudência é a possibilidade ou não de nulidade decorrente da falta de requisição de acusados presos para os atos de instrução. Predomina o posicionamento de que é possível a argüição de nulidade relativa do processo se ficar provado o prejuízo para a defesa, uma vez que o exercício da autodefesa não teria sido efetivo.

Outra controvérsia envolvendo a influência do princípio da ampla defesa no Código de Processo Penal diz respeito a possibilidade ou não de se seguir o processo sem as alegações finais, razões ou contra-razões de apelação quando o defensor, muito embora regularmente intimado, deixa de oferecê-las no prazo legal. Sobre a ausência de alegações finais, concluiu o STJ tratar-se de peça essencial da defesa e, portanto, não apresentada pelo advogado constituído, deve o Juiz, antes de prolatar a sentença, nomear defensor para fazê-lo (RHC 1682-SP). No tocante às contra-razões, o STF decidiu que a não apresentação das mesmas em recurso do Ministério Público, havendo risco de ser agravada a situação do réu, constitui violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa (HC 71.234-RS).

Importante inovação na garantia do direito de defesa foi trazida ao ordenamento jurídico pátrio pela Lei n° 9.271 de 17/04/1996, que alterou o Código de Processo Penal, dando nova redação aos artigos 366 e 368. Em síntese, a alteração do referido dispositivo representou o fim da visão tradicional de que o acusado poderia ser condenado à revelia, prestigiando a atuação efetiva e concreta do contraditório e da ampla defesa. Sob este prisma, dispõe o caput do artigo 366 que "se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312.". Outrossim, determina o artigo 368 que "estando o acusado no estrangeiro, em lugar sabido, será citado mediante carta rogatória, suspendendo-se o curso do prazo de prescrição até o seu cumprimento".


ACUSATÓRIO

Julio Fabbrini Mirabete ensina que são três os sistemas processuais utilizados na evolução histórica do direito, distinguindo-os segundo as formas com que se apresentam e os princípios que os informam. São eles o sistema inquisitivo, o acusatório e o misto.

O sistema inquisitivo teve suas raízes na organização política do império romano, onde se admitia ao juiz iniciar o processo ex officio. Foi revigorado na Idade Média e, a partir do século XV, por influência do Direito Penal da Igreja, alastrou-se pelo continente europeu e só entrou em declínio com a Revolução Francesa. Verifica-se, na verdade, que o sistema inquisitivo não é um legítimo processo de apuração da verdade, mas, nas palavras de Mirabete, "uma forma auto-defensiva de administração da justiça". Isso porque nele inexistem regras de igualdade e liberdade processuais, desenrolando-se, em regra, secretamente, por impulso oficial e em busca da rainha das provas, a confissão, permitindo-se, para tanto, o uso da tortura.

No processo inquisitivo, as funções de acusar, defender e julgar encontram-se concentradas em um único órgão, o juiz. Neste contexto, nenhuma garantia é oferecida ao réu, transformando-o em mero objeto do processo. Falta ao referido sistema elementos essenciais do denominado due process of law, como, por exemplo, a publicidade dos atos processuais, a imparcialidade do juiz e as garantias do contraditório e da ampla defesa.

O sistema acusatório, em contrapartida, implica o estabelecimento de uma relação processual triangular (actum trium personarum), onde o órgão jurisdicional encontra-se como imparcial aplicador da lei e as partes acusadora e acusada estão em pé de igualdade, asseguradas as garantias do contraditório e da ampla defesa. Este sistema teve origem na Inglaterra e na França, após a revolução, e é hoje o adotado na maioria dos países americanos e em muitos da Europa.

Segundo Tourinho Filho, as principais características do sistema acusatório são:

"a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo; excepcionalmente permite-se uma publicidade restrita ou especial; d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e, logicamente, não é dado ao juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois non debet licere actori, quod reo non permittitur; g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou um órgão do Estado".

