Fundamentos do poder punitivo

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O professor Mathews apresenta uma crítica aos modelos e políticas de controle da criminalidade, logo na abertura do seu texto (“O mito da punitividade revisitado”). Para o criminólogo inglês, a dicotomia punir/não punir, parece marcar passo sem sair do lugar.

                                                                                   

                                                                                              

                                                                                                                Fichamento

                                                                              "O mito da punitividade revisitado”

                                                                                                          Roger Matthews

 “O mito da punitividade revisitado”

Roger Matthews[1]

(In: Machado, Bruno Amaral. Justiça Criminal e Democracia. Volume nº 2. São Paulo; Barcelona: Marcial Pons, 2015, p. 21-51.)

Um texto crítico

O professor Mathews apresenta uma crítica aos modelos e políticas de controle da criminalidade, logo na abertura do seu texto. Para o criminólogo inglês, a dicotomia punir/não punir, parece marcar passo sem sair do lugar. Algo que se possa concluir que nada há de novo na tese do “jus puniendi”.

A criminologia encontra-se em crise, ou no dizer do autor, “uma concepção caótica” frente ao seu real papel que é a “controvérsia e o debate”. O autor trabalha com a ideia de que a academia lida com a duas correntes: a primeira vê o aumento da punitividade de baixo para cima (público comum –ansioso e indignado) e um segundo grupo que vê o fenômeno de cima para baixo (manipuladores oportunistas- lidam com a ansiedade e o medo midiático).

O autor lida com ideias de Anthony Bottoms que aborda a “punitividade populista”, referendado, o texto, por David Garland. Esse último, fala do “populismo na política penal”, expressando assim, uma crítica sociológica. Uma espécie de retrocesso no pensamento “punitivo”, com medidas mais duras, “prisões mais austeras”, algo que possa satisfazer o sentimento de punição.

Tal postura de satisfação punitiva mais dura, se apoia pelo posicionamento neoliberal na política, refletido por John Pratt como uma constatação ainda maior da “punição repressiva”. O autor menciona o francês Loïc Wacquant[2] que analisa o aumento da punição a afrodescendentes nos Estados Unidos, como expressa no texto: “A prisão emerge como uma instituição de contenção forçada que resulta da crise do gueto e como dispositivo de controle de casta”. 

A menção de Loïc Wacquant por Matthews referenda uma análise sociológica da questão criminológica. Por exemplo, ao mencionar a fala de Wacquant de que as medidas penais (atuais) estejam direcionadas a pobres e minorias étnicas, ainda, inferimos minorias religiosas, caso da Europa.  

Do circo dos horrores dos séculos XVII e XVIII, quando se pensava, em termos cronológicos, com o fim do teatro punitivo com o caso Robert- François Damiens, abertura do livro Vigiar e Punir (1975) de Michel Foucault que se aproxima da observação de Matthews quanto à punição voltada com mais sanha aos pobres, naquilo que ele chama de neoliberalismo. Diz Foucault:

 “Historicamente, o processo pelo qual a burguesia se tornou no decorrer do século XVIII a classe politicamente dominante, abrigou-se atrás da instalação de um quadro jurídico explícito, codificado, formalmente igualitário, e através da organização de um regime de tipo parlamentar representativo. Mas o desenvolvimento e a generalização dos dispositivos disciplinares constituíram a outra vertente, obscura, desse processo. A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas”[3]

Hoje o circo dos horrores da punição são os “teatros terapêuticos” como cristaliza Jonathan Simon[4]·, “no qual o infrator publicamente expressa sentimentos de dor e infâmia moral”. Matthews orienta sua reflexão em seis pontos chaves:

  1.  Primeiro, a definição da punitividade e sua relação com outros conceitos chave, tais como crueldade, revanchismo e tolerância.
  2. A questão da etiologia, que envolve certa consideração das condições associadas com a emergência da punitividade, assim como os fatores tidos por modelar seu desenvolvimento.
  3. A relação entre punitividade e outras tendências dominantes na política penal, como o gerencialismo, que parecem envolver correntes diferentes e mesmo opostas.
  4. O papel do populismo nesse processo e sua relação com a política, elites e o papel dos especialistas.
  5. As noções de opinião pública e atitudes públicas, as quais são em geral tomadas como pontos de referência chave para avaliar níveis cambiantes de punitividade pública.
  6.  Finalmente, há a questão da investigação empírica e da necessidade de se examinar o grau em que esse aumento percebido na punitividade é compatível com a evidência disponível.

