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A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro

(disregard of legal entity)

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30/03/2004 às 00:00
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3.DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1 O SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO

Inicialmente há de se ter, para melhor compreensão do trabalho em tela, uma breve noção do significado da expressão "desconsideração da personalidade jurídica" à luz do direito pátrio e da nossa língua portuguesa.

A palavra desconsideração, quando inserida no contexto da expressão título deste capítulo, significa tornar sem efeito, ignorar, anular, ou seja, não reconhecer a personalidade jurídica de determinada sociedade.

A personalidade jurídica, já estudada no presente trabalho, pode-se dizer que é uma ficção criada pela lei, para distinguir, separar ou ocultar os sócios da sociedade de que fazem parte. Esta última adquire uma autonomia em relação aos seus sócios, passando ela própria a ser sujeito de direitos e obrigações, distinguindo-se de seus sócios, estes então denominados de pessoas físicas.

Desconsideração da personalidade jurídica significa, então, não mais separar as pessoas do sócio e sociedade, tornando os primeiros também suscetíveis de responder pelas obrigações contraídas pela sociedade da qual fazem parte.

Nos Estados Unidos e Inglaterra esta teoria é denominada Disregard of Legal Entity, Piercing the Corporate Veil, Lifting the Coporate Veil ou simplesmente Disregard Doctrine, na Itália Superamento della Personalità Giuridica, Abus de la Noction de Personnalité Sociale para os franceses, Durchgriff der Juristischen Personen na Alemanha e Teoria de la Penetración de la personalidad ou Desestimación de la Personalidad Societaria para os argentinos.

3.2 O SURGIMENTO E A HISTÓRIA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.2.1 A Disregard Doctrine

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ou disregard doctrine, utilizada como um instrumento para coibir fraudes ou abuso de direito, obteve seu inicial desenvolvimento através da jurisprudência nos Estados Unidos da América, no começo do século XIX.

Assim, "[...] a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não foi produzida pela ciência do direito, mas a partir da jurisprudência (ou seja, da atividade judiciária de aplicação do direito ao caso concreto)." (JUSTEN FILHO, 1987, p. 54, grifo nosso)

O marco jurisprudencial inicial foi mais precisamente o ano de 1809, quando uma decisão do juiz norte-americano Marshall, no caso Bank of United States x Deveaux, acabou por estender aos sócios os efeitos da personalidade da entidade da qual faziam parte.

Antonio Bottan, Carlos Roslindo e Gislaine Mohr em excelente artigo publicado no periódico de jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, citando Suzy Elisabeth Cavalcante Koury, prelecionam o seguinte:

Conforme os estudos de Koury², em 1809, nos EUA, já se discutia a Disregard Doctrine, No caso Bank of united States v. Deveaux, o Juiz Marshall conheceu da causa, com a intenção de preservar a jurisdição das Cortes Federais sobre as Corporations, já que a Constituição Federal Americana, no seu artigo 3º, seção 2ª, limita tal jurisdição às controvérsias entre cidadãos de diferentes estados. A decisão, em si, não foi relevante, visto que foi repudiada pela doutrina da época, mas, já em 1809, as Cortes levantaram o véu personal e consideraram as características dos sócios individuais (BOTTAN; ROSLINDO; MOHR, 2000, n. 89, p. 26).

Este foi portanto o leading case, ou seja, o primórdio do que se conhece hoje por disregard doctrine.

Alguns autores sequer mencionam em suas obras o caso supramencionado, talvez pela pouca relevância que o mesmo obteve, ou por este ter sido de certo modo encoberto ou esquecido em virtude de casos mais famosos que surgiriam posteriormente, notadamente na Inglaterra, o que será demonstrado a seguir.

Mas a verdade é, ao que tudo indica, este é o caso de desconsideração da personalidade jurídica mais antigo já registrado pela doutrina, e também, que o início de toda sua formulação aconteceu em decisões proferidas por juízes norte-emericanos.

Também adotam este posicionamento alguns doutrinadores brasileiros e vários outros estrangeiros, interessante é o posicionamento do argentino Guillermo Cabanello de Las Cuevas, onde confirma a origem jurisprudêncial da teoria no direito norte-americano:

A doutrina da desestimação da personalidade societária [esta é uma das formas como é chamada a teoria da desconsideração no direito argentino] tem uma origem fundamentalmente jurisprudencial, praticamente em todos os países onde esta doutrina tem uma aplicação efetiva. Esta formação jurisprudencial necessariamente implica o ditado de regras aplicáveis em casos determinados, dos quais é preciso extrair um conjunto orgânico de normas de origem jurisprudencial aplicáveis nesta matéria. [...] Também desde o ponto de vista histórico, e em virtude da deficiente sistematização da doutrina da desestimação da personalidade societária, é certo que esta doutrina teve sua origem e desenvolvimento nos Estados Unidos, de onde foi tomada por outros sistemas jurídicos (LAS CUEVAS, 1994, p. 70-71, trad. nossa).

De acordo com o demonstrado até agora, conclui-se que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica evoluiu, num primeiro momento, a partir de decisões jurisprudênciais norte-americanas que de certa forma "contaminaram" outros países, e a partir daí, aconteceu o desenvolvimento doutrinário da teoria, na Alemanha, Itália e Inglaterra.