Por fim, o sistema misto, também chamado de sistema acusatório formal, combina elementos acusatórios e inquisitivos, em maior ou menor medida, dependendo do ordenamento jurídico em que é aplicado. Em regra, constitui-se de uma instrução inquisitiva, onde estão compreendidas a investigação preliminar e a instrução preparatória, e de um juízo contraditório a posteriori, quando do julgamento. É ainda o sistema utilizado em alguns países da Europa e até da América Latina, como é o caso da Venezuela.

A Lei Maior de 1988 assegurou, entre nós, a utilização do sistema acusatório no processo penal, uma vez que estabelece os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV), determina que a ação penal pública deve ser privativamente promovida pelo Ministério Público (art. 129, I), garante o princípio do juiz natural ou constitucional (arts. 5°, LIII, e 92 a 126) e também assegura a publicidade dos atos processuais, facultando à lei sua restrição apenas quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (art. 5°, LX), dentre outras normas e princípios que visam à imparcialidade do órgão jurisdicional e à igualdade e à liberdade das partes acusadora e acusada na seara da apuração da verdade real.


JUIZ NATURAL

O princípio do juiz natural ou juiz constitucional, também chamado de princípio do juiz competente, no direito espanhol, e princípio do juiz legal, no direito alemão, originou-se, historicamente, no ordenamento anglo-saxão, desdobrando-se, a posteriori, nos constitucionalismos norte-americano e francês. Entre nós, o referido princípio inseriu-se deste o início das Constituições.

Trata-se de princípio que garante ao cidadão o direito de não ser subtraído de seu Juiz Constitucional ou Natural, aquele pré-constituído por lei para exercer validamente a função jurisdicional.

Assegura expressamente a Constituição Federal que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (artigo 5°, inciso LIII) e que "não haverá juízo ou tribunal de exceção" (artigo 5°, inciso XXXVII). Outrossim, determina a Lei Maior que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito" (artigo 5°, XXXV).

Dentro deste contexto, buscam os dispositivos constitucionais impedir que pessoas estranhas ao organismo judiciário exerçam funções que lhe são específicas (salvo, é claro, quando houver autorização da própria Constituição Federal nesse sentido, p.ex., Senado – artigo 52, incisos I e II) e proscrever os tribunais de exceção, aqueles criados post factum. Assim, nenhum órgão, por mais importante que seja, se não tiver o poder de julgar assentado na Constituição Federal não poderá exercer a jurisdição. Tem-se, salienta a doutrina, a mais alta expressão dos princípios fundamentais da administração da justiça.

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Fernandes Scarance afirma que a dúplice garantia assegurada pelo cogitado princípio – proibição de tribunais extraordinários e de subtração da causa ao tribunal competente, desdobra-se em três regras de proteção: "a) só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal; b) ninguém pode ser julgado por órgão instituído após o fato; c) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja".

Acentua Vicente Greco Filho que "não se admite a escolha de magistrado para determinado caso, nem a exclusão ou afastamento do magistrado competente; quando ocorre determinado fato, as regras de competência já apontam o juízo adequado, utilizando-se, até, o sistema aleatório de sorteio para que não haja interferência na escolha".

É bem verdade que há casos especialíssimos de deslocação da competência, como no caso previsto no artigo 424 do CPP (desaforamento no procedimento do tribunal do júri), entretanto, entende-se que, por estarem determinados pelo interesse público e da própria justiça, não ferem o princípio do juiz natural, pois o intuito é a busca do julgamento justo.

Grinover, Scarance e Gomes Filho, além de outros doutrinadores, defendem que com a garantia do juiz natural assegura-se a imparcialidade do órgão jurisdicional, não como atributo do juiz, mas como pressuposto de existência da própria atividade jurisdicional. Por isso, afirmam que sem o juiz natural não há jurisdição, pois a relação jurídica não pode nascer.