Punir

Matthews critica os conceitos utilizados para uma definição ampla do termo punição. Menciona Cohen[5] e seu conceito:

“Coerção, formalismo, moralismo e a inflicção de dor em sujeitos legais individuais por um terceiro. De modo interessante, sua própria visão do controle social enfatiza os mecanismos mais sutis, menos visíveis e discretos através dos quais o controle é realizado na sociedade contemporânea”. (Página 6¨)

De forma sutil, compara tal controle social, com a obra de George Orwell, 1984, na qual o controle do indivíduo era feito de forma ampla, pela vigilância e uma forma única e comum de manter sob controle as condutas e posturas de cada indivíduo.

Com farta citação de bons sociólogos, Mathews critica a falha de soluções pragmáticas pela incompreensão e precisão de um conceito para punição. “Na tentativa de fazer mais o bem, é sempre possível, como os críticos apontaram repetidas vezes, causar mais dano”.   É interessante o pensamento de Matthews ao fazer um tripé com as palavras: detalhamento do crime, vitimização e sanções impostas, fazem chegar a uma sanção em alguns casos “desproporcionais”.

Surge a crítica às leis que produzem efeito simbólico apenas sem grau de efetividade. O ponto nevrálgico do texto se concentra na “tese da punitividade” centrada na detenção. O autor diz: “É perceptível o modo como os analistas do controle social negligenciam os avanços não punitivos dentro da política penal”. A queda da população carcerária ou sua estabilização, segundo o autor, pouco ou nada recebeu de abordagem teórica pelos criminólogos, ou ainda pouco recebe.

Cabe o acento que o autor fornece no fim do capítulo sobre o conceito de punitividade:

 “(...) A distinção entre sanções inclusivas e excludentes e entre comunitárias e custodiais, enquanto debilita a noção de “alternativas” à prisão (Bottoms, 1995). Em muitos aspectos, a noção de tolerância, que com freqüência aparece na literatura, embora também pouco teorizada, pode ser uma ferramenta heurística útil para tratar algumas dessas questões. A tolerância é um termo mais dinâmico, relacional e menos rígido do que a punitividade e carrega consigo um elemento de tensão e ambigüidade, ao mesmo tempo em que sugere mais um sentido de limite do que condenação total de certas ações (Downes, 1988; Turner et al., 1997; Hancock e Matthews, 2001) (Página 12).

Enfatiza-se a idéia que o autor pontua com a palavra “tolerância”, para ele, subteorizada. Lembra Matthews que a etiologia do termo punitividade ou mesmo do verbo punir, parece seguir uma gama teórica de farta produção literária e menciona Foucault, todavia, para Matthews, nada ou muito pouco se fez ou se faz de efetivo.

Na página 13 volta a mencionar Loïc Wacquant, percebendo-se que a crítica à criminologia e seus conceitos, ao ver do mestrando, passa densamente pela sociologia jurídica, especialmente ao denunciar a “desproporcionalidade racial” dentro do sistema carcerário.

A crítica se capilariza ao abordar a falência do liberalismo na década de 1930, o crescente aumento das tensões raciais nos Estados Unidos nas décadas de 1950/60 e se torna visível a tese de Wacquant que Matthews referenda: “O aumento da pobreza nos Estados Unidos, diga-se negros, aumentou o contingente carcerário por lá”. “O ponto principal é demonstrar as conexões causais em vez de apenas afirmá-las”. Isso é pacificado na compreensão que temos na leitura do texto.

