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RJ: calamidade financeira e kleptogerenciamento da coisa pública. Pelo fim da reeleição

23/06/2016 às 11:32
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Na base dos problemas nacionais (incontáveis) o destaque vai para o kleptocratismo, que é o regime de governança do Estado que enseja o enriquecimento corrupto ou favorecido das oligarquias/elites políticas e econômicas com o dinheiro público.

O mundo está em crise, o petróleo está em crise, o Brasil está em crise, mas é a roubalheira do dinheiro público que ocupa lugar de destaque nessa encrenca da calamidade financeira do Rio de Janeiro (que é só a ponta do iceberg das crises dos Estados). Depois da porta arrombada, sempre queremos saber duas coisas: como se chegou a essa situação (quais medidas preventivas não foram tomadas) e quem são os culpados.

A crise econômica e, particularmente, a crise do petróleo (ambas mundiais) contribuíram (a base da economia do Rio é o petróleo – ele é o maior produtor do país). Mas faltou, sobretudo, prevenção. Onde estavam os órgãos fiscalizadores (TCE, Assembleia Legislativa, controladorias etc.) que deixaram o RJ fazer tantos empréstimos em função de uma receita futura (pré-sal) incerta? Sempre que as instituições de controle não funcionam, a tragédia se torna certa. E o controle dos contratos públicos (particularmente de empréstimos) pela sociedade civil (na internet)? Campos Sales (ex-presidente do Brasil) já fez um empréstimo no princípio do século passado e levou o país à recessão? A História não serve para nada?

Mas também não pode ser ignorada a crise econômica e política brasileira (impeachment, troca de governo etc.), assim como a irresponsabilidade administrativa local. A pretexto de incentivar a economia nos Jogos Olímpicos, o governo do Rio concedeu isenções fiscais que totalizam o triplo do que receberá em ajuda do governo federal. O auxílio estimado de R$ 2,9 bilhões ao governo do Rio equivale a um terço das isenções fiscais a serem concedidas pelo Estado neste ano, estimadas em R$ 8,7 bilhões pela Secretaria de Planejamento e Gestão. Há fortes indícios de que centenas de empresas que estão se beneficiando das isenções não têm nada a ver com as olimpíadas. Nos países em que as instituições funcionam bem isso não ocorreria de modo algum.

Na base dos problemas nacionais (incontáveis) o destaque vai para o kleptocratismo (que é o regime de governança do Estado que enseja o enriquecimento corrupto ou favorecido das oligarquias/elites políticas e econômicas com o dinheiro público). Exemplo: dois executivos da construtora Andrade Gutierrez delataram o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (PMDB), por ter cobrado propinas nas obras do Maracanã, do Comperj, do Arco Metropolitano, do Conjunto de Favelas de Manguinhos e até de contratos nos quais não havia dinheiro do estado (O Globo). Toda delação necessita de provas (como se sabe).

Rogério Nora de Sá e Clóvis Peixoto Primo disseram que Cabral teria recebido R$ 300 mil mensais, entre 2010 e 2011, referentes a 5% do contrato da reforma do Maracanã para a Copa do Mundo (ver Época). Também havia cobrança de propinas por obras futuras (nem sequer iniciadas). Mais R$ 350 mil por mês. Também foram delatados o ex-secretário de Governo do estado Wilson Carlos, o dono da construtora Delta, Fernando Cavendish, e Carlos Miranda, apontado como operador de Cabral nas obras do Maracanã (tocadas por Andrade Gutierrez, Delta e Odebrecht). Orçadas em R$ 600 milhões, terminaram custando R$ 1,266 bilhão. Cabral teria recebido R$ 60 milhões, no total. A proximidade entre Cabral e Fernando Cavendish, dono da Delta, foi exposta em abril de 2012, depois que vídeos e fotos de uma viagem do ex-governador a Paris, três anos antes, foram divulgados. Eles aparecem aí com guardanapos enrolados na cabeça (a cleptocracia veste Prada). O inquérito sobre a viagem foi arquivado prontamente.

O kleptogerenciamento da coisa pública é um desastre para o país. Ele está sendo atacado eficazmente pela Lava Jato, que está deixando muitos reis nus. Trata-se de uma das piores doenças do Brasil. Num primeiro momento, microrrevoluções como essa são devastadoras, porque incrementam o baixo ou negativo crescimento econômico, fecham empresas, reduzem a atividade produtiva, geram desemprego, diminuem a arrecadação, dificultam o crédito etc. Se tudo isso está sendo sentido no Brasil inteiro, com muito mais força projetou seus efeitos no RJ (muito ligado à Petrobras). A Lava Jato é um remédio muito duro, mas necessário. A médio e longo prazo nossas instituições tendem a ser mais eficientes e mais fortes. Nós que seguimos as teorias institucionais, devemos apoiá-la.