Outra disputa judicial, famoso exemplo da Disregard Doctrine nos Estados Unidos, ocorreu no ano de 1892, envolvendo a Standard Oil Co., fundada por John Davison Rockefeller em 1870. A Standard Oil, pouco tempo depois de fundada, tornava-se monopolista e controlava 90% a 95% da produção refinada de petróleo nos estados Unidos.

Waldirio Bulgarelli, traz este caso em sua obra Concentração de empresas e direito antitruste, ele afirma que o truste

[...] foi utilizado no fim do século XIX, a serviço da concentração de empresas, por John D. Rockefeller (embora se atribua sua autoria ao advogado S. E. Dodd, em 1881), que reuniu todas as participações da ‘ Standard Oil Co. Of Ohio’, cerca de 600, transferindo-as a trustees, empregados da empresa. Não se tendo obtido ainda assim uma suficiente descentralização administrativa, em 1882, foi substituída por um trust agreement que instituiu o primeiro trust, no sentido monopolístico. Transferiu-se a carteira e os ativos da ‘ Standard’ para um conselho de 9 trustes composto pelos principais controladores do grupo, atribuindo-se 20 ‘certificados’ por ação (BULGARELLI, 1997, p.53).

A Suprema Corte de Ohio, em 1892, criou então outro precedente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao decidir, desconsiderando a personalidade e declarando ilegal o este monopólio exercido pela Standard Oil.

Talvez a disputa judicial mais famosa envolvendo a Disregard Doctrine seja o caso Salomon v. Salomon & Co., ocorrido no ano de 1897 na Inglaterra, onde o sistema jurídico é o Common Law, em que o costume é importantíssima fonte do direito. Este é, "Segundo a doutrina clássica, o precedente jurisprudencial que permitiu o desenvolvimento da teoria [...]" (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2002, p. 233).

Neste caso julgado pela House of Lords (Câmara dos Lordes), um comerciante do ramo de calçados chamado Aaron Salomon, constituiu no ano de 1892, uma Company (sociedade por ações), distribuindo uma ação para cada um dos seis membros de sua família, estes incluíam sua mulher e filhos, para si reservou o montante de 20.000 ações.

Aaron constitui para si um crédito privilegiado no valor de dez mil libras esterlinas, tornando posteriormente insolvente a companhia, como ele era credor privilegiado, nada restou aos outros credores.

A justiça inglesa em sua decisão de primeiro grau, optou por desconsiderar a pessoa jurídica da sociedade fundada por Aaron, entendendo que houve fraude no negócio, o que atingiria seu patrimônio, mas esta decisão foi posteriormente reformada pela Câmara dos Lordes sob o fundamento de que a sociedade havia sido constituída de forma válida, ou seja, sem nenhum vício para as leis da época.

Posteriormente reformada em instância superior, esta decisão desencorajou maiores desenvolvimentos doutrinários na época sobre a teoria em tela no direito inglês, mas é certo que posteriormente também serviu como precedente à formulação da disregard doctrine.

Koury utiliza este caso, para corrigir duas informações incorretas passadas pela doutrina, e ao que tudo indica, acertadamente.

A primeira delas diz respeito à sua qualificação como o verdadeiro e próprio leading case da Disregard Doctrine por vários autores. Na realidade, o caso em questão foi julgado em 1897, portanto, oitenta e oito anos após a primeira manifestação da jurispruD6encia americana, só sendo possível, assim, considerá-lo como leading case no Direito inglês.

Além disso [referindo-se à segunda informação incorreta], apesar do juiz de 1º. grau e da Corte de Apelação terem desconsiderado a personalidade jurídica da companhia criada por Salomon, juntamente com 6 (seis) pessoas da sua família, reputando-a como uma extensão da atividade pessoal dele, uma verdadeira agent ou trustee de Salomon, que contibuava sendo o verdadeiro proprietário do estabelecimento que falsamente transferira à sociedade, a decisão foi reformada pela House of Lords, sob a alegação de que a companhia havia sido validamente constituída e que Salomon era seu credor privilegiado por ter-lhe vendido o estabelecimento recebido, por isso, obrigações contraídas por hipoteca (KOURY, 2002, p. 64, grifo do autor)

Foi então, de uma maneira um pouco reservada e discreta, o despertar do surgimento da disregard doctrine.

Através de decisões ousadas para a época, inicialmente nos Estados Unidos e posteriormente na Inglaterra, que se começou a desconhecer da personalidade jurídica para atingir os sócios, visando transferir a estes as responsabilidades pelo mau uso da sociedade, como ensina Fran Martins:

Constatado o fato de que a personalidade jurídica das sociedades servia a pessoas inescrupulosas que praticassem em benefício próprio abuso de direito ou atos fraudulentos por intermédio das pessoas jurídicas, que revestiam as sociedades, os tribunais começaram então a desconhecer a pessoa jurídica para responsabilizar os praticantes de tais atos (MARTINS, 1998, p. 226, grifo do autor).