Os mesmos estudiosos asseveram que além de o julgamento da causa ser de incumbência do juiz natural, é mister que perante este também seja instaurado e desenvolvido o processo, não sendo possível o aproveitamento dos atos instrutórios realizados por juiz constitucionalmente incompetente. Neste diapasão, os artigos 108, §1°, e 567 do CPP devem ser relidos a fim de se adequarem à garantia do juiz natural, restringindo-se sua aplicação apenas aos casos de incompetência infraconstitucional. Em se tratando de juiz constitucionalmente incompetente, não pode haver aproveitamento dos atos, não-decisórios e decisórios, uma vez que o artigo 5°, inciso LIII, da Lei Maior refere-se à garantia de que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente" (grifei).

De igual forma, também carece de releitura o artigo 564, I, do CPP, que dispõe ser caso de nulidade os atos praticados por juiz incompetente. Como já mencionado, a garantia do juiz natural é um pressuposto de existência da atividade jurisdicional. Sob este prisma, os atos praticados por juiz constitucionalmente incompetente são inexistentes e não nulos. Em decorrência disso, o processo e a sentença, eventualmente prolatada, são juridicamente inexistentes.

Questão interessante é saber se o réu, submetido a julgamento por juiz constitucionalmente incompetente, estaria sujeito a nova persecução penal sobre os mesmos fatos, uma vez considerando-se que a sentença prolatada seria inexistente e, como tal, não estaria tecnicamente suscetível à formação da coisa julgada.

Grinover, Scarance e Gomes Filho entendem que "o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis, fazendo prevalecer o dogma do ne bis in idem, impedindo nova persecução penal a respeito do fato em tela". Esclarecem os insignes estudiosos que, não obstante o princípio do ne bis in idem estar tecnicamente ligado ao fenômeno da coisa julgada e que juridicamente inexistente a sentença esta não poderia transitar em julgado, no terreno da persecução penal estão em jogos valores preciosos do indivíduo, como sua vida, sua liberdade, sua dignidade, e que, nesse particular, o ne bis in idem assume dimensão autônoma, impedindo nova persecução penal do réu pelos mesmos fatos já julgados. Observam os autores que a garantia do juiz natural é erigida em favor do réu e não em detrimento aos direitos deste.

Acerca dos chamados tribunais ou juízos de exceção, assim considerados aqueles criados após o fato a ser julgado, a proibição dos mesmos não abrange o impedimento da criação de justiça ou vara especializada, pois, nestes casos, não há criação de órgãos, mas simples atribuição de órgãos já inseridos na estrutura judiciária, fixada na Constituição Federal, para julgamento de matérias específicas, objetivando a melhoria na aplicação da norma substancial.

Cintra, Grinover e Dinamarco salientam a necessidade de se distinguir tribunais de exceção de justiças especiais, como a Militar, a Eleitoral e a Trabalhista, lembrando que estas são instituídas pela Lei Maior, com anterioridade à prática dos fatos a serem por elas apreciados e, portanto, não constituem ofensa ao princípio do juiz natural.

Inclui-se na proibição dos tribunais de exceção os foros privilegiados, criados como favor pessoal, mas exclui-se as hipóteses de competência por prerrogativa de função, onde é levada em conta a função exercida pelo réu e não a sua pessoa, inexistindo, neste caso, favorecimento ou discriminação.

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Sobre o autor
Flúvio Cardinelle Oliveira Garcia

Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Católica de Brasília (1995). Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2002). Pós-graduado em Direito Eletrônico e Tecnologia da Informação pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2008). Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2008). Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade do Paraná. Delegado de Polícia Federal. Chefe do Núcleo de Repressão ao Crimes Cibernéticos da Polícia Federal do Paraná, com ênfase investigativa para os delitos de ódio e de pornografia infantojuvenil, mormente praticados pela Internet. Membro do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI), do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE) e do High Technology Crime Investigation Association (HTCIA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira. Os limites constitucionais do poder punitivo do Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 291, 24 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4994. Acesso em: 22 dez. 2024.

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