Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética é a terceira obra do filósofo norte-americano Michael J. Sandel, mesmo autor de “Justiça: o que é fazer a coisa certa”. O livro é fruto da experiência que o autor teve quando participou do Conselho de Bioética criado pelo presidente Bush no início do milênio e trata dos dilemas morais trazidos pelos avanços da ciência genética nos tempos atuais e sua perspectiva num futuro não tão distante.
Michael Sandel pugna que, na busca pela perfeição, o homem não deslumbra as deficiências que existem no processo, vislumbrando, às vezes, tão somente problemas ligados à segurança. Na busca do aperfeiçoamento a espécie, acaba por envolver-se por uma névoa de maravilhamento e deslumbre que turva sua visão e sua razão quanto aos demais problemas que esse arianismo provoca.
O livro é dividido em cinco capítulos, dos quais nos ateremos, para fins do presente trabalho, dedicando-nos aos dois primeiros, quais sejam: “A ética do melhoramento” e “Atletas biônicos”.
O primeiro capítulo abre-se com reportagens de jornais, como do Washington Post, que relata a histórias sobre a escolha genética de um casal de lésbicas surdas que decide ter um filho também surdo e, para tanto, busca um doador cujo histórico mostre que sua linhagem genética apresente esta “característica”. “É errado fazer uma criança surda pelo design? Se assim for, o que faz com que seja errado, a surdez ou o design?”
Em outro caso, um casal procura uma doadora de óvulo de elevada estatura, bom histórico de saúde familiar e inteligência elevada, comprovada por meio de alta pontuação no SAT, um exame educacional padronizado nos Estados Unidos aplicado a estudantes do ensino médio, que serve de critério para admissão nas universidades norte-americanas. Ao confrontarmo-nos com tais casos, o primeiro de pronto nos causa mal-estar, porque a tentação do melhoramento acaba por seduzir o espírito humano.
Um problema que o autor discute no primeiro capítulo é o do risco e falhas que ocorrem no processo de clonagem e melhoramento. No caso de clonagem de cães e gatos, diversos indivíduos defeituosos surgem. Como seria com humanos? Mas, o próprio autor afirma que o desenvolvimento tecnológico tem alçado nivéis que, num futuro próximo, eliminará tal problema, tornando o risco da clonagem falhar próximo ao da gravidez não vingar.
Em seguida aponta na sequência o argumento de que as crianças clonadas ou geneticamente selecionadas nasceriam predeterminadas, ou seja, não inteiramente livres. Mas logo desconstrói essa lógica, uma vez que não é possível a ninguém escolher sua herança genética. Ainda assim, finca-se um “espeto moral” na consciência humana quanto a essas possibilidades.
A revolução genômica propõe um futuro de intensas novidades: aprimoramento muscular, ampliação da capacidade de memorização, determinação da altura mínima e escolha do sexo. Antes vistos com possibilidades de prevenção ou cura de doenças que tormentavam gerações, hoje essas inovações são vistas como uma forma de arianismo comercializável. A ditadura da raça perfeita foi substituída pela comercialização da raça perfeita. Esquecemos o genocídio que se praticou na 2a Grande Guerra e impomos, como na Índia, uma indústria de abortos cientificamente validada para escolha do sexo. Essa mudança de perspectiva encerra uma questão moral.
O melhoramento genômico, a clonagem e a engenharia genética representam uma ameaça à dignidade humana. Mas, ainda que tal afirmação seja incontroversa, cinge-se identificar o quanto e como tais ações nos torna menos humanos, menos livres.
No segundo capítulo, apresenta a questão sobre o que faríamos com esse melhoramento. Ele nos tornaria dependente de laboratórios? Qual o papel da dedicação, envolvimento e do talento nesse cenário de modificações genéticas? O atleta que corre mais rápido, pula mais alto, que levanta mais peso seria um coadjuvante de suas próprias conquistas. Todo o mérito seria consagrado àquele que, com a placade Petri e manipulação farmacêutica, tornou-o um semideus. Semideus pois a deidade real estaria com os cientistas. Todo treinamento e disciplina não teriam mais importância, mas sim, o melhoramento genético a que foi submetido o atleta. Não haveria mais dons, mais vocação no homem.
Os Jogos Olímpicos nos encantam quase sempre não pela façanha do supermedalhista ou do campeão, mas de toda uma história de superação e humildade que se encontra como o pano de fundo daquelas conquistas. A modificação genética, assim como o doping, corrompem as competições atléticas que homenageiam o culto e a exibição dos talentos naturais.
O mesmo se poderia dizer de inovações tecnológicas usados no esporte. O primeiro que correu calçado não teria sido tachado de trapaceiro? Recorre-me id~etica discussão com relação as shark skins usadas pelos nadadores olímpicos. Dietas especiais, terapia bariátrica, treinamentos acompanhados por telemetria, cirurgias: todos esses recursos acessíveis a nações e equipes mais ricas fazem pender a balança – e as medalhas, os contratos, a publicidade – para seu lado.
Quase sempre tratamento com outras substâncias, como esteróides são proibidas devido o potencial danoso ao corpo do atleta. Contudo, a questão não se restribge a isso. As intervenções de melhorias “saudáveis” comprometem sobremaneira a integridade do esporte. A esse respeito, em sentido idêntico, já descorriam Joham Huizinga (Homo Ludens/1938) e Roger Callois (Les Jeux et les Hommes/1957).
A grande questão seria: o esporte é uma disputa de talentos ou uma forma de entretemnimento onde as regras pouco importam? No primeiro caso, as modificações genômicas comprometem sua essência e lhe corrompe o objetivo. No segundo caso, está apenas em busca de mais público, mais patrocinadores, mais capital a se servir, sendo-lhe, inclusive, favorável e totalmente aceitável nesse caso.
Concordamos, eu, Sandel, Huizinga e Callois, que o esporte se trata de uma disputa humana, pautada na estrita observância das regras, que dão isonomia aos participantes na busca dos resultados, estando a audiência e o público comprometidos com a justa disputa.
BIBLIOGRAFIA
SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Trad. de Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 160 p. Capítulos 1 e 2.