3.2.2 A contribuição dos doutrinadores para a formulação da disregard doctrine

Podemos destacar a contribuição de três grandes doutrinadores que se dedicaram ao estudo e inicial desenvolvimento da disregard doctrine, são eles: o alemão Rolf Serick, o italiano Piero Verrucoli e o norte americano Maurice Wormser.

No que se reporta a Wormser, este jurista americano começou seus estudos no início do século XX, época em que formulou premissas e tentou conceituar a teoria. Seus estudos foram o ponto de partida de outros doutrinadores que se seguiram.

Wormser em seu trabalho descreve uma série de fatores que podem levar à superação da personalidade jurídica no sistema americano, entre eles estão a fraude aos credores através do uso da proteção concedida pelo véu da pessoa jurídica, quando os sócios tentam se eximir de uma obrigação existente, se reporta ainda ao intuito de desviar a aplicação da lei, proteger devedores, etc.

No começo da década de 50 a surgiram os primeiros trabalhos doutrinários de maior envergadura que convergiam para a formulação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

O principal idealizador desta teoria pode ser considerado o alemão Rolf Serick, que fornece as regras básicas a serem seguidas. Este era na época, professor da faculdade de Direito de Heidelberg.

Serick defendeu sua tese de doutorado, com o título Rechtsform und Realität juristischer Personem,. no ano de 1953 na Universidade de Tübigen, onde firmou os pilares da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a qual denominou Durchgriff der Juristichen Personen.

Ensina Fábio Ulhoa Coelho que

É o próprio Rolf Serick quem sintetiza, no terceiro livro de sua obra Forma e Realidade da Pessoa Jurídica, os princípios da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, após análise de diversos casos, dos Direito alemão e norte-americano. Pelo panorama apresentado por esta análise, divisam-se dois grupos de casos em que a personalidade jurídica pode ser desconhecida. Primeiro, quando se abusa da personalidade jurídica com vistas à realização de fraude, e, segundo, quando o desconhecimento é condição de aplicação de normas jurídicas. Em ambos afasta-se a personalização da pessoa jurídica, para alcançar o que Serick denominou de ‘susbstrato’, sendo que, no primeiro grupo, com vistas a coibir o abuso, e, no segundo, por força da ratio legis específica (COELHO, 1989, p. 17, grifo do autor).

Rolf Serick formula quatro princípios básicos da teoria da desconsideração, estes servem de pilares para a teoria maior da desconsideração, que será adiante estudada. Os quatro princípios, condensados na obra de Fábio Coelho, são:

O primeiro afirma que ‘o juiz, diante de abuso da forma da pessoa jurídica, pode, para impedir a realização do ilícito, desconsiderar o princípio da separação entre sócio e pessoa jurídica’. [...] [o segundo princípio nos diz que] ‘não é possível desconsiderar a autonomia subjetiva da pessoa jurídica porque o objetivo de uma norma ou a causa de um negócio não foram atendidos’. [...] [quanto ao terceiro, este afirma que] ‘aplicam-se à pessoa jurídica as normas sobre capacidade ou valor humano, se não houver contradição entre os objetivos desta e a função daquela. Em tal hipótese, para atendimento dos pressupostos da norma, levam-se em conta as pessoas físicas que agiram pela pessoa jurídica’. [...] [o último princípio preceitua que] ‘se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes’ (COELHO, 2002, p. 36).

Outro importante contribuinte da teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi o professor italiano Piero Verrucoli da Universidade de Pisa, este se aprofundou no estudo do assunto através de sua monografia "Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitali nella Common Law e nella Civil Law."

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Verrucoli "[...] nos oferece a origem dessa doutrina, que teria surgido na jurisprudência inglesa, nos fins do século passado." (REQUIÃO, 1998, p. 350)

Data venia, há que se discordar do posicionamento do mestre italiano, pois conforme já demonstrado neste trabalho, é cristalina a origem jurisprudencial da teoria nos Estados Unidos da América, onde há registros de decisões judiciais, que acabaram por superar a personalidade jurídica das sociedades desde 1809, quase um século antes do famoso caso Salomon.

Voltando ao estudo de Verrucoli em sua monografia, é de suma importância sua contribuição para a formação doutrinária da teoria da desconsideração, nela enfoca a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nas sociedades de capital, pois na Itália, "[...] entende-se que as sociedades de pessoas, ou personalísticas, não possuem personalidade jurídica, não se colocando, por isso, o problema em relação a elas." (COELHO, 1989, p. 23, grifo do autor)

Verrucoli defende a idéia de que com a criação das pessoas jurídicas através de meios legais, seja normal que em contrapartida, também criem-se meios para impedir o uso indevido destas pessoas por parte de seus integrantes, ou através de atos destes, e um destes meios seria a desconsideração da personalidade jurídica, uma forma de evitar abusos, onde se superaria um certo privilégio que os sócios teriam ao se valerem dos privilégios decorrentes da personalização da sociedade.