Uma crítica ao texto

Robusto o texto de Matthews em análise criminológica e sociológica. A crítica abalizada passa pela citação de teóricos e estudiosos, todavia, os Estados Unidos parecem assumir uma posição de destaque no enfoque dado pelo autor.

Britânico, fora da União Européia, a crítica parece rondar situações raciais e de uma frontal análise negativa do neoliberalismo, como se esse fenômeno fosse apenas dos Estados Unidos. Em muitos aspectos, a incapacidade de teorizar sobre o conceito de crime é uma manifestação de uma falta de compreensão sobre o papel das categorias sociais e processos associados ao seu desenvolvimento e interpretação. Compressão e classificação das categorias sociais é essencial para qualquer investigação científica.

O bom autor nos faz salivar ao descrever e construir uma descrição amparada na boa crítica e nos dados sociológicos de força inquestionável, todavia, ao final, nos diz: “A tese do populista não fornece uma forma muito útil ou precisa de explicação quanto à natureza da mudança do controle da criminalidade”.

E um sentido, a análise teórica se esbarra na construção teórica e nada ou pouco efetivo é extraído dos excelentes escritores no campo da criminologia ou das ciências sociais voltadas para o densamente e efetivamente para o campo da criminologia. Pela leitura mais atenta do texto e reflexões que procuram fugir de uma rotulação, inferimos que Roger Matthews teoriza sobre a necessidade de uma abordagem criminológica que seja, ao mesmo tempo, realista e de esquerda. Para ele, a criminalidade constitui um problema real não tanto por causa do aumento das denúncias ou das operações de polícia, mas sim por causa de uma real percepção de insegurança por parte da opinião pública, particularmente dos setores operários.

Matthews é instigante na leitura dos textos que fizemos e alguns artigos avulsos, pela provocação que nos coloca ao longo da exposição das ideias e principalmente ao se aproximar da conclusão do artigo, a saber, não se pode falar de expansão das prisões se não considerarmos também a execução penal externa. Os programas de descarcerização aumentaram na mesma medida. Então, é necessário analisar as transformações do papel do Estado como agente da governamentalidade. Se, de um lado, assiste-se a verdadeiras privatizações do sistema penal, de outro, o Estado aumenta o espaço da penalidade com a sua ação legislativa e executiva.

Por último, não passa despercebido ao mestrando a densa crítica que Mathews faz ao tratamento dos afrodescendentes nos Estados Unidos. Utiliza-se de boas vozes para a crítica.  Roger Matthews, por sua parte, faz críticas ainda mais específicas à criminologia crítica anglo-saxônica, estendendo-se dentro das transformações da esfera penitenciária. Se, de um lado, o consumo de drogas se refere a toda a sociedade, de outro, afirma Matthews, Wacquant, Pratt e Simon[6] se esquecem que o consumo excessivo de drogas representa, de fato, uma das causas do desfalecimento das comunidades afroamericanas.

Por isso, falar de uso instrumental das campanhas antidrogas para aumentar as taxas de aprisionamento, nesse contexto, parece totalmente fora de lugar. A presença excessiva dos afroamericanos no interior do sistema penal não pode ser atribuída apenas à redução do estado social. Também devem ser levados em consideração problemas econômicos de maior porte, mas principalmente, permanecendo na esfera carcerária, é preciso considerar a atenção que os afro-americanos recebem do sistema de controle social norte-americano desde a adolescência, que acaba lhes expondo excessivamente à ação repressiva.

O mestrando teve o cuidado, talvez impertinência de verificar a base bibliográfica, diga-se, de primeira qualidade utilizada por Roger Matthews. Em sua totalidade 85 % são de autores fora do mundo norteamericano. Alguma crítica quanto a isso? De forma alguma. A questão são os problemas pontuais tratados. Na confecção desse fichamento, o pior ataque civil feito em solo americano se desenvolvia, o ataque à uma boate GLBTS em Orlando Flórida.