Extrativismo + patrimonialismo + corrupção sistêmica = kleptocratismo (regime de enriquecimento das oligarquias/elites políticas e econômicas com o dinheiro público). Até nossa democracia está comprometida. A democracia brasileira é, na verdade, uma kleptodemocracia, e assim será enquanto não eliminados os locupletadores do dinheiro público, que somente não são muito menos porque inexplicavelmente ainda são apoiados por muitos kleptoidiotas (que ficam disputando qual partido é mais corrupto que o outro). Todos os tradicionais o são. Que pena que ainda não acabou a kleptoidiotia (seríamos milhões a mais no combate à corrupção se ela não existisse).

Muitos estão sentindo os seus efeitos, mas não estão captando a dimensão profunda das crises que estamos enfrentando. Nem todo mundo presta atenção no seguinte: uma das características das nações kleptoextrativistas (caso do Brasil, cujas instituições precárias são melhores que de muitos países africanos e latino-americanos, mas muito piores que as nações prósperas sustentáveis, com destaque para as escandinavas, por exemplo) é o baixo ou nulo crescimento econômico; e quando há crescimento, ele não é estável, não é duradouro, não tem fôlego longo (Acemoglu-Robinson, Por que as nações fracassam, p. 71 e ss.). Enquanto formos um país extrativista e corrupto teremos graves problemas com o crescimento econômico.

Os países kleptocratistas são montanhas russas, com períodos vertiginosos de crescimento, seguidos de crises, recessão e estagnação, por carecer de sólidos fundamentos (ver Marcos Mendes, Por que o Brasil cresce pouco?). Precisamente por isso, o governo ou o economista ou o discurso que só fala em crescimento econômico com rígido e necessário controle dos gastos do Estado sem a reestruturação dos fundamentos da economia público-privada corre o risco de estar fazendo um discurso kleptocratista (que favorece com o dinheiro público o enriquecimento das oligarquias/elites políticas e econômicas kleptoextrativistas).

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Chegou a hora de revermos e eliminarmos o kleptomercado público-privado, o que significa drástica redução do tamanho do Estado-agente econômico, assim como das relações do Mercado com esse Estado (tradicionalmente patrimonialista). É preciso uma profunda mudança na forma de se fazer negócios (diz Mendonça de Barros), já que a corrupção reduz a eficiência produtiva. E isso acontece em virtude do parasitismo, que não estimula a inovação ou renovação tecnológica, levando à adoção de políticas ultraconservadoras do statu quo.

A nova narrativa é a do estrito controle das kleptorrelações público-privadas. Para Sérgio Lazzarini, do Insper, as empresas vão ter de se reinventar. “A Lava Jato cumpre o papel de escancarar um modelo vigente há séculos no País: o capitalismo de laços, em que o sucesso dos grupos econômicos está ligado ao Estado” (Estadão).

Se de um lado a sobrevivência diante do turbilhão não será fácil, o crédito se tornou escasso, a busca de sócios se arrefeceu (a própria Petrobras está enfrentando esse problema), de outro, é precisamente nas crises (nos maus momentos) que as pessoas e as empresas encontram saídas para os problemas.

Se a Lava Jato já está cumprindo esse papel, tanto melhor. De qualquer modo, depois de cessado o tsunami, se as mentalidades das oligarquias/elites políticas e econômicas continuarem kleptoextrativistas, de nada terá valido todo o sacrifício. Porque, nesse caso, mesmo havendo crescimento econômico, ele não será sustentável. Pode até estar havendo uma nova percepção, uma “mudança de ânimo nos investidores”: o Brasil não encontrará o leito da prosperidade enquanto não contar com instituições políticas e econômicas inclusivas, que estimulem a educação e a preparação, a poupança e a inovação. As oligarquias/elites políticas e econômicas extrativistas têm que mudar sua visão de mundo (ou perecerão, mais rápido do que se imagina).

O velho sistema político-eleitoral (completamente carcomido, como ouvimos nos áudios de Sérgio Machado) deve ser jogado no lixo e um dos caminhos para isso é o plebiscito libertador que promova a refundação do sistema citado. Com o tiro de misericórdia das delações da Odebrecht, o campo está aberto para um plebiscito, seguido de lei ratificadora obrigatória. Há mil ideias para se discutir nesse plebiscito: uma delas é a proibição da reeleição para cargos do Executivo e de senador. E uma só reeleição para o mesmo cargo no Legislativo. Se o agente político cortar seus laços funcionais periodicamente, isso muito ajudará no combate à corrupção. Nada sendo feito no sentido da regeneração do Brasil, ou teremos uma kleptodemocracia sofisticada ou algo ainda pior pode surgir (uma espécie de monstrodemocracia, que é o fascismo do século XXI).

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. RJ: calamidade financeira e kleptogerenciamento da coisa pública. Pelo fim da reeleição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4740, 23 jun. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49977. Acesso em: 25 dez. 2024.

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