Citado por Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, Piero Verrucoli afirma que,

’[...] a superação, que realiza esta atividade da pessoa jurídica, mostra-se em toda evidência como um dos possíveis instrumentos através dos quais o poder central contém e corrige a força dos grupos, restaurando um equilíbrio comprometido, combatendo os abusos do privilégio concedido, realizando completamente os fins perseguidos que se tenham tornado, de qualquer maneira, comprometidos por um rígido respeito formal ao privilégio da personalidade jurídica.’ 23 (KOURY, 2002, p. 7)

3.2.3 Origem e evolução no direito brasileiro

No Brasil, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi lentamente ganhando força e se desenvolvendo através de esporádicas decisões judiciais e posteriormente através dos estudos dos doutrinadores, entre estes merecem destaque Rubens Requião e Fábio Konder Comparato.

Rubens Requião foi o primeiro doutrinador brasileiro a tratar do superamento da personalidade jurídica, segundo COELHO (1989, p. 33) ele trouxe duas grandes contribuições para desenvolvimento da teoria da desconsideração no Brasil. "A primeira delas foi a de ter sido o primeiro jurista nacional a cuidar do tema de forma sistematizada, em conferência [...] intitulada ‘Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica.’ [...]"

A outra grande contribuição de Requião, também de enorme envergadura, "foi a de ter demonstrado a compatibilização existente entre a teoria da desconsideração e o Direito nacional, propugnando pela sua aplicação a despeito da ausência de dispositivo legal sobre o assunto." (COELHO, 1989, p.33)

Requião, comentando a respeito do seu pioneirismo ao tratar da questão do abuso de direito e da fraude através da personalidade jurídica, traz em sua conferência realizada na Universidade Federal do Paraná uma interessante mensagem:

Não temos lembrança, em nossas constantes peregrinações pelas páginas do direito comercial pátrio, de haver encontrado doutrina nacional ou estudos sôbre o uso abusivo ou fraudulento da pessoa jurídica, o que nos daria, se correta a nossa impressão, o júbilo de apresentá-la pela primeira vez, em sua formulação sistemática, aos colegas e aos juristas nacionais [...] (REQUIÃO, 2002, p. 752, grifo do autor).

O paranaense Rubens Requião procura conciliar uma forma de adequar a disregard doctrine ao ordenamento jurídico nacional, porém sem quebrar os princípios já consagrados que regem as pessoas jurídicas.

A expressão "desconsideração da personalidade jurídica", incorporada por Requião à doutrina brasileira, foi por ele mesmo traduzida do original disregard of legal entity, e a fraude ou o abuso de direito seriam elementos essenciais que autorizariam o poder judiciário a quebrar o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, e o efeito disto seria a possibilidade de se atingir o patrimônio dos sócios, quando do uso indevido da sociedade.

Preocupa-se este jurista com o livre convencimento do magistrado, que diante da hipótese de fraude ou abuso de direito, deve ou fazer justiça e alcançar os responsáveis através da desconsideração, ou então deixar impune os responsáveis pelo mau uso da sociedade, consagrando plenamente a autonomia patrimonial, e por conseguinte, consagrando também a impunidade, esta escondida atrás da máscara de proteção que envolve a pessoa jurídica, o que sem dúvida alguma não seria fazer justiça.

No tocante aos efeitos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, afirma Requião: ‘o que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda sua a extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).[...] Com isto, no fundo não se nega a existência da pessoa, senão que se a preserva na forma com que o ordenamento jurídico a há concebido’ (COELHO, 1989, p. 36, grifo do autor).

Outro expoente, no que diz respeito à introdução da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, foi Fábio Konder Comparato.

No Brasil, foi ele o idealizador da teoria da desconsideração da personalidade jurídica com pressupostos objetivos. Critica a teoria subjetiva da desconsideração e identifica outros fundamentos para ela.

Para esta formulação objetiva da teoria, bastaria tão somente a confusão patrimonial dos bens do sócio com os da sociedade, para que o judiciário aplicasse a teoria da desconsideração.

Fábio Ulhoa Coelho, em estudo aprofundado da matéria, salienta que para

Fábio Konder Comparato, o efeito fundamental da personalização é a separação de patrimônios, e este efeito não se opera em algumas situações, a saber: na ausência do pressuposto formal estabelecido em lei, no desaparecimento do objeto social específico (exploração de uma empresa determinada) ou do objetivo social (produção e distribuição de lucro) e na confusão do objeto social ou objetivo social e da atividade ou interesse individuais de um sócio.63 (COELHO, 1989, p.39-40, grifo nosso)

Fábio Konder Comparato dá essas diretrizes em sua obra O poder de Controle na Sociedade Anônima, onde também cita a jurisprudência norte-americana, que há tempos aplica a teoria da desconsideração, causando um certo abalo na doutrina mais tradicional.

Comparato afirma que o verdadeiro critério para aplicar-se a desconsideração da personalidade jurídica está "nos pressupostos da separação patrimonial, e não no uso que dela se faça [...]" (COELHO, 1989, p. 41).

3.3 O QUE É REALMENTE A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.3.1 Considerações iniciais sobre a teoria

Após breves retrospectos históricos, úteis para melhor compreender o trabalho em tela, será analisada neste item a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em si, seus pressupostos, a teoria maior da desconsideração, a teoria menor, sua aplicação, seus aspectos no campo do direito processual e a desconsideração inversa, ou seja, o estudo será o do instituto da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita.