Mais de 50 mortos e 53 pessoas ficaram feridas em Orlando Flórida, após o ataque de Omar Saddiqui Mateen, segundo fontes, por inclinação religiosa e intolerância de gênero do autor do atentado, morto pela polícia. Ora, isso é crescente e não somente em solo norteamericano, França, Bélgica, Alemanha e outros países, desenvolvem instrumentos de ódio social e intolerância de gênero, religiosa, xenofobia etc.   A mídia faz o seu papel, não digo como Karl Marx alegou em sua 11ª Tese contra Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. [7]

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Pensamos não ser tarefa de uma casta mudar o mundo, contrário senso, ao pensador Alemão. Claramente resplandece no texto de Matthews que o mito da punição é uma forma de justificação, muito mais que redução de políticas punitivas. Nessa proposta o autor foi extremamente bem-sucedido. 

  Citações:


[1] Roger Matthews is a British criminologist. He is Professor of Criminology at the University of KentCanterburyUnited Kingdom. Prior to joining the University of Kent, he was a professor of criminology at London South Bank University and Middlesex University. Matthews is one of the key figures in left realism, a criminological critique of both the dominant administrative criminology and the left idealism.

[2] Loïc Wacquant (MontpellierFrança1960) é um professor de Sociologia">sociologia e pesquisador associado do Institute for Legal Research na Boalt Law School da Universidade da Califórnia, onde é filiado ao Global Metropolitan Studies Program, ao Program in Medical Anthropology, ao Center for the Study of Race and Gender, ao Designated Emphasis in Critical Theory e ao Center for Urban Ethnography. Wacquant também é pesquisador do Centre européen de sociologie et de science politique em Paris. Seus interesses perpassam estudos comparativos sobre marginalidade urbana, dominação étnico-Racismo">racialpugilismo, o Estado penal, teoria social e a política da razão. Loïc Wacquant já ministrou aulas em Los AngelesRio de JaneiroParisNova York e Viena. Seus artigos já foram publicados em revistas de sociologiaAntropologia">antropologiaCriminologia">criminologia, teoria social, estudos feministas, políticas sociais, filosofiapsicologiaeducação físicaliteratura,arquitetura, estudos da cidade e de culturas, entre outros, tendo sido traduzidos para 24 línguas diferentes.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 36ª edição. Petrópolis: Vozes, p. 209.

[4] Jonathan Simon é atualmente Professor da Universidade da Califórnia, Berkeley e Diretor do Centro de Estudos Direito & Sociedade da mesma universidade. É especialista em questões de Justiça Criminal. Leciona cursos de Direito Criminal, Justiça Criminal, Direito e Cultura, Risco e o Direito e Estudos sócios-jurídicos.

[5] Stanley Cohen (Joanesburgo, 23 de Fevereiro de 1942 - Londres, 7 de janeiro de 2013) foi um sociólogo e escritor consagrado no campo da criminologia crítica. É a ele creditado o termo “pânico moral”, usado no estudo Folk Devils and Moral Panics, publicado em 1972, no qual analisa os meios de comunicação em massas do Reino Unido e a reação social ao fenômeno “mods e rockers” na década de 1960. Sua obra engloba escritos sobre a teoria criminológica, as prisões, o controle social, a política de justiça criminal, delinqüência, mídia de massa,crime político e violações dos direitos humanos.

[6] Um inglês, um Francês, um Neozelandês e um norte-americano, na sequência. (Nota do aluno).

[7] In: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm> Consulta feita em 13 de junho de 2016, às 13h55.

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Sobre o autor
Sérgio Ricardo de Freitas Cruz

Mestre e doutorando em Direito. Membro do IBCCRIM e do IBDFAM.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Pequena análise do criminólogo e sociólogo britânico , Roger Matthews envolvendo a crítica do poder punitivo e suas abrangências.

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