É importante ressaltar que a partir deste item, e também no restante do trabalho, quando não for expressamente mencionado, sempre se tratará, quando se referir à teoria da desconsideração, da sua formulação subjetiva, ou seja, da teoria maior da desconsideração, visto que é esta a teoria de maior aceitação.

Somente quando expressamente mencionado, tratar-se-á da teoria menor, ou de formulação objetiva e de menor aceitação.

No que diz respeito a um instituto jurídico, sua função, "[...] é satisfazer determinadas necessidades compatíveis com o ordenamento jurídico, utilizando-se para tanto de uma forma também compatível com o mesmo." (KOURY, 2002, p. 66)

Este é o objetivo da desconsideração, ser ao mesmo tempo compatível com o instituto da pessoa jurídica, não visando anulá-la, mas sim em determinados casos ordenar que não seja considerada a personalidade jurídica de uma sociedade quando presentes a fraude e o abuso de direito.

Assim, importante é o estudo relacionado dos institutos da pessoa jurídica e da desconsideração da personalidade jurídica, pois o segundo visa de certa forma tornar sem efeito o primeiro no que tange a determinadas situações, como será a seguir demonstrado.

3.3.2 Entendendo a desconsideração

Este item trata do instituto da desconsideração da personalidade da sociedade empresária, instituto profundamente relacionado com o das pessoas jurídicas, e impossível discorrer somente sobre um, sem mencionar o outro, por este motivo será repetido aqui, algumas vezes, assunto já mencionado anteriormente.

As sociedades empresárias muitas vezes são utilizadas através das pessoas físicas que as comandam, para efetivar atividades que visam lesar, fraudar seus credores, ou para abuso de direito através de sua personalidade. O que "superficialmente" garante a impunidade a estas pessoas é exatamente o princípio da autonomia patrimonial, consagrado em nosso ordenamento jurídico.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou disregard doctrine surgiu justamente para combater tais injustiças que freqüentemente ocorrem.

Então, quando a atividade ilícita praticada pelo sócio encontra respaldo atrás do véu que recobre a pessoa jurídica e a distingue de seu sócio, tornando-o praticamente inatingível, cabe ao poder judiciário, em casos excepcionais, aplicar a teoria desconsideração, levantando o véu da pessoa jurídica, com o objetivo de atingir e responsabilizar este último, se presentes os requisitos que a autorizem.

Maurice Wormser, citado por Requião, em seus estudos preceitua o seguinte:

‘quando o conceito de pessoa jurídica (‘corporate entity’) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para constituir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais’ (REQUIÃO, 2002, p. 753).

O interessante da teoria de Wormser, é que mesmo datados dos idos de 1912, seus estudos sobre a desconsideração das corporates entities, continuam atuais, sendo nos dias de hoje plenamente válidos. A idéia de justiça, parece nortear sua doutrina sobre o superamento da personalidade jurídica, o que parece também estar ocorrendo atualmente em nosso ordenamento jurídico, com a positivação da disregard doctrine em várias leis.

O que se pretende com a desconsideração não é anular a personalidade jurídica de uma sociedade, mas sim obter uma declaração, através do judiciário, de que esta personalidade não tem efeito em determinadas situações, como bem aponta Rubens Requião (2003, p. 378, grifo do autor): "Não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas torná-la ineficaz para determinados atos."

O mesmo posicionamento, em favor da não anulação permanente da personalidade jurídica da sociedade, é adotado pela maioria dos doutrinadores:

Não há invalidação ou dissolução da sociedade, associação ou fundação. O que ocorre é apenas a ineficácia episódica do ato constitutivo da pessoa jurídica. Vale dizer, ela continua existente, e seus atos plenamente válidos e eficazes em relação a todos os demais negócios de que participa, estranhos à fraude perpretada. Assim, preserva-se a empresa e, conseqüentemente, não se atinge os interesses dos empregados, consumidores, demais integrantes da pessoa jurídica e os da própria comunidade, em razão de um ilícito praticado através da pessoa jurídica, mas pelo qual ela não é responsável (COELHO, 1995, p. 45).

Não são todas as espécies de sociedades passíveis de sofrer a desconsideração de sua personalidade, em algumas, como a sociedade em nome coletivo, conforme já visto anteriormente, todos os sócios respondem de forma ilimitada pelas obrigações desta, não sendo necessário invocar a teoria da desconsideração para atingi-los.

Em outras, como as sociedades em comandita simples e a em conta de participação, somente alguns dos sócios respondem de forma não limitada, sobre eles a desconsideração não há necessidade de ser aplicada, visto que estes já têm uma responsabilidade ilimitada, mas sim somente nos demais que respondem de forma limitada, quando presentes os requisitos que a autorizem.

"Assim, a desconsideração corresponde à ignorância ou não aplicação, para casos concretos, do regime jurídico estabelecido como regra para situações de que participe uma sociedade personificada (pessoa jurídica)." (JUSTEN FILHO, 1987, p. 67)

"Pretende a doutrina penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade do sócio." (REQUIÃO, 2003, p. 378)

Interessante é o posicionamento do Advogado e professor Alexandre Couto Silva, para ele

A teoria da desconsideração assegura que a estrutura da sociedade com responsabilidade limitada pode ser desconsiderada apenas no caso concreto, atingindo-se a personalidade jurídica do sócio, tanto pessoa natural quanto pessoa jurídica, responsabilizando-o pela fraude e pelo abuso de direito, bem como nos casos em que ele se esconde atrás da personalidade jurídica da sociedade para evitar obrigação existente, tirar vantagem da lei, alcançar ou perpetrar o monopólio, ou proteger desonestidade ou crime. A idéia da busca de justiça é fator preponderante para aplicação da teoria (SILVA, 2000, p. 48, grifo nosso).

Fábio Ulhoa Coelho (2002, p. 34) considera que a manipulação da autonomia das pessoas jurídicas, em exemplos citados na sua obra, são instrumentos para a realização de fraude contra credores, ou pelo menos abuso de direito. A solução para evitar tais manipulações não é a abolição da autonomia da pessoa jurídica, como regra, e que o problema não está no perfil básico destas pessoas, mas no seu mau uso. O objetivo da teoria da desconsideração é possibilitar a coibição da fraude, sem comprometer o próprio instituto da pessoa jurídica.

Concluindo, a desconsideração da personalidade jurídica, quando aplicada em face de uma sociedade empresária, enseja ela a quebra do princípio da autonomia patrimonial, onde o pretendente à reparação, que se sentiu lesado em virtude do mau uso da personalidade jurídica da sociedade por seus sócios, pode buscar no patrimônio pessoal dos mesmos, quando não possível no da própria sociedade, a restituição dos prejuízos que efetivamente sofreu.

3.4 A TEORIA MAIOR E A TEORIA MENOR DA DESCONSIDERAÇÃO

No Brasil, existem duas elaborações doutrinárias sobre a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, este trabalho trata dessas formulações de uma forma breve, destacando como de maior importância a primeira, pois é a de maior aceitação e que está de acordo com a elaboração doutrinária original da desconsideração.

3.4.1 A teoria maior da desconsideração

A teoria maior da desconsideração, também denominada de teoria subjetiva, é a de maior aceitação no Brasil, condiciona-se à ocorrência de fraude ou abuso de direito, critérios subjetivos para ensejar a desconsideração.

Esta formulação doutrinária é muito melhor desenvolvida e elaborada do que na teoria menor. Seu maior expoente na doutrina estrangeira é o alemão Rolf Serick. No Brasil a teoria maior foi inserida na doutrina por Rubens Requião, aqui seu maior elaborador, o qual tratou de sistematizá-la.

Segundo Alexandre Couto Silva

A concepção subjetivista apresentada por Requião, baseia-se, para a aplicação da teoria da desconsideração, na fraude e no abuso, requisitos que são de caráter subjetivo e não contemplam, no entendimento de Comparato, todo o terreno da ocorrência da teoria da desconsideração (SILVA, 2000, p. 53).

Para a teoria maior, a fraude e o abuso de direito, quando presentes no caso concreto, outorgariam ao magistrado a oportunidade de aplicar a teoria da desconsideração ao seu alvedrio, isto é, estaria o juiz autorizado a utilizar o seu livre convencimento para aplicá-la, devido ao caráter subjetivo que a teoria comporta. Isto a difere profundamente da teoria menor, onde este critério de subjetividade praticamente inexiste.

Esta subjetividade está bem demonstrada no ensinamento de Rubens Requião:

Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos (REQUIÃO, 2002, p. 752, grifo nosso).

Explica Fábio Coelho (2002, p. 35), que nesta teoria distingue-se com clareza a desconsideração da personalidade jurídica de outros institutos jurídicos que também importam a afetação do patrimônio do sócio por obrigação contraída pela sociedade.

3.4.2 A teoria menor da desconsideração

A teoria menor da desconsideração é uma proposta doutrinária formulada por Fábio Konder Comparato, esta doutrina combate o subjetivismo da proposta original oferecida no Brasil por Rubens Requião.

A formulação menor não se preocupa em determinar se há ou não fraude ou abuso de direito na condução da sociedade através de seus sócios.

Há uma tentativa, da parte de Fábio Konder Comparato, no sentido de desvincular o superamento da pessoa jurídica desse elemento subjetivo. Elenca, então, um conjunto de fatores objetivos que, no seu modo de ver, fundamentam a desconsideração. São os seguintes: ausência do pressuposto formal estabelecido em lei, desaparecimento do objetivo social específico ou do objetivo social e confusão entre estes e uma atividade ou interesse individual de um sócio (197:273/275). Mas, de qualquer forma, ainda que se adote uma concepção objetiva nesses moldes, dúvida não pode haver quanto à natureza excepcional da desconsideração (COELHO, 1995, p. 45-46).

É uma teoria muito menos elaborada, de enfoque superficial, para esta formulação doutrinária a simples insolvência, ou a falência da sociedade, enseja a quebra da autonomia patrimonial visando atingir o patrimônio particular do sócio, pois para esta visão da doutrina, o credor não pode sair prejudicado, quando o sócio não for insolvente.

Aplicar esta teoria em nosso ordenamento jurídico seria tornar ineficaz o instituto da pessoa jurídica, um dos maiores responsáveis pelo impulso e desenvolvimento da economia.

Coelho (2002, p. 46) entende que esta teoria reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial referente às sociedades empresárias. Onde se tem como pressuposto, o simples desatendimento do crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta.

3.5 PRESSUPOSTOS INAFASTÁVEIS PARA EFETIVAR A DESCONSIDERAÇÃO NA TEORIA MAIOR (A FRAUDE E O ABUSO DE DIREITO)

3.5.1 Consideração sobre os pressupostos

Marçal Justen Fillho (1987, p. 94) afirma que "reputa-se ser impossível definir pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica societária enquanto se adote um conceito absoluto de pessoa jurídica."

A lição deste grande doutrinador era totalmente procedente na época em que foi formulada, porém hoje, em virtude de várias mudanças e inovações ocorridas ao longo das últimas duas décadas no cenário jurídico brasileiro, se pode afirmar que o conceito absoluto de pessoa jurídica já não é mais o mesmo.

Até o final da década de 80 havia no Brasil uma espécie de tabu, pois se considerava a personalidade jurídica de uma sociedade praticamente insuperável para atingir o sócio, isto ocorria em vista de não haver norma expressa que autorizasse desconsiderá-la. Essa intransponibilidade da barreira da personalidade jurídica foi transposta com uma importante inovação e evolução legislativa ocorrida no Brasil no início dos anos 90.

O Código de Defesa do Consumidor, em 1990 pela primeira vez declarou expressamente em nossa legislação, ao enunciar que o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica, a possibilidade de aplicação da disregard doctrine.

A partir desta inovação em nosso ordenamento jurídico, a pessoa jurídica e o princípio da autonomia patrimonial não eram mais absolutos.

A personalidade jurídica a partir de então se torna relativa pelo fato de haver uma norma expressamente autorizando a quebra deste princípio. Isto não quer dizer que antes a teoria nunca havia sido utilizada, pelo contrário, o CDC somente positivou o que antes somente existia na doutrina e na jurisprudência.

Após 1990, surgiram outros dispositivos legais, confirmando a possibilidade, de quando presentes os requisitos, superar-se a personalidade jurídica, o que culminou com o artigo 50 do Código Civil de 2002, que consagrou a teoria no Brasil. Estes dispositivos são tratados no capítulo 4 deste trabalho separadamente.

Após ocorrer esta "relatividade" da personalidade jurídica, dois pressupostos tornam-se ainda inafastáveis para aplicar-se a teoria da disregard, mesmo após a sua positivação no ordenamento jurídico nacional. São eles a fraude e o abuso de direito.

Segue-se aqui a linha de raciocínio original formulada pela doutrina, onde estes dois pressupostos são inafastáveis, e também pelo fato de não se considerar todas as hipóteses presentes no direito nacional como verdadeiros exemplos de disregard doctrine.

Deve-se também ter em mente, que para a aplicação da disregard há necessidade de que não se possa responsabilizar o sócio diretamente, como nas sociedades de responsabilidade ilimitada, as quais já foram aqui estudadas.

Alexandre Couto Silva traz a lição explicando que

Diante disso, extrai-se que o instituto somente será aplicado às sociedades anônimas e as de responsabilidade limitada. As outras sociedades que apesar de apresentarem responsabilidade limitada para alguns sócios, aqueles que exercem a gerência, terão sempre a responsabilidade ilimitada (SILVA, 2000, p. 48).

Deve-se atentar para o fato de que mesmos os sócios com responsabilidade limitada nestas espécies de sociedade (mistas), são passíveis de sofrer a desconsideração quando por parte deles de algum modo houver sido praticada a fraude ou abuso de direito.

3.5.2 A fraude

A fraude pode ser caracterizada com um procedimento utilizado para iludir, ludibriar, enganar. "Na definição de Clóvis, fraude é o artifício malicioso utilizado para prejudicar terceiro, de persona ad personam." (SERPA LOPES, 1996, p. 466)

Quanto à ocorrência de fraude ligada às pessoas jurídicas Coelho esclarece que:

[...] a autonomia da pessoa jurídica, a despeito de sua fundamental importância no regime capitalista, pode dar ensejo à realização de fraudes contra a lei, o contrato ou credores. Ocultando-se atrás da personalidade jurídica de uma sociedade, associação ou fundação, pode por vezes o devedor frustrar a efetivação de sua responsabilidade ou, de qualquer forma, lesar os interesses legítimos do credor. A fraude perpetrada com o uso da autonomia patrimonial de pessoa jurídica, em geral, resulta em imputar-lhe responsabilidade de um ato ou de atos praticados em seu nome apenas com o objetivo de ocultar uma ilicitude (COELHO, 1995, p. 44).

O uso indevido da personalidade jurídica, não pode então ser acobertado pelo poder judiciário em virtude do princípio da autonomia patrimonial, portanto presente a fraude, e se esta for esta demonstrada plenamente, deve o magistrado aplicar a desconsideração sob pena de estar acobertando a injustiça.

3.5.3 O abuso de direito

Rubens Requião (2002, p. 755) preceitua que a relatividade do direito da personalização leva, num rápido desvio do assunto, à teoria do abuso do direito, de criação dos tribunais franceses, e sistematizada por Josserand. Este último afirma que para se compreender a teoria há necessidade de partir da observação de que a sociedade garante a determinadas pessoas as suas prerrogativas, não para ser-lhes agradável, mas para assegurar-lhes a própria conservação.

O abuso dessas prerrogativas, ou seja, o excessivo e injustificado uso de determinado instituto, amparado pela lei, pode ser considerado como abuso de direito.

"O direito deve ser exercido em conformidade com o seu destino social e na proporção do interesse do seu titular." (SERPA LOPES, 1996, p. 525) Portanto o instituto da pessoa jurídica, um direito dos sócios, deve ser usados por seus titulares na mesma proporção de seus interesses e finalidades para não correr o risco de transformar-se em abuso de direito.

Elida Séguin (1999, p. 107) ensina que o abuso de direito ocorre quando uma atividade lícita e legalmente permitida descontrola-se e foge dos padrões da normalidade.

A teoria do abuso de direito foi agasalhada pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 187, o qual prescreve: também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Aqui o legislador não buscou definir as hipóteses de incidência, mas traçou as linhas gerais que visam combater o abuso de direito. E também como já mencionado nos casos de fraude, não deve o magistrado acobertar a injustiça quando demonstrado o uso abusivo do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

3.6 A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA

A desconsideração inversa enseja que se aplique os mesmos princípios da desconsideração da personalidade jurídica já estudada, nada muda quanto aos pressupostos e demais aspectos, razão pelo qual não se processará neste item um estudo mais apurado.

Na desconsideração inversa, como o próprio nome diz, a ordem de responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto é, neste caso o que se busca é a responsabilidade perante os bens da sociedade, por ato praticado pelo sócio.

Pela desconsideração tradicional busca-se responsabilizar o sócio por obrigações contraídas pela sociedade, na inversa, é esta última que responde por dívidas ou atos praticados pelo sócio, através da quebra de sua autonomia patrimonial.

Para Coelho (2002, p. 45), a fraude que a desconsideração invertida coíbe é basicamente o desvio de bens, onde o devedor os transfere para a pessoa jurídica sobre a qual detém o absoluto controle. Deste modo continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica que está sob seu controle. A desconsideração inversa, então pode ser conceituada como o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.

3.7 A QUESTÃO PROCESSUAL

Quando o credor pretender que seja desconsiderada a personalidade jurídica de uma sociedade empresária, deve fazer isso através de uma ação com procedimento adequado que possibilite a ampla produção de provas, este procedimento é o processo de conhecimento.

Afirma Coelho (2002, p. 55) que o juiz não pode desconsiderar a separação entre a pessoa jurídica e seus sócios senão através de ação própria, de caráter cognitivo. Nesta ação o credor deverá demonstrar a presença do pressuposto fraudulento. Quem pretende imputar aos sócios de uma sociedade empresária responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve propor demanda contra esta última, e sim contra os primeiros.

Se a personalização da sociedade empresária será abstraída, desconsiderada, ignorada pelo juiz, então a sua participação na relação processual como demandada é uma impropriedade. Se a sociedade não é sujeito passivo do processo legitimado a outro título, se o autor não pretende a sua responsabilização, mas a de sócios ou administradores, então ela é parte ilegítima, devendo o processo ser extinto, sem julgamento de mérito, em relação à sua pessoa, caso indicada como ré (COELHO, 2002, p. 55)

Pela teoria maior da desconsideração, não pode o magistrado declarar a quebra do princípio da autonomia patrimonial, em despacho no processo de execução.

Coelho (2002, p. 55) entende que se o credor obtém em juízo a condenação da sociedade, e ao promover a execução constata o uso fraudulento da sua personalidade jurídica, obstando seu direito reconhecido em juízo, ele ainda não possuí título executivo contra o responsável pela fraude.

Desta forma deve o credor, ajuizar nova ação, desta vez de procedimento cognitivo, para ver responsabilizado o sócio responsável pela conduta fraudulenta.

"Não é correto o juiz, na execução, simplesmente determinar a penhora de bens do sócio ou administrador, transferindo para eventuais embargos de terceiros a discussão sobre a fraude, porque isto significaria uma inversão do ônus probatório." (COELHO, 2002, p.55)

Outro aspecto tratado por Coelho (2002, p. 56) diz respeito ao fato de que os juízes que adotam a teoria menor da desconsideração, baseados no pressupostos da insolvabilidade e insatisfação do crédito simplesmente, tornam a discussão mais simplificada. No processo de execução esses juízes determinam a penhora de bens de sócios e administradores e consideram os eventuais embargos de terceiro como o local apropriado para apreciar a defesa destes. Como não participaram da lide durante o processo de conhecimento e não podem rediscutir a matéria alcançada pela coisa julgada, acabam os embargantes sendo responsabilizados sem o devido processo legal.

Pode-se afirmar, que neste caso está sendo subtraído do demandado o direito a ampla defesa e ao devido processo legal, ambos garantidos pela Constituição Federal de 88.

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Sobre o autor
Ronaldo Roberto Reali

Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau - FURB</p>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REALI, Ronaldo Roberto. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro: (disregard of legal entity). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 266, 30 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5008. Acesso em: 20 abr. 2024.

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